RAPIDINHAS #20 - INDIE ROCK FEELINGS

por Ciro Inácio Marcondes e Márcio Jr.

Escrever sobre quadrinhos independentes ou de selos/editoras pequenas é um deleite porque essas obras não estão marcadas ainda pela apreciação e mercantilização do circuito viciado de influencers falando de gibi por aí. Assim como o rock virou uma espécie de mercado de nicho, direcionado para pessoas muito especializadas - porém, ressalto, sem dever para os gigantes nos ombros do quais eles andam (quer dizer: o rock de hoje é tão bom quanto o de sempre, porém nichado) -, os quadrinhos indie primam por maior experimentação, menos a perder, dedicação de fã (e não de estrela) e autores mais inteirados sobre o que está rolando por aí. Daí mais uma seleção bacanuda de indie rockers dos quadrinhos para os quais vale uma boa olhada, incluindo o gibi de Dona Dora “exposed” pela extrema direita no FIQ 2024. Ah, tem um gibi chinês da Comix Zone no meio aí, culpa do Márcio Jr., que demora demais pra entregar suas resenhas. (e tenho dito!) (CIM)

Quase um Ano – Deborah Salles (Selo Harvi, 2ª edição expandida, 2023): O diário é um gênero muito bom para explorar a subjetividade dos autores em nível cotidiano, muito íntimo e – especialmente – fragmentário. Ressalto a questão do fragmento porque, de um jeito ou de outro, a vida, a consciência, as histórias como um todo, tudo isso não passa de fragmentos mal ajambrados do fluxo irrefreável que direciona nossas existências. Quase um Ano, publicado como zine originalmente em 2017 (portanto, pré-pandemia), recebeu bela edição do selo Harvi e recuperou um dos trabalhos em HQ brasileira mais interessantes dos últimos tempos. Deborah Salles trabalha seu diário em quadrinhos com um temperamento melancólico, lacônico e lacunar, em que as (não desprezíveis) questões existenciais de quem está na casa dos 20 anos aparecem como hiatos, sem grandes eventos, um roteiro sem atos e sem clímax, baseado apenas num sentimento de insuficiência que permeia referências culturais, gatos, relacionamentos – detalhes reconhecíveis por quem vive a vida moderna nas grandes cidades. Um trabalho difícil, também de sensibilidade gráfica, que chama a atenção para esta jovem autora. Espero que não desista dos quadrinhos! (CIM)

Chapa Quente – André Kitagawa (Monstra, 2022): A republicação desta antologia de Kitagawa, complementada com novas histórias, cumpre uma função importante na historiografia do quadrinho brasileiro das últimas décadas. Ativo desde os anos 1990, primeiramente com dramas sociais urbanos mais ou menos semelhantes à clássica serie Balas Perdidas (de David Lapham) e depois progredindo para um estilo expressionista bem mais sombrio que se aproxima de Peter Kuper ou Lorenzo Mattotti, Kitagawa é um sobrevivente do mercado autoral brasileiro. Seus quadrinhos são urgentes, virulentos, sem piedade e não raro chocantes. De seu estilo cru e devasso dos anos 1990 e começo dos 2000 até a produção da última década, há um salto para a complexidade narrativa, o uso impactante das cores e uma figuração cada vez mais metafórica em suas histórias, usando gêneros como ficção cientifica, horror e super-heróis como trampolins para leituras complexas da nossa realidade, sempre recorrendo à violência urbana e a um rude e implacável fatalismo que desafia qualquer otimismo que possamos ter com a sociedade. (CIM)

A Casa do Diabo – A Mina, a Lesma e o Caracol (Dona Dora, Pé de Cabra, 2023): Esta edição da Pé de Cabra coleta pequenas histórias, sketches e todo tipo de experimentação maluca e surrealista da jovem autora de Brasília Dona Dora, uma promessa em termos de radicalidade em quadrinhos e possibilidades extremas do erotismo geração Z e adjacências. Em suma, são imagens agressivas porém calibradas por um humor non-sense muito do bem sacado, oferecendo desde uma versão alternativa para o éden cristão, até umas loqueragens BDSM bastante divertidas, além de diálogos insanos/hilários irrepreensíveis. Sem muita relação causa-consequência entre as histórias, acompanhamos um casal espertinho (a lesma e o caracol) e seu envolvimento com uma generosa dominatrix que pode ser resumido no pungente recordatório “Rolou alguma coisa forte entre você e a minha bunda”. Ou seja: quadrinhos que não são bunda mole, com bem-vinda aspiração ao delírio cotidiano geracional que todos enfrentamos uma hora ou outra. (CIM)

Amarras – Cecilia Marins, Barbara Teisseire, Giulia Tartarotti (Tangerina Books, 2022): Esta reportagem quadrinizada por Cecilia Marins, que nasceu como um projeto de TCC, tem tudo para se tornar um clássico do gênero dentre as HQs brasileiras. Primeiro, por seu tema, tão distante e ao mesmo tempo tão perto das sociedades urbanas modernas, ainda visto como tabu ou como parafilia em suas partes conservadoras. Aqui a caixa de Pandora é aberta e nos é mostrado com muita eficiência o universo vasto, multifacetado e carregado de nuances interessantes, dos fetichistas BDSM. Temos acesso à história destas práticas na antiguidade, no século XIX, em mídias diversas, em práticas diversas, a um rico vocabulário, a todo tipo de arranjo e acordos que permitam a viabilidade das várias combinações destas práticas. Em segundo lugar, vale ressaltar a sólida pesquisa realizada pelas autoras, que entrevistam especialistas acadêmicos, diversos tipo de fetichistas (acompanhando suas trajetórias individuais), registros históricos etc. Tudo isso “amarrado” em boas soluções narrativas, objetivas porém não simplistas, que engajam num envolvimento que humaniza nosso desejo por controle e submissão, por restrições e agressões, por dores e delícias. Um salto no quadrinho documental brasileiro. (CIM)

Aurélia precisa pagar o aluguel – Diego Sanchez (Mino, 2021)

O trabalho de um artista é uma espécie de investigação de si próprio. Logo, nada mais natural que sua produção mire um público da mesma geração. Aurélia precisa pagar o aluguel, mais recente HQ de Diego Sanchez, enquadra-se à perfeição neste modelo. Jovem adulto, o quadrinista tece, com propriedade e profundidade, um pequeno recorte temporal da vida da personagem-título – e daqueles que a rodeiam.

Vinda do interior, a promissora e descolada Aurélia trancou a faculdade, perdeu o estágio e está sem grana para o aluguel do apartamento que divide com três amigas-gos-gues. Foi parar, provisoriamente, no sofá da casa do irmão. A relação com a mãe é um fantasma. Pai? Parece que nem teve. E a cidade grande está ali, sempre cruel em sua oferta de rolês artsy, performances, namoros que não se consolidam, sexualidades diversas.

A vida de Aurélia não é uma tragédia, mas o drama de infinitos jovens adultos submetidos às mesmas condições. A temática não é nova ou original, mas o que garante a qualidade da HQ é a honestidade e maturidade com que Diego Sanchez despeja tudo no papel. Após um hiato de alguns anos dedicados, entre outras coisas, à tatuagem, o sujeito retorna mais firme que nunca. Não espere, portanto, a saída fácil de polissemias frágeis. Sanches explora a humanidade dos personagens encarando seus cotidianos ordinários e, portanto, tridimensionais.

Dono de um desenho inconfundível, o quadrinista despiu seu traço de absolutamente tudo que poderia ser supérfluo. Restou a essência da linha, espessa e trêmula, numa talvez inconsciente alegoria da vida. A disposição dos quadros pela página, com inusitados espaços livres, criam áreas de respiro, bolhas de temporalidade quadrinística. Tudo a serviço da história. (MJR)

Easy breezy – Yi Yang (Comix Zone!, 2022)

Yi Yang é young. Nasceu em 1994, na China – mas partiu pra Itália em 2013, para estudar Belas-Artes em Bolonha. Easy Breezy reflete esse frescor juvenil. A história do roubo de uma van – que por sua vez estava sendo usada no sequestro da pequena Yun Duo – é uma aventura frenética com ares de Sessão da Tarde. Quatro personagens disfuncionais que terminam por se consolidar como uma espécie de família. É nas vicissitudes da vida que os laços de amizade se estreitam. Fofo.

Há ecos do Tekkonkinkreet de Tayo Matsumoto – em versão matinê, claro. Não há demérito algum nisso. Pelo contrário, produzir uma HQ de alta octanagem mirando públicos mais jovens é um desafio que Yi Yang cumpre com excelência. Os desenhos angulosos – repletos de perspectivas alucinantes – nascidos de sua pena indomável nos arrastam por páginas de fluxo selvagem. Gibi delícia. (MJR)