HQ em um quadro: sudeste da Ásia na BD clássica, por Peyo e Delporte

Benoît Brisefer chega em Khben-Nogbang (Peyo, Yvan Delporte, 1968): bem na época em que houve a polêmica a respeito do brasileiro executado na Indonésia, eu estava lendo esta história do personagem Benoît Brisefer, clássico belga criado por Peyo (de "Schtroumps" e "Johann e Pirluit"). Aqui, o simpático mini-herói (edição: "Os doze trabalhos de Benoît Brisefer") precisa recuperar nove pedaços de papel dos títulos de um terreno com petróleo que estão espalhados pelo mundo. Isso o leva até um "certo país no sudeste asiático", descrito no letreiro do quadro aqui destacado desta maneira: "Khben Nogbang, cidadezinha do Sudeste da Ásia, mistura o charme pitoresco do extremo oriente aos benefícios da civilização ocidental...". Ao olharmos para o quadro, vemos não apenas a cidade viva, magnificamente representada no traço gros nez de Peyo, como também as propagandas de Coca-Cola ironicamente emplacadas acima das lojinhas orientais. Ora, longe de querer fazer qualquer análise pseudossociológica que compare a situação sociocultural do sudeste da Ásia com a história da BD francobelga, eu gostaria apenas de apontar algumas curiosidades ao redor deste requadro.

Fuzilamento no sudeste da Ásia... Peyo já foi chamado de racista e comunista, e creio que neste caso sua intenção era fazer uma discreta denúncia dos "males do capitalismo" chegando de maneira ambígua a "tão bárbaro país". O imaginário sobre a Ásia, e especialmente do sudeste asiático (guerra do Vietnã pegando fogo) no meio dos anos 60 dificilmente seria outro: não apenas Peyo e Delporte não nomeiam o país, tratando-o como alguma substância genérica, como logo à frente o pequeno herói se envolve rapidamente em uma trama militar, mostrando os soldados (amarelos) do sudeste da Ásia prestes a fuzilar (por engano, lógico) um "honesto" arqueólogo europeu. Logo emerge, obviamente, o imaginário do colonialismo "cientificista" belga (e francês), e em plena era das descolonizações. Logicamente, os militares de tal país são mostrados como vilões atrapalhados, que caem na astúcia de Benoìt, mas ao mesmo tempo choca a imposição de suas leis brutais, de suas sanções severas, ditatoriais. Se pensarmos hoje na Coreia do Norte, ou neste caso de execução na Indonésia, etc, de que lado estariam efetivamente Peyo e Delporte? Na denúncia da "praga capitalista" ou no estereótipo racista que constroem a respeito das culturas que eles, de maneira tão colonialmente paternal, querem "proteger"?

A China de Hergé

A resposta reside, obviamente, na ambiguidade. Se hoje estas questões são plurais e apontam para vários lados, imagine nos anos 60, quando um imaginário de identidades sólidas e iluministas ainda vigorava com força em países como a França e a Bélgica. Isso tudo poderia levar a mais um debate inútil sobre Charlie Hedbo, mas eu prefiro olhar ainda mais para o passado e pensar a HQ de Tintim O lótus azul, de Hergé (1936). Muito criticado pelo viés racista e canhestro de seu Tintim no Congo, Hergé, afetado por uma crise identitária, resolve, na época, fazer da investida do personagem na China uma verdadeira experiência etnográfica e transcultural, consultado um amigo chinês a respeito dos costumes e de maneira de ser dos chineses, à época em um impasse político graças ao imperialismo japonês, retratado na história. O detalhismo cultural perseguido por Hergé aqui é fotográfico: das casas de ópio às cidades, à natureza e aos veículos, a China era processada e representada com respeito, numa trama também militar, mas menos esquemática do que na HQ de Peyo. Há inclusive uma página inteira de desambiguação dos estereótipos chineses, e Tintim e o chinês Tchang desenvolvem terna amizade.

O que quero chamar a atenção é que esta esquizofrenia representacional e de posicionamento político que apontamos em Peyo e Delporte (é sempre um "alvo fácil" mirar uma obra de outro contexto histórico e cultural) também existe no mestre "intocável" Hergé. Qual Hergé preferimos ler: o racista do Congo ou o humanista da China? Seria fácil defender um ou outro dependendo dos propósitos e intenções ideologizantes que construímos a priori. Não se enganem: Os doze trabalhos de Benoît Brisefer é uma ótima história em quadrinhos: é dinâmica, ilustrada e narrada com a excelência da BD clássica, e um lindo inventário sobre o envelhecimento e a maturidade. O personagem é até mais cativante do que a contrapartida mais famosa das criações de Peyo (Schtroumps), além de dar um tabefe irônico na cultura de super-heróis. Até ganhou um filme recentemente. Talvez bons produtos culturais possam (e até devam) ser ambíguos, facilitando o destrinchar da complexidade que envolve nosso posicionamento ético e político nos dias de hoje.

Por fim, escrevi tudo isso para me ajudar a pensar também a capa da última revista Fluide Glacial, que, num movimento (talvez honesto) anti-Tintim (reparem que o desenho faz referência ao quadro de O lótus azul), retrata um "francês típico" carregando um chinês rico (com um loira) em uma Paris completamente dominada pela cultura chinesa, com a seguinte chamada: "Perigo amarelo! E se já for tarde demais?" A capa da tradicionalíssima revista de humor francesa (ops...) já provocou stress diplomático com a China. Enfim, novos tempos, mas a polêmica histórica continua... (CIM)  

Cosmosmurf e o inconsciente coletivo

por Ciro I. Marcondes

Uma coisa que diferencia essencialmente uma HQ como Schtroumpfs (Smurfs) de outra como Tintim é aquela velha oposição mythos x logos, que já vemos nos filósofos pré-socráticos, e que, em meio a um embate dentre duas das mais celebradas obras de nossa cultura pop, se torna um alegre festejar de dois olhares distintos que a humanidade pode lançar sobre seus próprios desígnios.

Explico-me: se a característica principal, fundadora, de Tintim é a sua racionalidade e sua argúcia, tornando-a uma HQ cerebral (conforme traduzimos do poder dedutivo e da verossimilhança das histórias de seu protagonista), em Schtroumpfs temos de tudo o contrário: conforme sempre nos lembramos nas piadinhas sobre estes personagens (“duendes azuis que vivem dentro de cogumelos. O que o autor disso anda fumando?”), os Schtroumpfs são basicamente calcados no poder imaginativo. Suas narrativas não possuem argúcia, dedutibilidade ou lógica. Temos de acreditar naquele universo inverossímil, mergulhar nele, confiar em sua capacidade de traduzir, alegoricamente, algo sobre nosso mundo.

O foguete de Tintim: racional projeto de propulsão

A síntese máxima desta oposição está na história do Cosmoschtroumpf em relação aos dois álbuns de Tintim em que ele prepara uma viagem, e depois viaja, à Lua. Se, no caso de Tintim, temos um roteiro cheio de conspirações, com detalhado e racional projeto de propulsão à Lua (sendo o primeiro álbum inteiro apenas um preâmbulo que prepara a organização científica da viagem), numa história cheia de jogos de interesses e planos complexos de sabotagem (foi escrita nos anos 50), no caso do Schtroumpfs, a aventura escrita e desenhada por Peyo possui tom completamente diferente. Em primeiro lugar, a temática do sonho já chama a atenção: Cosmoschtroumpf (seria como um Cosmosmurf) passa dias e noites pensando em como ver as estrelas, viajar pelo cosmos, conhecer outros mundos. Sua ambição (e obsessão) é tamanha que ele constrói um simpaticíssimo módulo lunar que funciona com propulsão à base de pedaladas, e reúne toda a vila dos Schtroumpfs para testemunhar seu feito. O problema é que, com alguma lógica, as pedaladas do Cosmoschtroumpf não são suficientes para fazer a genringonça levitar, deixando o pequeno astronauta (ou cosmonauta, conforme Peyo, que me parece que fosse comuna, preferiu chamar sua criação – à maneira russa) desolado.

A história, que já parecia mirabolante o suficiente, ganha um inacreditável plot twist quando o Grande Schtroumpf (“Papai Smurf”) resolve armar um plano – em tudo fantasioso – para agradar o pobre Cosmoschtroumpf. Dopado (como não deveria deixar de ser em uma aventura dos Schtroumpfs), ele é carregado, assim como todo o seu módulo lunar (desmontado), junto com toda a vila dos Schtroumpfs, para a superfície de um longínquo vulcão inativo. Lá, o módulo é reconstruído pelos outros (reclamões) Schtroumpfs, que, ao mesmo tempo, tomam uma poção (talvez um psilocybe cubensis), feita pelo Grande Schtroumpf, que os faz parecer alienígenas. Por alienígenas, é claro, entendam: eles ficam cabeludos, com uma cor caramelada, uma tanguinha de feno, e mullets! Em meio a uma paisagem exótica e “lunar”, o Cosmoschtroumpf acorda achando que atravessou o cosmos, travando contato com seus mesmos amigos, porém disfarçados como seres lunares.

Os Schlips: selvagens! E de mullets!

Não é preciso evidenciar muito o culto à farsa (ou seria melhor dizer: ficção) que esta história carrega. Já dentro de um universo completamente alucinado (a vila dos Schtroumpfs) temos a invenção de um outro mundo alucinado: o “planeta” dos Schlips, que é como os Schtroumpfs transformados se autodenominam. Os Schlips acabam se mostrando uma cultura um tanto tribal, um tanto primitiva, dando vazão à ideia fantasiosa de que, de alguma forma, se encontrássemos uma sociedade na Lua, ela seria semelhante aos nossos povos selvagens. Esta ideia, Peyo certamente a retirou do filme Viagem à Lua, do mago pioneiro do cinema Géorges Méliès, um dos filmes mais famosos de todos os tempos. Rodado em 1902 e inspirado em Júlio Verne e H.G. Wells, este brilhante filme de ficção científica (especialmente no que tange à comercialização do cinema, e ao mesmo tempo à evolução de sua narrativa) coloca o colonialismo do séc. 19 em pauta ao tratar os astronautas como uma mistura de astrólogos, astrônomos e exploradores britânicos, e os selenitas como mimetizações de tribos africanas.

Ao associar a ideia de progresso científico (viajar à Lua!) ao pensamento mágico (tipo de cultura mitológica), Méliès acaba completando um círculo incomum, desenvolvendo subliminarmente a noção de que, no fundo de qualquer progresso científico há a fantasia. No fundo de qualquer pensamento racional, de alguma forma, resta ainda o pensamento mítico. (veja o filme com trilha sonora do Air).

De alguma forma, portanto, o pensamento mágico de Peyo desconfia da nossa aterrisagem na Lua (realizada um ano antes da publicação da HQ), já que, da mesma maneira que o Cosmoschtroumpf é ludibriado pelos seus conterrâneos, nós poderíamos ter sido ludibriados pelo mesmo processo, só que com uma diferença: assistimos à aterrisagem na Lua pela televisão, que é o grande meio de comunicação do séc. 20. No mundo real, a fantasia proposta por Peyo (usando não apenas a imaginação, mas também sedativos e drogas) é substituída pela mídia, o conversor universal da fantasia por excelência. Que o homem tenha aterrisado na Lua ou não, isso não vem ao caso (apesar de evidentemente tê-lo feito). O que importa é lermos em Peyo a conversão de um pensamento mágico num pensamento midiático, relacionando inteligentemente as diferenças entre os mundos mitológicos dos povos antigos e os mundos “mitológicos” criados por um mundo midiático e atual, do qual as histórias em quadrinhos fazem parte.

Assim, sobra desta reflexão a noção de como Peyo representa um contingente dos quadrinhos franco-belgas (BD), chamado gros nez (nariz gordo), alinhado ao mundo da deformação, do grotesco e da alucinação (Schtroumpfs que o digam), enquanto Hergé e seu Tintim, fundador da chamada linha clara, se desloca para o universo do logos, das aventuras bem-engendradas e racionais, fincadas no chão, servas da verossimilhança. De um jeito ou de outro, seja na antiguidade ou seja no mundo pós-midiático de hoje, esta dupla de HQs se revelam arquétipos fortes, condensados, importantes para percebermos o local das histórias em quadrinhos no nosso inconsciente coletivo. 

VIAGEM AO PAÍS DOS QUADRINHOS

por Ciro I. Marcondes
fotos por Gustavo Marcondes e Marcos Inácio Marcondes

Uma coisa que poucos sabem sobre a Bélgica (um país do tamanho do Estado de Alagoas) é que, além de ser uma terra famosa pelos chocolates, cervejas, diamantes e quadrinhos, ela é também o país com as garotas mais lindas do mundo. Sim, pode parecer surpreendente, afinal, ninguém nunca mencionou isso, mas isso é, aparentemente, o maior segredo dos belgas, guardado ao ar livre. Afinal, é difícil não se sentir encantado ao ser servido, com extrema cordialidade e simpatia, em qualquer lugar (no museu, nos cafés, no McDonald´s, ou simplesmente ao perguntar alguma informação a uma ruivinha andando de bicicleta), por uma criatura doce e feérica, de olhos verdes e cabelo naturalmente alaranjado. Você começa a sentir que entrou em um país de contos de fadas.

É por isso que não me surpreende que o belga Pierre Culliford (aka Peyo) tenha começado seu império nos quadrinhos, na animação e na cultura pop com um gibi sobre uma terra medieval encantada (Johann e Pirluit) que progressivamente se transformou num gibi sobre duendes azuis, os Schtroumpfs (aka Smurfs, dã). Estas informações também me lembram do quanto os belgas, apesar de serem uma cultura desconhecida e considerada derivativa, situada na Europa central, diferem dos europeus “canônicos” num aspecto essencial pra um turista: são simpáticos, poliglotas, gentis, parecem adorar sua presença, demonstram interesse em te conhecer.

Este pequeno panorama, que inclui charme, simpatia, credulidade e modéstia serve para entendermos o porquê de a Bélgica possuir uma cultura tão diversa e internalizada em seu diminuto território, e o porquê de eles serem tão aficcionados por uma cultura sólida e tradicional de quadrinhos, com várias obras-primas não traduzidas sequer para o inglês, sendo sua gigante influência sobre a HQ europeia referenciada sempre de forma tão tímida.

Um pouco de arquitetura dos Flandres

Tive a sorte de passar uma pequena temporada na Bélgica e tentar equacionar esses fatores todos que a tornam um destino tão peculiar às pessoas pacatas, ao devoto incontéstil de uma vida introspectiva, e a quem verdadeiramente ama as histórias em quadrinhos, claro. A Bélgica fica na região dos flandres, que se estende até a Holanda e que se distingue por uma arquitetura de cores quentes e rurais, de tijolinhos vermelhos, e que se moderniza numa art nouveau envidraçada e rococó, com florais de bronze, coisa fina e leve, irretocável. Apesar de a parte mais internacional e vigorosa da cultura de quadrinhos belga pertencer à influência francesa, parece mais enraizada essa secular ascendência flamenga. A Bélgica é um país bilíngue, mas é somente na capital, Bruxelas, que isso é realmente praticado na região dos flandres. Em todo o resto dos flandres, fala-se holandês (ou a língua flamenga, uma variação muito próxima do holandês) e eles preferem que você se comunique com eles em inglês, porque há o cultivo de uma certa rivalidade (voltarei a isso adiante) com a região de matriz francesa.

É por isso, por exemplo, que os belgas fazem a melhor cerveja do mundo (é verdade mesmo. Experimentei umas 30 marcas diferentes, de dupla ou tripla fermentação, ou estilo abadia, ou cervejas trapistas, ou cervejas de 12% de concentração alcoólica; enfim, uma visão do paraíso cervejeiro), uma coisa tão associada à Europa central, quando os franceses gostam mesmo é de beber vinho. E é essa proximidade tão grande com a cultura holandesa (eles têm até um próprio bairro da luz vermelha), com quem compartilham esse passado comum, que os faz serem também tão maconheiros! Em Bruxelas, eles meio que apertam seus baseados dentro dos cafés (vale até um Giraffas local qualquer), fumam na rua, na porta de entrada dos shows, e realmente não pareciam nem ligeiramente preocupados com qualquer intervenção policial.

Pintura flamenga e quadrinhos

Brueghel, o Velho: A queda dos anjos rebeldes, no Museu de Belas Artes de Bruxelas

Uma das possíveis origens para o entusiasmo dos belgas com os quadrinhos é a forte tradição flamenga (não, nada a ver com o time vagabundo regido a mão de ferro pela popularidade carnavalesca do Ronaldinho Gaúcho) nas artes visuais, e isso é certamente algo que belgas e holandeses têm muito que se orgulhar. Afinal, essa arte historicamente ocupa um epicentro de transformação entre a pintura gótico-medieval e o Renascimento italiano. Figuras como Brueghel, o velho, Jan Van Eyck, Rogier Van Der Weyden e, é claro, o estupor horrorizante de Bosch (quem não ficou pasmo ao observar os detalhes do Jardim das delícias?) foram responsáveis não apenas por desenvolver a tinta a óleo com que os italianos (Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael, enfim, todos que você ficou sabendo através das Tartarugas Ninja) revolucionaram a cultura ocidental, mas também por abordar pioneiramente a pintura da paisagem, os hábitos da vida do campesinato, e por introduzir, de maneira bem consciente, a ideia de que o feio e o grotesco poderiam ser um forte tipo de expressão com que a as artes poderiam se identificar. Escrevi, entre outras coisas, uma análise do quadro O triunfo da morte, de Brueghel, neste livro aqui, na página 294, caso haja interesse.

Guadglíneos?

Pra quem não sabe, a cultura de quadrinhos belga é tão antiga quanto os quadrinhos modernos em si, e as escolas desenvolvidas entre os anos 20-50 pelas revistas mix Tintim e Spirou não só geraram a influente escola francesa, como praticamente toda a cultura europeia de quadrinhos. Influência pouca não é bobagem, e não é à toa que uma cidade como Bruxelas tem estátuas de seus personagens espalhados pelas ruas, assim como paredes inteiras dos prédios pintadas com cenas de seus gibis. Além disso, os cafés das cidades belgas possuem pilhas de gibis para você pegar e ler distraidamente enquanto toma um chocolate quente ou uma cerveja.

Na época dos pintores flamengos, era comum que a cultura gótico-medieval já abordasse a narrativa visual seriada, e um pintor como Van Der Weyden é reconhecidamente um dos mestres da pintura em retábulos, em que cenas diferentes da paixão de Cristo ou outros motivos bíblicos eram pintados em diferentes quadros, alguns que se abriam como um livro, e que podiam ser entendidos como uma sequência interligada. Assim como os quadrinhos, os belgas amam sua tradição em pintura medieval, e em cada cidadezinha de 10 mil habitantes podem-se encontrar museus e obras destes mestres pioneiros. Isso sem falar na continuidade barroca e pós-renascentista trazida pelo antuérpio Peter Paul Rubens, um dos pintores mais influentes de todos os tempos.

Centre Belge da la Bande Dessinée

Art Nouveau

É por isso que, além de museus de arte flamenga e de instrumentos musicais (muito maneiros), há também um Centre Belge de la Bande Dessinée, ou o Museu Belga das Histórias em Quadrinhos, em Bruxelas. Logo na entrada do museu – um prédio envidraçado projetado pelo mestre da art nouveau Victor Horta – uma estátua de Gaston Lagaffe, o pai de todos os picaretas belgas, criado pelo genial André Franquin, nos lembra que aquele é um lugar amigável para o fã de quadrinhos. Já no hall de entrada, antes mesmo de pagar, nos deparamos com uma série de estátuas legais de personagens tradicionais da BD francobelga: os Schtroumpfs, várias coisas de Tintim (o foguete lunar, os personagens vestidos de astronautas, um busto em bronze), Lucky Luke, etc, além do carro vermelho vintage de Spirou todo pichado e desenhado pela nata histórica destes quadrinhos: Morris, Goscinny, Uderzo, Peyo, etc. Depois disso, o museu se divide em uma didática sessão sobre como as BDs são confeccionadas tradicionalmente, com rico material original, desde a concepção, os roteiros, o letreiramento, a coloração, a impressão, o marketing, enfim, todas as etapas da industrialização dos quadrinhos. Há dois salões de exposições temporárias (em um dos quais estava instalado um interessante panorama das HQs romenas) e, é claro, o andar principal, onde, entre escadarias e vãos de leveza art nouveau, podemos acompanhar, cronologicamente, entre estátuas, réplicas, brinquedos e instalações muito divertidas, toda a trajetória da BD belga (somente belga; nenhum artista francês é relacionado ali).

Neste andar principal, três tipos de subdivisão interessam. Em primeiro lugar, uma vasta e interativa sala toda dedicada ao personagem Tintim e ao seu criador, Hergé, com, além de ilustrações originais e modelos em escala humana, instrumentos de trabalho e painéis informativos ilustrados sobre o refinamento artístico, narrativo e humanístico do personagem, deslindando sua grande importância para a cultura das BDs. Com o lançamento do filme de Spielberg, os belgas, é claro, estavam em alvoroço, e o Tintim estava em toda parte.

Passando por esta sala de abertura, começamos a entender a concepção de curadoria do museu. A divisão das salas é mais ou menos cronológica e separada por autores (o primeiro deles é o pioneiro Jijé, criador do Spirou nos anos 30, tão importante, digamos, que também tinha um museu só pra ele em Bruxelas), mas estas salas (na verdade, elas funcionam como grandes divisórias de um labirinto de quadrinhos) são divididas em duas grandes estruturas pelo andar, separada por uma charmosa banca de jornal no modelo dos anos 40: de um lado, toda a história do semanário Spirou, com centenas de capas clássicas, e a trajetória ano a ano de seus editores. Do outro, a trajetória do jornal ou revista Tintim (ambas são revistas de variedades em quadrinhos e publicavam dezenas de personagens e autores diferentes), com as capas dispostas da mesma maneira.

Saindo, então, das salas que contam as histórias das revistas que, cultivando saudável rivalidade, permitiram o desenvolvimento da HQ belga, fica mais fácil e claro entender as salas dos próprios autores, dezenas deles, com várias páginas originais de cada, rascunhos, objetos pessoais, além de textos bastante ricos informando-nos a trajetória editorial do autor, suas influências, o método de criação, a concepção de seus personagens, sua popularidade, etc. Vale mencionar que as salas dos autores são personalizadas de acordo com suas criações. A sala de Franquin, por exemplo, é disposta como se fosse o escritório zoneado de Gaston Lagaffe, além de um corredor escuro que homenageia sua obra-prima tardia, as Idées noires. A de Morris se parece com um saloon que homenageia Lucky Luke, e assim por diante.

Acabei demorando-me um bocado de tempo nestas salas, procurando conhecer os muitos autores ali dos quais eu nunca ouvira falar, e foi uma pesquisa muito fértil. Foi possível entrar em contato, por exemplo, com Raymond Macherot e seu Sibylline, uma popular HQ de animais falantes, na melhor tradição Disney ou Pogo, que constrói inteligente comentário social a respeito da Europa nos anos 50-70. A sala de Macherot era decorada com modelos das árvores onde seus personagens vivem, com diminutas famílias arranjadas dentro dos troncos. Pude também dar uma olhada melhor no autor Maurice Tillieux e sua BD detetivesca Gil Jourdan. Por sorte, pude comprar versões compiladas, extremamente bem editadas, de todas as BDs que me interessaram. Coisas dos anos 40, 50 e 60, reeditadas em obras completas, mostrando o profundo respeito que os belgas devotam à sua tradição quadrinística.

Vale também mencionar a sala de Peyo. Além de originais e coisas de praxe, encontramos um mini-museu só dos Schtroumpfs, com modelos dos “edifícios” e construções dos Schtroumpfs.... em escala Schtroumpf. Há também uma grande tela de tinta a óleo com toda a vila dos Schtroumpfs pintada pelo próprio Peyo. Outras coisas de interesse estão na grande sala dedicada à BD Boule e Bill, de Jean Roba, uma história infantil muito simpática e popular, calvinesca, sobre um garotinho e seu cachorro, além de muitos outros personagens que já foram publicados até em português, como Alix (Jacques Martin), ou Le chat (Phillipe Gerluck).

Módulo Lunar (modelo) do Smurf Astronauta

Módulo Lunar de Tintim

Por fim, uma curiosidade substancial é a maneira como os autores que se originam da cultura dos flandres (e, portanto, são publicados em holandês) possuem um tratamento diferenciado no museu. Segundo o que o curador de um pequeno museu de música informou ao meu irmão na cidade da Antuérpia, basicamente a maioria dos belgas nos flandres se identifica com essa cultura, e a capital só fala francês graças a uma imposição de Napoleão após ter conquistado o país. A cultura francesa (obviamente também orgulhosa) na Bélgica, situada na região da Valônia, é bem mais pobre a marginalizada do que os ricos belgas de origem flamenga. Talvez isso explique por quê, no museu, os influentes autores flamengos ostentem os textos de curadoria em holandês acima dos textos em francês, ao contrário de todo o resto. Os principais nomes desses quadrinhos – Willy Vandersteen, chamado “verdadeiro criador da linha clara” e sua imensamente popular BD familiar Bob e Bobette; e Marc Sleen, criador de As aventuras de Nero – ocupavam espaço de grande destaque no salão central do museu. Depois, ao tentar comprar a HQ Nero e não encontrar nenhuma edição em francês (e carregando somente uma tradução em inglês nas mãos), perguntei pra velhinha que atendia na loja: “Nero em francês está em falta”? No que ela respondeu: “Não, isso nunca foi publicado em francês”. Oh, I guess I struck a nerve.

BD World

Acho que tudo que me esforcei para escrever com clareza acima dá uma ideia da complexidade cultural de um país com 30 mil km² e apenas 10 milhões de habitantes. Especialmente para os fãs de quadrinhos, é um tour que vale a pena. Tanto quanto chocolaterias (esqueci de dar algum destaque a isso, porque, ao contrário de 99% da população mundial, não gosto muito de chocolate), há um universo de lojas de quadrinhos na Bélgica, especialmente em Bruxelas. Cheguei a visitar umas 4 ou 5, afinal, o tempo era curto e tinha muita cerveja pra beber. Faço questão de destacar a BD World, uma loja labiríntica, com milhares de quadrinhos, atendida por duas preciosidades a quem eu não recusaria um pedido instantâneo de casamento; a Multi-BD, cujos atendentes são tão atenciosos que escrevem suas próprias mini-resenhas e colam junto às capas dos quadrinhos, classificando-as como “premiadas”, “favoritas da casa”, etc; e a própria loja instalada no museu, a Slumberland, franquia de uma megastore de quadrinhos que tem outras 5 ou 6 lojas espalhadas por Bélgica e França. A Slumberland é quase como uma Fnac só de quadrinhos, e praticamente somente quadrinhos francobelgas. Os comics americanos, aliás, parecem bastante desprezados pelo país. Pouco se vê deles pela Bélgica. Vou me abster apenas de falar no bizarro hábito de comer batatas fritas com maionese como se fosse cachorro-quente, e de dar mais detalhamento sobre a qualidade da mulher belga, primeiro para não entediar nossas leitoras, e segundo porque esta é uma qualidade que deixo à imaginação, e àqueles que se aventurarem para uma visita in loco.

Bruges, na Bélgica: você senta-se no café, pede um chocolate quente e pega um gibi pra ler.

Agradecimentos ao meu irmão Guga (verdadeira fanático por pintura flamenga, prestou ótima assessoria), meu irmão Quilk (que tirou a maioria das fotos) e ao colega Pedro Brandt (que morou na Bélgica e me informou alguns detalhes essenciais sobre o país).

Contatos imediatos: entrevista com Lourenço Mutarelli






















por Pedro Brandt

No começo da carreira, nos anos 1980, Lourenço Mutarelli teve dificuldades para publicar seus primeiros trabalhos. Nenhum editor queria suas histórias em quadrinhos. A ironia é que, pouco depois, ele se tornaria um dos mais respeitados autores brasileiros de quadrinhos. Tanto que, quando Mutarelli anunciou que deixaria de produzir HQs para se focar em seus livros (e em trabalhos para cinema e teatro), muita gente lamentou a aposentadoria precoce do paulistano. Por isso mesmo, existia uma certa expectativa a respeito de Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente, trabalho anunciado como sua volta aos quadrinhos.

Na verdade, o título ainda não é o tão aguardado retorno de Mutarelli ao formato. “Quando eu comecei a fazer os estudos em quadrinhos, vi que a história não ia ter fôlego para isso. Então eu fiz essa contraproposta para a editora (Companhia das Letras), de fazer uma história ilustrada. E eles aceitaram numa boa”, ele conta. Mais do que narrar um contato imediato de terceiro grau (em termos ufológicos, o encontro com extraterrestres), Lourenço Mutarelli, 47 anos, faz de seu novo trabalho uma reflexão sobre a memória e o passar do tempo.
No começo do livro, o narrador — anônimo — avisa que não foi testemunha do que será relatado nas páginas a seguir. Os pais do personagem passaram seus últimos dias juntos em uma vida tranquila e doméstica. Ela gostava de assistir novelas. Ele, de comprar máquinas de escrever e de costura para desmontá-las e depois montá-las. O homem também colecionava fotografias antigas compradas em uma feira perto de casa. A rotina do casal seria abalada pela morte súbita da senhora. Com a perda da mulher, o velho homem entrou em depressão.

Para ajudar o irmão em luto, o tio do narrador convida o viúvo para pescar em uma cidade do interior. Durante a pescaria, os dois avistam uma estranha luz no céu e a perseguem. Pouco depois, o pai do narrador some noite adentro. Quando reaparece, tem histórias surpreendentes para contar.
 
Interação

A leitura apenas do texto de Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente é rápida e pode passar uma impressão precipitada da obra, como se ela fosse uma história muito simples, banal. A posterior leitura das ilustrações, mais do que complementar o que está sendo narrado com palavras, funciona no sentido de causar sensações. Diversas imagens são apresentadas mais de uma vez, mas com alguma coisa diferente. Assim como uma foto desbotada, uma lembrança antiga ou as imagens criadas na mente quando se ouve uma história (ou ainda, quando elas surgem na cabeça fruto de algum delírio), as ilustrações de Mutarelli no livro são — além de um deleite visual — um convite à sugestão.

Assim como na leitura de uma história em quadrinhos, a participação ativa do leitor em Quando meu pai se encontrou com o ET… se faz necessária para preencher algumas lacunas e silêncios que Mutarelli espalha pelo livro. E é com o auxílio desse artifício — a liberdade para interagir com o que se lê — que a obra transcende as páginas.

Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente
De Lourenço Mutarelli. 112 páginas. Quadrinhos na Cia. (Companhia das Letras). R$ 44,50.

ENTREVISTA: LOURENÇO MUTARELLI
 
Como é o seu processo para conceber as histórias que cria?
Quando eu começo a pensar na história, eu parto geralmente de algum argumento pequeno. Não é nem um argumento, é uma ideia que eu sinta que possa desenvolver. Quando é em quadrinhos, eu sempre começo a fazer uma pesquisa de imagens, tentar pensar como eu vou ambientar a história, e começo a fazer uns estudos. E a partir desses estudos, pensando no que é a história, eu tento encontrar uma técnica, uma forma de contar essa história.

Quanto tempo você levou para concluir o Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente?
Levou um ano. Eu terminei ele em maio, junho do ano passado.

Qual a técnica usada nesse trabalho?
Eu usei basicamente tinta acrílica sobre papel. Às vezes tem até algum filete em nanquim, mas aí é pincel, mais uma técnica de pintura. Eu achava a cor interessante nessa história, dar uma amortecida nas cores, o acrílico é uma cor muito intensa. Eu comecei a fazer alguns estudos cromáticos, uns estudos de cor e vi que era o caminho que eu queria seguir.

As técnicas são uma novidade pra você?
Sem dúvida. Eu tinha trabalhado em pouco coisa com tinta acrílica, nos trabalhos de faculdade. E nunca mais tinha mexido com acrílica. Como eu tenho um projeto que eu mais gosto, que eu venho fazendo, que são meus cadernos de… não são nem uns estudos, são meu laboratório, coisas que eu brinco… 

Sketchbooks? 
É, são sketchbooks. Eu não sei se são sketchbooks, eles são mais ou menos o que eles são ali. Eu tiro muita ideia dele. A minha intenção é gerar coisas ali, com cor. E eu tinha comprado há um tempo atrás alguns tubos de acrílica e estava usando nesse cadernos. Mas de uma forma bem… não é nada demorado, não tem que ter acabamento, é uma coisa muito rápida nesses cadernos. E aí, para esse projeto, para o processo desse trabalho, é algo muito mais elaborado, mais trabalhoso. E eu achei que o desafio também me estimularia a encarar esse trabalho.

É o seu primeiro trabalho colorido?
Nos anos 1990, começo de 2000 — 2000, eu acho — tinha o Cyber Comix, um site. Uma das exigências deles é que as histórias fossem coloridas. Então eu fiz uma série de histórias coloridas pra eles, que depois eu reuni num álbum, que é Mundo pet, uma coletânea dessas histórias. Aquela é a minha única publicação colorida.

Essa história tem algo de biográfica?
Como a narração é em primeira pessoa dá a impressão de ser uma história autobiográfica. Ela tinha uma frase no começo que deixava claro que não era, mas eu acabei suprimindo isso, para deixar essa dúvida. Ela não tem nada de autobiográfica — a não ser o uso da imagem de alguns amigos, como o Mário Bortolotto e o Paulo de Tarso, que eu usei como referência para uns personagens, e umas fotos da minha infância que eu misturei nas fotos que o velho colecionava. E o velho, o pai, tem a cara do escritor William Burroughs. Eu desenhei muito o Burroughs e um dia percebi que sempre misturo o rosto dele no do meu pai. E eles não tem nada a ver! A única semelhança é o lábio muito estreito, quase não tem o lábio superior.

E os seus pais estão vivos?
Só a minha mãe. Meu pai faleceu tem 10 anos — igual na história (risos). Eu falo que não tem nada biográfico, mas meu pai morreu há 10 anos. Mas não foi num asilo, não viu ET…

Acho que a frase que melhor resume isso é uma frase do Arquivo X
“A verdade está lá fora”. Eu adorava Arquivo X, é uma série que eu acompanhei muito nos anos 1990.

A frase que tem no poster do escritório deles é ainda melhor: “Eu quero acreditar”.
Ah, sim, é verdade! “I want to believe”. A gente passou o fim de ano num sítio, na casa de campo de um amigo, onde a gente sempre passa, e eu passei a olhar muito para o céu. Eu sempre olhei muito pro céu porque sempre me fascinou as tonalidades. Como eu levanto cedo, geralmente eu vejo o sol nascendo, é uma coisa que sempre me fascinou. Mas nunca estava procurando nada ou tinha esperança (de ver alguma coisa). E nesse final de ano, o meu filho me perguntou “você está procurando ET” e eu disse que adoraria ver (risos).

Você gosta de histórias de ETs?
É uma coisa que me fascinava quando eu tinha uns 14, 15 anos. E que ficou meio apagada, nunca tive mais interesse. E há algum tempo atrás, o Marçal Aquino — para quem eu dedico o livro — me contou uma piada que era sobre ET. Era uma piada bem boba, mas que tinha a frase “leve-me ao seu líder”, a frase clássica dos ETs. E isso ficou na minha cabeça. A partir daí, eu comecei a pensar na história, a fazer uma pesquisa maior sobre o assunto, a acompanhar um monte de séries de tevê a cabo, pesquisar imagens no YouTube… Eu adoraria ver alguma coisa. Nunca vi nada, não sei se acredito ou não, mas acho fascinante entrar num mundo que não fazia parte das coisas que eu questionava ou pensava.

Você ouviu falar do ET Bilu?
Eu estava dando uma oficina ano passado no Sesc, e uns meninos me contaram. Eu até anotei isso na minha agenda, para procurar, mas nunca fui atrás.

Já está trabalhando em um novo projeto?
Vou voltar para o meu projeto dos Amores Expressos.

Como está essa história?
Eu fiz um livro, mas a Companhia das Letras não gostou e pediu uma série de alterações. Eu alterei, mas depois… como ele estava previsto para o ano que vem, e eu vi que eles não gostaram muito… daí, andei pensando e vou reescrever. A história vai ser no mesmo cenário, mas com outros personagens. Vou manter só um capítulo do outro livro que eu escrevi.

E o filme do Dobro de cinco, por que não teve continuidade?
Fizemos um teaser, a princípio, para uma tv a cabo. Era para ser uma minissérie em alguns capítulos. Mas essa emissora, quando viu o teaser e teve contato com os livros, achou muito bizarro e desistiu. Eles tentaram com uma outra também não aconteceu. Aí veio a ideia de virar um longa, mas seria um projeto muito caro, então está engavetado.

Uma pena, porque esse teaser ficou bem legal
Até chorei quando vi, foi muito emocionante. A direção do Denison, o Grampá cuidou de toda parte visual, a maquiagem… Mas é uma coisa quase inviável, a maquiagem do Cacá Carvalho dura quatro horas e meia e acabou, ela é jogada fora.


Você acompanha alguma coisa de quadrinhos hoje em dia?
Não tenho acompanhado quase nada, e já faz muito tempo. Às vezes me mostram alguma coisa, mas muito pouco, não tenho acompanhado nada.

O que você gosta de fazer para passar o tempo?
Ouvir música e jogar paciência no computador.

Você ainda gosto dos compositores de vanguarda erudita?
Sim, tem umas duas décadas que eu venho mais focado nessa música. Glass, John Cage, György Ligeti, Arvo Part… tenho ouvido um cara que é bem obscuro, Harry Part, que é maravilhoso.

Você tem um traço bem pessoal, é até difícil perceber as suas influências…
A minha relação com as minhas influências nos quadrinhos nunca foi de tentar imitar esses caras. Tem caras que eram referências, por exemplo, Hal Foster, no Príncipe Valente, ou Hergé no Tintim… eles têm um trabalho tão bem resolvido no estilo deles… o Tardi ou Munhoz, que pra mim é o melhor. São caras que eu nunca tentei imitar. No começo do meu trabalho, quando eu não conseguia publicar, eu tentei fazer humor, e aí quando eu tentei fazer humor, eu me influenciei mais pelo underground americano. Mas foi uma fase inicial e depois eu voltei para o que eu já era. Eu costumo dizer que o estilo é a tua limitação, é o jeito que eu sei fazer. Eu tento experimentar sempre nesse meu processo, mas é por aí, eu gosto disso. Acho que eu sempre tive mais influências literárias e de artes plásticas.

Mudar de traço é se desafiar?
É uma busca mesmo. Mesmo nas histórias antigas, tem uma variação de uma para a outra. Em cada história, eu tentava encontrar um traço que eu acreditasse que ajudava a contar a história ou ambientar melhor essa atmosfera. Eu acho muito desagradável chegar numa coisa que deu certo e ficar insistindo nisso, é muito fácil você ficar numa coisa que deu certo.

E quando você volta, efetivamente, para os quadrinhos?
Eu fiz algumas coisas em 2007, comecei um projeto novo totalmente experimental e em quadrinhos mesmo. Em algum momento eu devo voltar, mas queria encontrar uma forma nova, que fosse experimental, que me desafiasse a encontrar alguma coisa diferente do que eu fiz nesse anos todos.

O que são BDs? Pt. 1

por Ciro I. Marcondes

BD (bedê) vem da designação francesa bande desinée (“banda desenhada”, como se diz em Portugal, ou simplesmente uma “tira desenhada”). Graças a um domínio bastante substancioso do quadrinho de língua francesa na produção europeia, é comum que praticamente toda produção do continente esteja relacionada ao universo das BDs. De uma forma metonímica, pode-se dizer que a HQ europeia, ou no mínimo a brilhante produção franco-belga, se identifica com as origens da BD. Isso não lima a importância de outras manifestações quadrinísticas da cultura europeia, como os fumetti (quadrinho de banca italiano), por exemplo, ou as origens do quadrinho de tabloide britânico, que se confude com as próprias origens das HQs. Além disso, estamos fazendo aqui um corte bastante específico, de BDs que se originam a partir de Tintim, assemelhados especialmente pelo traço, cartunesco, e por uma imersão inteligente no mundo adulto a partir de situações que fazem fronteira clara com o exagero, a fantasia, a história, a aventura, enfim, um universo próprio, fundamentado em narrativas simples, mas em geral elegantes e de plena consciência e domínio sobre as possibilidades expressivas dos quadrinhos. Os quadrinhos europeus são incrivelmente vastos e especializados, e se proliferam em culturas nas quais esta forma de expressão há muitas décadas deixou de ser um entretenimento infantil. Logicamente, a revolução que parte da revista Metal hurlant e todo um aprofundamento no campo da fantasia, erotismo e ficção científica merece um tópico à parte. Assim como o quadrinho experimental, o faroeste, as histórias de piratas, o noir europeu, entre tantos outros gêneros importantes.

1 - TINTIM (Tintin): Hergé

Por vezes, é comum que se façam ressalvas a Hergé (Rémi, Georges – RG) por conta de algum conteudo enviesadamente político ou colonialista – digamos, não antropologicamente correto segundo os padrões de hoje – em alguns de seus primeiros álbuns. Bem, temos de relativizar isso, logicamente. Hergé começou a escrever sua obra-prima Tintim ainda nos anos 20, quando a antropologia americana (de Ruth Benedict e Margaret Mead, mulheres formidáveis), essa que nos ensinou a relatividade cultural, estava ainda em seus passos iniciais. Fôssemos pensar assim, teríamos de proibir da leitura de autores como Herbert Spencer ou Monteiro Lobato.

A questão é que uma HQ como Tintim (tantan, na pronúncia francesa), que teve seu derradeiro álbum publicado em 1976, possui tantas qualidades gráficas, narrativas e temáticas que seria uma tolice falar sobre qualquer outra coisa neste momento. Atualmente, é comum que as pessoas tenham certa preguiça de ler Tintim, por mais que surjam novas e belas edições de seus álbuns. Isso se dá talvez por falta de uma leitura contextualizada e o entendimento de que esta é uma obra essencialmente da primeira metade do século. Aos olhos cínicos do leitor atual, Tintim é romântico, ingênuo, enfadonho, previsível.

Porém, para exaltarmos a necessidade de se ainda ler Tintim, cabe talvez apenas enumerar alguns atributos básicos:
1) Tintim não é uma história de super-heróis. Pelo contrário, surgiu antes deles, e traz, mais ou menos como Tom Sawyer ou Apanhador no campo de centeio, a criança/adolescente como protagonista intuitivo e sagaz. Um protagonista arguto, que valoriza possibilidades realistas de solução dos problemas, cujos coadjuvantes não são menos carismáticos e palpáveis e saudavelmente politicamente incorretos.
2) Tintim ainda tem um mundo a apresentar aos seus leitores. Podemos ir ao Congo, às arábias, à China, à Lua (em álbum muito detalhado e coerente em relação ao mapeamento lunar, escrito antes de Apolo 11). Olhando ao meu redor, vejo que a maioria das pessoas ainda não sabe quase nada sobre lugares como esses.
3) Tintim tem pegada clássica, de pistas a serem seguidas pelo leitor, mas Hergé não deixava de ser um mestre da narrativa por isso. Seu domínio do tempo na HQ, fragmentando quadros e inserindo microsegundos em incrível detalhismo espacial, ainda é exemplar para a maioria dos quadrinistas mundiais.
4) O traço de Hergé fundamenta praticamente tudo que conhecemos de uma vertente franco-belga em quadrinhos de aventura, num caricaturismo contido, ainda delineado pela realidade, fundador dos quadrinhos em estilo linha-clara. É um traço fino, detalhista, elegante e limpo.
5) Ao contrário do que se alardeia ordinariamente, Will Eisner não inventou a graphic novel nos anos 70 (pasmem!). Já nos anos 30 Hergé lançava álbuns de histórias longas, desenvolvidas como romances, com pleno domínio do fôlego narrativo em HQs.
6) Capitão Haddock, um alcoólatra impulsivo e de bom coração que... nunca deixa de ser alcoólatra.




2. ASTÉRIX: Uderzo e Goscinny

Se considerarmos como critério a estrutura narrativa clássica em HQ, a longevidade, popularidade, cristalina qualidade imaginativa e capacidade de contar histórias, Asterix seria sério candidato a melhor HQ da história. Levando a cabo a estética de admirável ousadia e inventividade trazido por Hergé, o Asterix clássico tem textos de René Goscinny, já antes celebrado pelo humor refinado de Lucky luke, mas muito mais debochado, especial e calibrado na série do famosíssimo gaulês. Ao seu lado, o traço de Uderzo, que seguiu com os textos da série após a morte de Goscinny nos anos 70. Uderzo, que praticamente redefiniu o detalhamento e a abordagem visual em BD, sendo capaz de criar uma identificação própria, sua, em cada etnia, cada padrão arquitetônico, cada peça indumentária e cada indivíduo dentre as centenas de variedades que aparecem na antiguidade mostrada em Asterix. No caso desta HQ não poderíamos nos limitar a apenas dizer que os personagens são carismáticos e inesquecíveis. A galeria genial e geniosa dos gauleses e romanos é tão fértil e aprofundada na série que podemos estipular um tipo de criação mitológica contemporânea, da mesma maneira que se faz com a criações de Tolkien para O senhor dos anéis
Os personagens correspondem a arquétipos que se enquadram tanto na tipologia da antiguidade (soldados, ferreiros, chefes, césares, matronas, comerciantes, generais, barqueiros, gladiadores, arquitetos, escribas, intelectuais, feirantes, etc.) quanto nas relações muito peculiares da vida contemporânea (sendo evocados o jornalismo, o comércio, a construção, as guerras, as culturas modernas, a política, tudo com escarninho, mas brilhantemente bem dosado, humor de modelo francês). Desta maneira, Asterix ainda fornece fértil diálogo e consciência sobre a História, produzindo um tipo de dialética instantânea e mítica, capaz de divertir, ensinar e ser um sofisticado produto de arte, tudo ao mesmo tempo. As páginas grandes, carregadas de desenhos personalíssimos, detalhados em minúcias, estão envolvidas em narrativas potentes e equilibradas. Goscinny tinha pleno domínio do tom que deveria ser vertido nos quadros, de maneira a não desandar a história, aplicando grafismos geniais, referências escondidas e deformação nas fontes e onomatopeias, prescindindo dos diálogos quando podia, deixando os quadros e sons se contarem por si. Personagens como Asterix e Obelix, passeando em arte tão bem dominada e sincera, acabam lembrando, no fim das contas, seres bíblicos como Davi e Golias, ou mitológicos como Ulisses e o Ciclope, ou rei Minos, o Minotauro e Ariadne – coisas de eras, histórias, pessoas e narrativas mais puras e profundas. Após a morte de Goscinny a série tem um decaimento bastante vertiginoso. Então é melhor recomendar os álbuns publicados apenas até meados dos anos 70, finalizando um era poderosa nas HQs.



3 – OS SCHTROUMPFS (SMURFS): Peyo

Os anos 50 foram sem dúvida a era de ouro da BD clássica, quando as histórias em quadrinhos europeias conseguiram romper definitivamente o julgo das comics americanas e passaram, cada país a seu modo, a transformar as HQs do velho mundo em fenômenos culturais autônomos. No caso da Bélgica, duas revistas que atingiram seu esplendor nesta época foram determinantes para solidificar a cultura das HQs francófonas, exercendo obviamente grande influência no quadrinho francês. A Revista Tintim era editada por Hergé, trazendo, é claro (mas não só) sua criação principal, e foi responsável por fundar a linhagem da HQ de linha clara. Por outro lado, a Revista Spirou, que, entre idas e vindas, existia desde o período entre-guerras, abriu espaço para uma verdadeira constelação de grandes artistas franco-belgas de traço mais caricatural e viés cômico e crítico, dentre eles André Franquin, Morris.. e Peyo. 

De certa maneira, ao lado de Hergé, Peyo (Pierre Culliford) pode ser considerado um análogo francófono de Walt Disney, porque logo cedo a capitalização de seus personagens se tornou maior do que suas histórias em quadrinhos, e o próprio autor deixou de produzi-las pessoalmente para ir cuidar de franquias, merchandisings, parques temáticos e produtos baseados em suas criações improváveis e fascinantes. Dono de uma capacidade imaginativa que rivaliza com a de Goscinny, Peyo possuia natural senso de construção narrativa, e suas BDs estão entre as mais prazerosamente legíveis dentre os mestres franco-belgas. Sua primeira criação de sucesso foi a série Johan e Pirlouit, situada em um adorável universo medieval onde temos como protagonista um jovem escudeiro e seu ajudante ranzinza e aloprado que servem como buchas-de-canhão para os mais cômicos e estapafúrdios problemas do reinado local. Já nesta série Peyo demonstra completo domínio do tempo nas HQs, usando páginas inteiras sem mudar de cenário e criando grande número de situações e ações não-dialogadas. Impressiona sua natural e seletiva capacidade de saber o que mostrar e o que não mostrar em uma narrativa que segura e abre os requadros com timing muito preciso e brilhante dinamismo. Seus personagens são desengonçados e não conseguem fazer nada direito, contrapondo, já nos anos 50, aos virtuosismo tolo dos heróis americanos. 

Os Schtroumpfs, que ficaram conhecidos em nossa cultura pela denominação em língua inglesa – os Smurfs: realmente é difícil pensar em um não-francófono se acostumando a pronunciar o termo original, que é difícil até para os franceses, apesar de ser exatamente esta a piada do nome – , aparecerem em um dos melhores álbuns da série Johan e Pirlouit, “A flauta de seis schtroumpfs”, de 1958, e posteriormente ganharam uma série que hoje contabiliza mais de 20 álbuns, transformados em histeria global após a série animada da Hanna-Barbera (supervisionada por Peyo) nos anos 80. Esta história colocava Johan e Pirlouit de encontro com um lugar adimensional e feérico, o “país maldito”, onde eles teriam de recorrer à ajuda de pequenos gnomos azuis, mal-humorados, excêntricos e irascíveis (mais afrancesados que suas contrapartidas folclóricas do norte da grã-bretanha), que se comunicam usando a impronunciável palavra schtroumpf como verbos, adjetivos e substantivos, tornando difícil uma comunicação que não fosse entre eles. 

Nesta primeira história, o Schtroumpfs parecem bem mais uma massa impulsiva e homogênea de pequenos diabinhos azuis do que uma comunidade organizada em que cada cidadão possui uma característica própria (como vemos no desenho animado). Porém, mesmo com uma aproximação mais clara com as sociedades humanas nos álbuns a partir dos anos 80, as HQs dos Schtroumpfs até hoje não perderem sua diretriz não-maniqueísta, em que seus protagonistas são desarranjados e flutuantes, com grande quantidade de arquétipos egoístas, mesquinhos e dignos de pena. Suas personalidades falastronas e enxeridas de certa maneira ajudaram as BDs a não se distanciarem do gênio voluntarioso do europeu continental. O antagonismo entre o Grande Schtroumpf (Papai Smurf), único ser de bom senso no país maldito, e o alucinado, patético e misantropo bruxo Gargamel (o devorador de Schtroumpfs) ainda conta entre os mais clássicos e impagáveis pares de nêmesis dos quadrinhos, não deixando dúvidas de que esta série é famosa por apelar ao delirante e ao irracional, mas ao mesmo tempo tem o mérito de ajudar a fundar, esteticamente e tematicamente, a tipologia de todo um universo nas HQs mundiais.

Confira também um primeiro corte nas BDs - parte 2