por Márcio Jr.
Silêncio me agarrou pela alma. Garimpava patologicamente um desses sebos da vida quando me deparei com aquela capa maravilhosamente simples, o personagem com seus olhos de serpente a fitar longe o horizonte, ignorando completamente minha presença.
Passei a mão no livro – uma edição portuguesa da Livraria Bertrand, 1983, 164 páginas – e me surpreendi com a uso das massas de preto, a fluidez do traço, a composição das páginas. O preço convidativo selou a sina do meu primeiro contato com a obra de Didier Comès.
A ignorância é mesmo uma benção. A esta altura do campeonato, me surpreender com um autor desconhecido é um prazer cada vez mais raro. Quanto mais um colosso das dimensões do belga Dieter Hermann Comès, nascido em 1942 em Sourbrodt, aldeia cindida em uma parte francófona e outra alemã. Tal e qual seus pais.
A mãe falava francês, o pai, alemão. No colégio, tendo em vista uma maior “integração” com os colegas, os irmãos maristas afrancesaram-lhe o próprio nome – à sua revelia, claro. Dieter vira Didier. “Um bastardo de duas culturas”, Comès se autoproclamaria anos mais tarde.
Não param por aí. Ao se revelar canhoto, obrigam-no a escrever com a mão direita. E assim segue a vida: destro na escrita e criador de infinitas constelações imagéticas por intermédio de sua mão esquerda. Tais opressões, assim como a infância rural e supersticiosa, serão a matéria-prima de seus quadrinhos – que têm em Silêncio o mais reconhecido e festejado exemplo.