Bilal: desenhista solteiro à procura de escritor desimpedido
/por Marcos Maciel de Almeida
Em meados dos anos 90, era difícil encontrar gibis europeus em Brasília. A Meribérica Brasil estava à beira da falência, a LPM estava reduzindo o número de publicações e a Martins Fontes também estava desacelerando. Por essas e outras, meu contato com a produção do velho continente era praticamente zero. O motivo principal, entretanto, era ser somente um leitor de super-heróis, que apenas fingia ter interesse em quadrinhos além do nicho Marvel/DC. Tudo mudou na época em que abri uma comic shop. De repente, começou a aparecer um bando de cliente pedindo gibis feitos por uns caras de quem eu nunca tinha ouvido falar. Enki Bilal era um nome recorrente. Lembro que uma vez eu consegui atender a uma encomenda e trazer a Santíssima Trindade do autor, a Trilogia Nikopol (“Feira dos Imortais”, “Mulher Armadilha” e “Frio Equador”). Depois disso, fiquei com esses títulos ressoando na cabeça, seja por sua sonoridade ou pela aura de mistério que evocavam. Qualquer dia desses seria minha vez de mergulhar nesse novo universo, pensava. Foi o que ensaiei fazer, mas sempre com passos hesitantes.
Corte para 2009, quando estava na Europa e resolvi correr atrás do prejuízo. Com minha fixação utópica pelo artista franco-sérvio, acabei não dando muita bola para outros autores de BD. Devo ter adquirido, nesta viagem, uns quinze álbuns e pelo menos a metade era dele. Bem, como todo leitor de quadrinhos consumista (tem algum que não seja?) acabei comprando muito mais do que teria tempo para ler. Somente dez anos depois consegui dar conta do recado. Mas e aí, afinal de contas, qual foi a minha impressão sobre o trabalho do quadrinista? Depende. O Bilal está escrevendo sozinho ou tem companhia?
Os quadrinhos do Bilal desacompanhado, em geral, deixam a desejar. Não pela arte, claro, que normalmente está sensacional. Ele lembra um Moebius mais quadradão, como se fossem irmãos separados do seio familiar. A diferença é que enquanto Giraud enveredou por um traço cada vez mais leve e abstrato, Bilal teria focado em peso e densidade. Ok. Cada um na sua. Por isso, longe de mim de querer fazer qualquer crítica ao traço do ex-iugoslavo. Meu grande senão surge quando ele resolve também escrever. O resultado é bastante irregular.
NaTrilogia Nikopol, por exemplo, Bilal tece uma saga plena de existencialismo e redenção, mas vazia de sentido, onde imperam o nonsense e o hermetismo. Nada contra gibis doidões e com histórias impenetráveis, mas essa aqui não conseguiu dialogar comigo. Eis mais um ponto de aproximação com o bom e velho Giraud. É inegável que ambos adoravam dar uma bela viajada. A diferença é que Moebius propositadamente – ou relapsamente, nunca saberemos – fazia a sequência de muitas de suas histórias sem ter ideia de onde elas haviam parado. Havia uma espécie de porralouquice autêntica, muito bem-vinda. Em Bilal, entretanto, a loucura parece mais burocrática, quase pretensiosa. Foi por essas e outras que não consegui passar da décima página de Animal Z, outra obra também escrita por ele. Pensa num troço chato.
A coisa muda de figura quando Bilal está acompanhado por outros escritores. É inegável que a qualidade de sua obra aumenta substancialmente quando divide o trabalho. Talvez isso ocorra porque seus parceiros de aventura sejam mais hábeis em filtrar e transmitir os pensamentos que habitam a mente do velho mestre. Peguemos, por exemplo, o Exterminador 17 (1979), feito com o também francês Jean-Pierre Dionnet. A saga do androide que, ao parar de funcionar, recebe uma alma humana transmigrada, é rica em existencialismo – tema favorito de Bilal – e contada de uma maneira sublime, de uma forma mais sofisticada que nas obras do desenhista quando em carreira solo.
O grande comparsa de Bilal, entretanto, seria outro francês, Pierre Christin, criador da série Valerian. Desta parceria, destaco duas obras: La ville qui n'existait pas (1977) e Partie de chasse (1983). A primeira é uma espécie de conto de fadas moderno, numa história em que convivem realidade e ilusão, tudo elegantemente ilustrado por Bilal. A segunda narra as maquinações e ardis preparados por líderes soviéticos que se reúnem para, supostamente, caçar animais. Novamente, a arte de Bilal está deslumbrante. Parece que toda pincelada foi desferida de forma certeira. O refinamento e sofisticação de ambos trabalhos indicam que, quando Bilal está livre para se dedicar a seu talento principal, seu desenho reluz mais fortemente. Em outras palavras, são obras bastante coesas, em que cada quadrinista pôde se focar naquilo que faz melhor.
Mas nem tudo são flores. Às vezes, como em La croisière des oubliés (1975) e Les phalanges de l'Ordre Noir (1979), a dupla dá uma bela escorregada, produzindo álbuns de difícil digestão. O primeiro, em que o vilarejo dos protagonistas começa a flutuar pelo país, peca pela repetição. O segundo, relativo à reunião de combatentes anti-franquistas da Guerra Civil Espanhola, é uma espécie de Red “Aposentados e Perigosos” avant la lettre. Bastante arrastada, é uma BD cujo maior desafio é chegar na última página.
Apesar de ter estreado nos quadrinhos com uma obra solo em 1975, Bilal só se dedicou mais seriamente a escrever seus próprios álbuns a partir dos anos 80. Esta é uma prática bastante comum, conduzindo a trajetórias algumas vezes exitosas e outras nem tanto. Moebius e Serpieri, por exemplo, são referências para artistas que pretendem “acumular funções”. Por outro lado, há exemplos daqueles que nunca resolveram sair do seu quadrado e sempre continuaram mandando muito bem, como Alberto Breccia e Ivo Milazzo.
Nada contra os quadrinistas que buscam a sua independência, afinal, este é um caminho natural. Conforme esperado, os resultados podem ser irregulares, pois surge o acúmulo de tarefas nada simples. Como dito, Bilal, quando em boa companhia, é capaz de produzir quadrinhos de elevada qualidade. Ao contrário, quando está só, costuma criar obras artificialmente complexas, pretensamente intrincadas. Em resumo, quando sozinho, temos um Bilal mais hermético e rígido, duro de engolir.