13 PERGUNTAS PARA BATISTA
/por Márcio Jr.
Se no longínquo Brasil pré-pandêmico você era frequentador de feiras de quadrinhos, com certeza passou pela mesa de Marcos Batista. E se você já fez parte dos circuitos mais underground do rock, as chances de ter visto o mesmo Batista num palco não são nada remotas. Agora, se o seu lance é cartum na internet, a possibilidade de desconhecer o sujeito é virtualmente nula. A boa nova é que Batista acaba de lançar seu primeiro livro-solo: O que conto quando conto uma piada. Com curadoria do onipresente Diego Gerlach e design classudo do craque Stêvz, a compilação de mais de 200 tiras e cartuns é um convite ao riso. Duvido que consiga segurá-lo. Dá-lhe, Batista!
1. Batista, o que você conta quando conta uma piada?
Algo engraçado, espero. Busco sempre falar de algo ruim e desagradável na forma de anedota. Isso torna as piadas crocantes, isso torce o eixo das coisas. Na maior parte das vezes o que digo não é totalmente racional, é um sentimento que exprimo em forma de piada. Busco a piada-conflito.
2. Você é um cartunista muito ativo nas redes sociais. Por um longo período, publicou religiosamente um cartum novo todo santo dia. Não é fácil. Por que se impor um desafio dessa natureza?
Bom, pra mim não é difícil. Fazia assim por gosto em fazer, pela simples fruição. Desenhar, pensar, ter ideias, resolver elas em forma de humor, me dá um prazer danado, um sentido de vida. Pra mim é uma coisa realmente necessária. Mas parei de publicar diariamente porque cansei das redes. Por muito tempo vivi com essa ansiedade que elas geram, mas agora chega. Acredito que as redes evoluíram para as pessoas tentarem agradar o algoritmo, em vez do contrário. Então hoje posto menos.
3. Quando foi que você se deu conta que tinha material para um livro?
Eu sempre soube que tinha material, eu só não sabia qual. À medida que os anos iam passando eu via o baú enchendo e as coisas ficando mais robustas. Só quando Gerlach entrou na história e começou a propor os cortes que o material começou a tomar forma.
4. Além de um excepcional texto de abertura, a curadoria dos mais de 200 cartuns que compõem O que conto quando conto uma piada ficou sob a responsabilidade do quadrinista Diego Gerlach. Quais os motivos dessa (feliz) escolha?
Essa ideia do Gerlach editar surgiu em 2019, na Des.Gráfica, quando lancei o gibi Máquina de Lavar pelo selo Vibe Granular dele. Ele fez uma edição legal do material, carinhosa. Me deu segurança do meu trampo, então na ocasião eu disse que quando fizesse um livro meu gostaria que ele fizesse a seleção.
Eu não queria escolher o que entraria no livro nem como seria o projeto gráfico. Eu precisava de um editor (Gerlach) e de um designer (Stêvz). Por eu confiar no Guerla ficou fácil chegar no resultado do livro. Como dito acima, eu sabia que tinha material, mas não sabia qual, e ele deu o norte. Um exemplo prático é que a última coisa que eu faria era reunir tantos quadrinhos com piadas gays, mas sendo escolha dele mostrar estes trabalhos, fiquei em paz. Coisas que eu não curto entraram, outras que eu amo, não. E nada disso ficou sofrido pois a escolha foi feita por um editor em quem eu confio na inteligência e na visão de mundo, que lê meu trabalho de uma forma que acho interessante.
5. O livro também traz um texto de Cynthia Bonacossa sobre você e seu trabalho. É um depoimento bastante íntimo e pessoal. Que papel um texto dessa natureza cumpre em O que conto quando conto uma piada?
Esse texto é uma parte do sensível, do carinhoso, que tem no livro. Em geral, as aberturas de livros colocam quem escreveu a obra num holofote, e a Cynthia me tira desse lugar e me coloca na rua, no meio do público. Ela me expõe de um jeito que acho interessante para quem está conhecendo meu trabalho. Cynthia me alegrou escrevendo esta visão dela, sou super grato. Não foi uma sugestão, ela fez assim e eu gostei, bem fora da curva. Acho que os textos da abertura do livro se completam bem, falando do trabalho e da vibe de quem faz o trabalho.
6. Você trata de política, comportamento, sexualidade, cultura... Existe algum tema que lhe escape?
Não sei dizer. Mas se algo me incomoda eu pego e faço. Tem alguns que acho difícil encontrar o veio da graça, como as questões indígenas por exemplo. Mas no dia que encontrar um viés, certamente farei.
7. Confesso que, assim que abri o livro, não consegui parar de ler até chegar ao final. As risadas – e eventuais gargalhadas – vieram aos montes. Existem cartuns mais profundos e outros mais diretos, mas o que amarra todo o material é a graça. Onde nasceu esse seu compromisso em fazer cartuns invariavelmente engraçados?
Com a turma do fundão de toda sala de aula que frequentei, hehe. Mas de forma clássica, foi com a F., revista editada nos anos 2000, e com a Quase., revista feita no mesmo período (e que se tornou a TV Quase). E eu virei um humorista, ou comediante, sei lá, nesse formato gráfico, então pra mim a graça é o objetivo, é o primeiro lugar. Acho o timing do humor gráfico, e o suporte dele, muito potentes. E temos muitos exemplos de quem soube fazer trabalhos incríveis na linguagem. É o potencial desse humor que busco, que me instiga. Tanto que pra mim não é bem "quais os limites do humor", mas sim "quais as possibilidades do humor". Sigo investigando.
8. Além dessa graça que se impõe em cada cartum, seu trabalho parece dar as costas ao politicamente correto de uma forma não reacionária – um traço muito raro, principalmente se considerarmos o momento de polarização que vivemos no Brasil, onde a direita e extrema direita se apropriaram da tal incorreção política. Como você chegou a esse equilíbrio? Ele é uma construção racional ou algo que simplesmente brota, sem que você perceba? A impressão que fica pra quem lê é que você faz isso com a maior naturalidade.
Acho que o equilíbrio vem da sensatez que busco para basear as piadas. Por mais que o humor seja a suspensão do bom senso, quando eu termino a piada, ela tem que estar dentro do bom senso. Quem ler e quiser me acusar de algo vai ter que forçar a barra ou vestir uma carapuça. Esse processo passa por um pensamento racional - muitas vezes eu tenho uma ideia absurda e consigo torcê-la até que vire uma piada. Mas o processo é alimentado todo o tempo por ideias e sacadas que brotam sabem-se lá de onde. Daí, acho que a naturalidade que você comenta surge quando o trabalho é visto em conjunto, pois ele é contínuo.
O que busco em algumas piadas é a inversão total de valores. E um país polarizado é um prato cheio. Interessante como você coloca a pergunta, "politicamente correto de uma forma não-reacionária", acho que assim você consegue reabilitar o politicamente correto sem atrair olhares azedos. Eu acho que nesse âmbito polarizado do Brasil, a direita em geral é burra. E a esquerda, que é onde estou, é burra e meia, então dá pra zoar geral sem muita concessão.
Engraçado que, buscando um paralelo para um politicamente incorreto que exemplifique como ele é importante e saudável, me veio o Angeli e parte da revista MAD. Sua pergunta me faz bradar que o politicamente incorreto é possível, é gostoso e é engraçado.
9. Ainda nesse aspecto, você é assumidamente gay, faz piadas sobre gays e mesmo assim não soa preconceituoso. Que porra é essa?
Fazer piada com esse assunto me fez ficar ainda mais confortável nessa pele. Acho que uma coisa boa disso que faço é mostrar que dá sim para rir dos oprimidos, dá pra fazer piadas com os lados fracos. Acho inclusive que isso faz parte da inclusão desses tipos (minorias) na sociedade, na visibilidade, na representatividade. Depois de tanto tempo sendo ridicularizados por motivos errados e sem chance de defesa, é importante poderem ser ridicularizados de uma forma educada, civil e elaborada. Faz com que a sociedade possa elaborar esses temas e partir para um avanço de naturalização e aceitação.
Tenho notícia de um parente que leu o livro, riu das paradas, e no final disse que as piadas o ajudaram a pensar melhor sobre as questões homossexuais (ele não é um cara gay friendly). Ou seja, me parece que rir de gays sem ser da forma burra e preconceituosa com a qual ele sempre esteve acostumado, fez ele ter uma luz. O riso liberta.
10. O que é o desenho pra você, Batista? Mais que isso: como você vê seu próprio traço?
É uma extensão da alma. Ele me ajuda a realizar coisas que não consigo no corpo ou no intelecto. Ele me leva para o espaço fora de mim. Meu traço é libertador, não me limita em nada. Sei que posso e pretendo estudar e aprender mais, não para desenhar bonito, mas para me expressar melhor, para ampliar essa potência. Quando comecei a desenhar, depois dos 20 anos, o processo era muito sofrido. Cheio de dúvidas, uma realização da minha incapacidade. Até que me libertei totalmente disso e consegui soltar a expressão, sem medo de errar, sem borracha, sem aflição de chegar no fim e conseguir o resultado desejado. Grandes desenhistas com o passar do tempo chegam nesse traço básico que tenho, acho que cortei caminho, só falta me tornar um grande desenhista.
11. Você também é editor, agitador cultural, músico – de bandas incríveis, como Fodastic Brenfers, Grupo Porco de Grindcore Interpretativo e Madame Rrose Sèlavy. Você é um punk, em última instância. É daí que vem sua abordagem nos cartuns?
Eu sou um punk, e é daí que vem minha abordagem. Eu sempre quero chutar, destruir, ofender, dar voz a quem é excluído, levantar plateias. Ora de forma estúpida, ora com classe. Sei meu lado, sei o que defendo, mas não quer dizer que não vá chutar todo mundo pela frente.
12. Te conheço e posso afirmar que você é um ser humano doce e sensível. De vez em quando bate a crise?
Bate a crise? Bate. Ela passa? Passa. Volta? Volta. Claro que me acho um caos, claro que bate a crise. Mas são anos de análise, homeopatia, um pouco de aikido, grandes discos, leituras e atividades que aplacam a falta de sentido e a ansiedade. Acho que sou equilibrado, mas por muito esforço pessoal. E o desenho tem grande parte nisso.
13. Como ser tão amado, Batista?
Não tenho certeza, mas acho que ter um código de conduta e ser fiel a ele ajuda muito, pois ele libera a gente para amar. Ser amado de volta, uffs, é outra coisa. Mas muitas vezes rola. A gente não sabe o quanto é amado, mas é bom buscar de quando em quando ter certa noção. Isso coloca a gente num outro centro, tira a gente da alienação do ego. Como bom punk, por muito tempo odiei todos, até sacar que punk mesmo, ridículo, subversivo, é amar e mostrar que ama. Isso está nas minhas músicas, isso está nos meus quadrinhos.