Rapidinhas #12

RL_rapidinhas12_dragão_negro_capa.jpg

As Rapidinhas estão entre as mais tradicionais colunas da RAIO LASER. Quem não gosta de receber um pacote fresquinho de resenhas curtas, sobre quadrinhos dos mais mainstream ao mais independente, sempre com franqueza e qualidade? Desta vez são 13 novos textos. Leia a compartilhe o que te interessar! (CIM)

por Ciro I. Marcondes, Marcos Maciel de Almeida, Márcio Jr. e Pedro Brandt

RL_rapidinhas12_dragão_negro_01.jpg

Dragão Negro - Chris Claremont e John Bolton (Pipoca e Nanquim, 2019): Quer ler um irresistível conto de fadas com notório twist macabro, famoso também pelo realismo histórico e pelas microdetalhadas e magníficas ilustrações? Dragão Negro pode não ter sido um dos mais badalados lançamentos da editora Pipoca e Nanquim, mas é um dos tiros mais certeiros para quem busca simplesmente um quadrinho clássico e ao mesmo tempo maduro, cortesia dos selo Epic, da Marvel dos anos 1980. Aqui encontramos a pena de Claremont, na minha opinião, mais afiada e soturna do que nos quadrinhos de super-herói: acompanhamos a trajetória do cavaleiro Jamie Dunreith, um cruzado danificado pela vida que tem uma nova missão, que é descobrir o envolvimento do antigo amigo Sir Edmund com uma catastrófica magia das trevas, e, se possível, matá-lo por isso. De quebra, ele ainda se apaixona pela venal filha de seu nêmesis e se descobre também espécie de necromante, o que o coloca em contato com o espírito misterioso do Dragão Negro.

RL_rapidinhas12_dragão_negro_02.jpg

Esta HQ na Inglaterra do século XII tem falas verossímeis, espaço e tempo coerentes, grande impacto no uso dos quadros, além de uma dosagem perfeita no uso de coadjuvantes, escudeiros e toda sorte de motivos medievais. Suas mulheres são enigmáticas e cobiçosas, protagonizando algumas das melhores cenas. Claremont escreve com argúcia e clareza, mas as falas são longas e necessárias, aproximando o quadrinho de um imaginário literário denso de cavalaria, “salpicado” de magia. As ilustrações de Bolton são, ainda, um caso à parte: com um detalhismo realmente digno de Hal Foster (não deixa de ser uma homenagem ao mestre), ele traz vida a rostos humanos quase reconhecíveis, e a movimentos que parecem esculturas barrocas soltas no ar. Sem dúvida um dos quadrinhos que mais gostei de ler no ano. (CIM)

RL_rapidinhas12_toolschallenge01_01.jpg

Tools Challenge 1 - Max Andrade (Draco, 2016): Este quadrinho foi publicado na web originalmente em 2011, mas o crescimento de um pequeno culto fez com que a Draco se interessasse em republicá-lo em 2016. O autor é Max Andrade (atual residente de Brasília) e Tools Challenge é um dos mangás brasileiros mais lidos da atualidade. Já comporta seis volumes. Não sou muito fã de shonen, mas me interessei pela trajetória deste produto. O próprio Max me alertou sobre o aspecto ainda um pouco amador e precário do primeiro volume (mesmo tendo passado por um “makeover” na republicação da Draco), mas foi esse mesmo que comprei. E, olha, não me desgostou. Max desenha decentemente, seus personagens revelam coisas somente pelo olhar, e há domínio do timing narrativo.

A história é bobagenta, mas isso está de acordo com o gênero e (suponho) público-alvo: no mundo de Tools, cada pessoa nasce com uma ferramenta (?), que cresce com ele. Raion (parece aqueles nomes de personagens que a gente cria quando é criança) nasceu com uma “série ouro” (= muito especial), mas ela lhe é roubada no berço. Se ele ficar muitos anos longe da ferramenta, ele morre. Então, adolescente, parte para uma jornada muito porradeira para recuperar sua chance de viver. A história é daquelas em que o herói topa com seus amigos e inimigos por acaso no meio da rua, e isso é o pretexto pra pancadaria começar. Acho mongol, mas não tenho nada contra, e shonen tem muito non-sense mesmo. De fato, essa primeira edição é cheia de irregularidades, porém, existem aquelas minúcias de mangá (tipo humor sem vergonha e desenhos fofinhos no meio de desenhos normais) que já apontavam um mangaká com consciência do que pode fazer, o que (dizem) acontece nos outros volumes. (CIM

RL_rapidinhas12_toolschallenge01_02.jpg
RL_rapidinhas12_enxaqueca_01.JPG

Enxaqueca - Felipe Parucci (Lote 42, 2018): Felipe Parucci ganhou muita moral comigo depois que lançou Já Era, pela Lote 42 em 2016, uma espirituosa narrativa sobre recomeços. Infelizmente, sua mais recente produção, Enxaqueca, de 2018, viabilizada por meio de financiamento coletivo, não deixou tanta saudade quanto o irmão mais velho. O gibi começa com uma pegada muito bacana, com ares de caderno de ilustração feito enquanto o professor não estava olhando. Tem efeitos de desenho interessantes, que remetem à arte-final feita no lápis, por mais estranho que isso possa parecer. 

Enxaqueca conta a história de um humano escolhido - por uma entidade cósmica - para pagar pelos erros da humanidade com uma dor de cabeça monstruosa. Para se proteger desse tortuoso destino, o cidadão em questão toma um remédio com resultados surpreendentes, que envolvem a formação de um supergrupo estilo changeman, que enfrentará o responsável pela maldição. Se, no quesito da arte, a qualidade da HQ é irretocável, a coisa começa a desandar com o desenrolar do roteiro. A motivação da tal entidade é pouco espontânea e os diálogos da HQ parecem ter sido feitos de modo apressado. Outro problema do argumento é que ele é muito curto para cobrir 70 páginas. Lembrando uma piada esticada ao máximo, o gibi peca pela duração excessiva do combate entre os protagonistas.

RL_rapidinhas12_enxaqueca_02.JPG

Como fez em Já Era, Parucci acerta ao investir no humor escondido nos pequenos detalhes, no melhor estilo “entendedores entenderão”. Uma pena que este é um dos poucos momentos em que o autor demonstra a inspiração presente na obra anterior. Entre mortos e feridos, o que nos resta é torcer pelo retorno triunfal deste talentoso quadrinista radicado no sul do Brasil. (MMA)

capa.jpg

Uma Irmã – Bastien Vivès (Nemo, 2018): Fiquei positivamente surpreendido com esse trabalho do jovem quadrinista francês Bastien Vivès, publicado pela Nemo ano passado. Talvez tivesse ficado ainda mais se tivesse lido quando era mais novo. Afinal, não é todo dia que se lê uma história sobre iniciação sexual escrita com tamanha sensibilidade. O gibi impressiona pela fluidez, fuga de clichês e técnica de desenho, quase minimalista.

Ótima (e ousada) escolha do autor foi a de não representar os olhos dos personagens, ideia que casou muito bem com a tônica da história - sugerindo que os fatos narrados poderiam acontecer em qualquer lugar – e faz o gibi se destacar na multidão de lançamentos do mercado. Agora é correr atrás das outras HQ do cara, como o Gosto do Cloro (Leya, 2013) e torcer para que mais coisas saiam no país, pois o Brasil ainda é praticamente um virgem quando se fala no trabalho do parisiense. (MMA)

imagem uma irmã.jpg
RL_rapidinhas12_abelamorte_01.jpg

A Bela Morte - Mathieu Bablet (SESI-SP, 2019): Sabe aquela história de não julgar um livro pela capa? Pois então, A Bela Morte, do francês Mathieu Bablet (lançamento da editora SESI-SP), instigou minha curiosidade logo pela capa: em um terraço, três personagens contemplam uma cidade aparentemente em ruínas enquanto um inseto gigantesco passeia pelo cenário. O tema “fim do mundo”, em suas infinitas possibilidades, é capaz de causar eterna fascinação. Uma folheada pela publicação, de 160 páginas, mostra desenhos caprichados em paisagens pós-apocalípticas, coloridos com uma paleta (puxada para tons de azul e marrom) bastante particular, que dá personalidade às ilustrações. A leitura, entretanto, não foi uma experiência que acompanhou as expectativas iniciais. A trama, em resumo, mostra as andanças de um trio de sobreviventes à uma invasão de insetos responsáveis pela destruição da Terra. Na última página, Babblet rememora: “O surgimento desta nova versão [de A Bela Morte] era a oportunidade de me debruçar de novo sobre um desenho na época ainda hesitante, um método de trabalho que exigia ser aperfeiçoado, e uma profusão de detalhes que hoje eu faria diferente”. 

RL_rapidinhas12_abelamorte_02.jpg

De fato, trata-se de uma obra com problemas perceptíveis logo no começo. Ainda que bom ilustrador, aqui, Bablet não mostra domínio de narrativa ou de dramaticidade. Algumas passagens, especialmente as idas e voltas na linha do tempo, são meio truncadas. O timing dos acontecimentos é mais lento do que o necessário, deixando tudo um tanto quanto monótono. Os cenários se tornam repetitivos demais. Para piorar, falta carisma aos personagens (sempre com a mesma feição) e suas motivações não causam engajamento junto ao leitor. Para um autor novato, caso de Mathieu Bablet em 2011, quando A Bela Morte foi publicada na França pela primeira vez, esta HQ, sem dúvida, mostra fôlego e revela um quadrinista de potencial. Tanto que, mesmo decepcionado com este quadrinho, continuo com curiosidade de conhecer outras criações do francês. (PB)

RL_rapidinhas12_istonaoehumassassino_01.jpg

Isto não é um Assassino - Hugo Aguiar e Gustavo Machado (SESI-SP, 2018): Sou um grande fã do pintor surrealista belga René Magritte. Cheguei a me demorar no aspecto cinematográfico de sua arte (palavra x imagem a partir do cinema silencioso) em minha tese de doutorado. Magritte era fã de Fantômas (1913), de Feuillade. Poucos pintores me impressionam como em suas visões e desarranjos imagéticos/semânticos, somente em parte compreensíveis, sempre perturbadores. Talvez por isso (mas certamente não só) tenha me simpatizado por esta homenagem que Hugo Aguiar e Gustavo Machado (este, um veterano ilustrador brasileiro - de Zé Carioca ao gibi do Gugu) realizaram em 2016 sobre o imaginário do pintor belga. A SESI-SP a imprimiu numa ótima edição em 2018.

Isto não é um Assassino é uma narrativa silenciosa, usando a premissa do sonho (um tanto vulgar para se associar a Magritte, mas tudo bem) para reinserir telas famosas do pintor (como “A evidência eterna” e “A reprodução proibida”) e seus diversos tropos numa sequência tipo slasher em que a produção do assassinato (de sua esposa Georgette) é realizada, logicamente, por suas próprias criações de pesadelo. O quadrinho tem volume e impacto. Ele nos permite visualizar as criaturas de Magritte tomando forma, enredando uma narrativa, pondo aquilo que é estático efetivamente em movimento (algo que já estava latente). Daria uma boa animação e traduz, numa linguagem de atrações, o magnetismo inefável de frutas gigantescas na cara das pessoas, uma chuva de homens de sobretudo, e, claro, cachimbos por toda parte. (CIM)

RL_rapidinhas12_istonaoehumassassino_02.jpg
Lechevalier_capa_Divulgacao_sofrente_baixa.jpg

Le Chevalier: Arquivos Secretos – A. Z. Cordenonsi e Fred Rubim (Avec, 2016): Le Chevalier é uma versão infanto-juvenil competente – mas nada extraordinária – da Liga Extraordinária do Alan Moore. Aventura steampunk, detetives, Paris, segunda metade do séc. XIX. Cordenonsi tem ritmo. Falta malícia – aqui, pelo menos. Fred Rubim é uma bela promessa. Por enquanto, ainda está muito na cola do Gabriel Bá – o que resulta em um Mike Mignola sem peso e sem drama. Espero conhecer outros trabalhos da dupla. Fico pensando que, se ao invés de álbum fosse um gibi de banca, bem baratinho, poderia fazer a cabeça de muito garoto de 12 anos. (MJR)

Rapidíssimas (zines, etc.)

RL_rapidinhas12_viralata.jpg

Vira Lata - Número Dois - João B. Godoi (Independente, 2018): Não li o número um desta série de zines de João Godoi, que hoje faz escola de quadrinhos em Angoulême. Mesmo assim achei espirituosa esta versão “tudo sobre o nada” à la Seinfeld (guardadas as devidas proporções) que ele criou primeiro para uma história em que três carinhas meio iguais dividem uma república imunda, e uma amizade entre outros três (incluindo uma mina), em outra república, que vivem miseravelmente de bicos e compartilham um estilo “millennial loser” de ser, afeitos a ironias em cada diálogo e perspectivas baixas para o futuro. Parece pessimista, mas tem um aspecto lacônico e niilista que resgata os tais “quadrinhos com baixa autoestima” dos quais falávamos em 2012, porém com mais personalidade. Os desenhos de Godoi e sua narrativa são bastante “humildes”, mas é justamente isso que garante o carisma da revistinha. (CIM)

Dias Frios de Verão - Quatro - Cadu França (Independente, 2017): Este zine vindo do Rio de Janeiro fala sobre - adivinhem - um grupo de amigos millennials com problemas existenciais porque não se enquadram nas difíceis agruras da vida adulta. Pode parecer uma premissa batida, e este quadrinho não tem como ativo o non-sense de Godoi (acima), mas tem também seus méritos. Em primeiro lugar, há um acabamento manual bem delicado, amarrado com cordinhas, e tal, todo em vermelho e rosa. Fófis. Depois, com poucos quadros e sketches, o autor cria personagens bastante facilmente identificáveis e realistas  - às vezes são hipsters irritantes, mas dá pra desmascarar a humanidade por trás deles também. Por fim, há uma variedade de abordagens na linguagem: às vezes são cards explicativos dos personagens, às vezes quadrinhos de página inteira, às vezes prints de celular, pin-ups, cartas, etc. Tem economia de abordagem e variedade de recursos ao mesmo tempo, além de ser tocante à sua maneira. (CIM)

RL_rapidinhas12_diasfriosdeverão.jpg
RL_rapidinhas12_pombos.jpg

Pombos! - Débora Santos e Márcio Moreira (Independente, 2015): Pombos é um zine cearense tipo one-shot que já está meio velhinho, mas vale a pena comentar porque o adquiri recentemente. Aqui, ao invés da angústia juvenil de um grupo de amigos, temos a angústia juvenil de uma só personagem, que começa a falar com os animais para resolver problemas perturbadores como o jeito super protetor dos pais da mina, ou a crise de arrumar um primeiro emprego de analista de processos sobre o qual ela nada sabe. Mesmo que essas crises como tema não sejam muito originais (basta um bom chá de realidade), esse quadrinho tem diálogos bem escritos, cuidado com angulações e transições interessantes entre os quadros, e bom humor à la Strangers in Paradise. O melhor, no entanto, é a bela arte “indie” de Débora Santos, limpa mas expressiva, que combinou bem com as tonalidades de rosa imprimidas pela colorista Brendda Lima. (CIM)

RL_rapidinhas12_bighead.jpg

A Turma do Big Head #01 - Marcela Lois (Independente, 2018): Dentre os vários exemplares do gênero “universitário loser, millennial e sem perspectiva na vida” que recebemos por aqui, Big Head é com certeza o melhor. Essa Marcelo Lois tem o dom, alguém a financie aí. Os desenhos dessa sitcom - sobre um irmão mais velho inútil e maconheiro e uma irmã mais nova mais safa (porém que também tem suas bagaceiragens) - são simples, underground, mistura de Rick and Morty com Angeli. Sem chororô, a crise da juventude aqui é tratada com letal autoironia, e a coisa toda é leve, sacana, extremamente divertida. Um stoner em quadrinhos de primeira. Pena que, como a maioria dessas séries prosaicas em zine, é também muito curto, e serve apenas como amostra. Mas é um bem sacado bolado de HQ, com uma esperteza que vem faltando no Brasil. (CIM)

RL_rapidinhas12_doesthislooklikeacomic.jpg

Does This Look Like a Real Comic to You? - Marc Casilli (Incompleta/Sorry Ending Press, 2017): Este zine é uma coletânea do quadrinista Marc Casilli, um brasileiro vivendo nos EUA com ambições de alcançar o mercado internacional e que publica suas HQs em inglês. A vibe é “mais indie impossível”, com citações a Woody Allen e Bob Dylan e a emulação de uma atmosfera estilo Adrian Tomine. Ainda que algumas histórias funcionem bem - gostei de uma sobre uma ida fracassada a um show do Weezer e outra sobre a influência do filme Tubarão no imaginário do autor, que são bem sacadas e provocam reflexões -, preciso dizer que o resultado geral é um tanto anódino . Os desenhos, um tanto precários, não ajudam, porém valeu a abordagem que ele fez do período dos protestos que levaram ao impeachment de Dilma e ao poço sem fundo no qual estamos eternamente caindo. Há potencial, mas este “early work” está aquém do talento do autor. (CIM

RL_rapidinhas12_lacrimosa.jpg

Lacrimosa - Catharina Baltar (Independente, 2017): A história de uma gotinha de lágrima que se desespera por não ter condições de ajudar a garota que a chorou. Pode parecer piegas, mas a sensível arte com aquarela e giz de Catharina Baltar, num espectro de cores frias, ajuda a transformar seu estilo, influenciado pelo mangá, numa contrapartida coerente ao delicado roteiro. Lacrimosa é, sim, um desses quadrinhos “fofos” para os quais muitos torcem o nariz (inclusive eu de vez em quando), mas, se o lermos em chave infantojuvenil, temos uma metáfora criativa para o poder da realização individual, envelopada num visual dedicado e, sim, muito bonito no final das contas. (CIM)