Os Shingouz
Como ágil diplomata e às vezes como sorrateira negociadora, ela vai atravessando um mar kafkiano de pistas em zonas cada vez mais perigosas até que possa obter o paradeiro de Valerian. Percebam: primeiro, ela negocia com os horripilantes e pouco confiáveis Shingouz, mistura de morcegos com tamanduás, que os levam até os Kamunik, centauros medievais dados a provações e testes de resistência, que os levam até os sórdidos e ameboides Suffus, que dominam o mundo dos prazeres e das fantasias, e os reconduzem até os libidinosos Bagoulins, que, por meio de alucinações, os fazem chegar até os Groubos, que se parecem com dinossauros aquáticos e andam junto com os Zuurs, águas-vivas capazes de travar contato telepático, e assim sucessivamente...
A cadeia kafkiana pela qual essa garota tem de passar (um pequeno calvário feminino), como se pode ver, é imensa e muito fértil na variedade tanto morfológica quanto cultural de alienígenas. Certamente Christian nutria imenso prazer nesta arte demiúrgica de criação de mundos, culturas e seres que inundam a ficção-científica e a fantasia como um todo, assemelhando-se a Borges no seu bestiário (O livro dos seres imaginários). Este prazer, o de criar e o de travar contato com novos mundos, fruto da especulação livre da imaginação, certamente é um dos trunfos destes dois gêneros, que se inserem nestas zonas libertárias da mente, nestas possibilidades de desamarração do cotidiano em coisas outras, que desimpedem princípios rigorosos de realidade e nos permitem almejar saltos em queda livre existencial. Daí, talvez, a presença dos dois gêneros misturados em obras híbridas, como a space opera ou space fantasy, como já vimos em Storm, O andarilho dos limbos, Agaragem hermética e, é claro, em Star Wars.