VIAGEM AO PAÍS DOS QUADRINHOS

por Ciro I. Marcondes
fotos por Gustavo Marcondes e Marcos Inácio Marcondes

Uma coisa que poucos sabem sobre a Bélgica (um país do tamanho do Estado de Alagoas) é que, além de ser uma terra famosa pelos chocolates, cervejas, diamantes e quadrinhos, ela é também o país com as garotas mais lindas do mundo. Sim, pode parecer surpreendente, afinal, ninguém nunca mencionou isso, mas isso é, aparentemente, o maior segredo dos belgas, guardado ao ar livre. Afinal, é difícil não se sentir encantado ao ser servido, com extrema cordialidade e simpatia, em qualquer lugar (no museu, nos cafés, no McDonald´s, ou simplesmente ao perguntar alguma informação a uma ruivinha andando de bicicleta), por uma criatura doce e feérica, de olhos verdes e cabelo naturalmente alaranjado. Você começa a sentir que entrou em um país de contos de fadas.

É por isso que não me surpreende que o belga Pierre Culliford (aka Peyo) tenha começado seu império nos quadrinhos, na animação e na cultura pop com um gibi sobre uma terra medieval encantada (Johann e Pirluit) que progressivamente se transformou num gibi sobre duendes azuis, os Schtroumpfs (aka Smurfs, dã). Estas informações também me lembram do quanto os belgas, apesar de serem uma cultura desconhecida e considerada derivativa, situada na Europa central, diferem dos europeus “canônicos” num aspecto essencial pra um turista: são simpáticos, poliglotas, gentis, parecem adorar sua presença, demonstram interesse em te conhecer.

Este pequeno panorama, que inclui charme, simpatia, credulidade e modéstia serve para entendermos o porquê de a Bélgica possuir uma cultura tão diversa e internalizada em seu diminuto território, e o porquê de eles serem tão aficcionados por uma cultura sólida e tradicional de quadrinhos, com várias obras-primas não traduzidas sequer para o inglês, sendo sua gigante influência sobre a HQ europeia referenciada sempre de forma tão tímida.

Um pouco de arquitetura dos Flandres

Tive a sorte de passar uma pequena temporada na Bélgica e tentar equacionar esses fatores todos que a tornam um destino tão peculiar às pessoas pacatas, ao devoto incontéstil de uma vida introspectiva, e a quem verdadeiramente ama as histórias em quadrinhos, claro. A Bélgica fica na região dos flandres, que se estende até a Holanda e que se distingue por uma arquitetura de cores quentes e rurais, de tijolinhos vermelhos, e que se moderniza numa art nouveau envidraçada e rococó, com florais de bronze, coisa fina e leve, irretocável. Apesar de a parte mais internacional e vigorosa da cultura de quadrinhos belga pertencer à influência francesa, parece mais enraizada essa secular ascendência flamenga. A Bélgica é um país bilíngue, mas é somente na capital, Bruxelas, que isso é realmente praticado na região dos flandres. Em todo o resto dos flandres, fala-se holandês (ou a língua flamenga, uma variação muito próxima do holandês) e eles preferem que você se comunique com eles em inglês, porque há o cultivo de uma certa rivalidade (voltarei a isso adiante) com a região de matriz francesa.

É por isso, por exemplo, que os belgas fazem a melhor cerveja do mundo (é verdade mesmo. Experimentei umas 30 marcas diferentes, de dupla ou tripla fermentação, ou estilo abadia, ou cervejas trapistas, ou cervejas de 12% de concentração alcoólica; enfim, uma visão do paraíso cervejeiro), uma coisa tão associada à Europa central, quando os franceses gostam mesmo é de beber vinho. E é essa proximidade tão grande com a cultura holandesa (eles têm até um próprio bairro da luz vermelha), com quem compartilham esse passado comum, que os faz serem também tão maconheiros! Em Bruxelas, eles meio que apertam seus baseados dentro dos cafés (vale até um Giraffas local qualquer), fumam na rua, na porta de entrada dos shows, e realmente não pareciam nem ligeiramente preocupados com qualquer intervenção policial.

Pintura flamenga e quadrinhos

Brueghel, o Velho: A queda dos anjos rebeldes, no Museu de Belas Artes de Bruxelas

Uma das possíveis origens para o entusiasmo dos belgas com os quadrinhos é a forte tradição flamenga (não, nada a ver com o time vagabundo regido a mão de ferro pela popularidade carnavalesca do Ronaldinho Gaúcho) nas artes visuais, e isso é certamente algo que belgas e holandeses têm muito que se orgulhar. Afinal, essa arte historicamente ocupa um epicentro de transformação entre a pintura gótico-medieval e o Renascimento italiano. Figuras como Brueghel, o velho, Jan Van Eyck, Rogier Van Der Weyden e, é claro, o estupor horrorizante de Bosch (quem não ficou pasmo ao observar os detalhes do Jardim das delícias?) foram responsáveis não apenas por desenvolver a tinta a óleo com que os italianos (Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael, enfim, todos que você ficou sabendo através das Tartarugas Ninja) revolucionaram a cultura ocidental, mas também por abordar pioneiramente a pintura da paisagem, os hábitos da vida do campesinato, e por introduzir, de maneira bem consciente, a ideia de que o feio e o grotesco poderiam ser um forte tipo de expressão com que a as artes poderiam se identificar. Escrevi, entre outras coisas, uma análise do quadro O triunfo da morte, de Brueghel, neste livro aqui, na página 294, caso haja interesse.

Guadglíneos?

Pra quem não sabe, a cultura de quadrinhos belga é tão antiga quanto os quadrinhos modernos em si, e as escolas desenvolvidas entre os anos 20-50 pelas revistas mix Tintim e Spirou não só geraram a influente escola francesa, como praticamente toda a cultura europeia de quadrinhos. Influência pouca não é bobagem, e não é à toa que uma cidade como Bruxelas tem estátuas de seus personagens espalhados pelas ruas, assim como paredes inteiras dos prédios pintadas com cenas de seus gibis. Além disso, os cafés das cidades belgas possuem pilhas de gibis para você pegar e ler distraidamente enquanto toma um chocolate quente ou uma cerveja.

Na época dos pintores flamengos, era comum que a cultura gótico-medieval já abordasse a narrativa visual seriada, e um pintor como Van Der Weyden é reconhecidamente um dos mestres da pintura em retábulos, em que cenas diferentes da paixão de Cristo ou outros motivos bíblicos eram pintados em diferentes quadros, alguns que se abriam como um livro, e que podiam ser entendidos como uma sequência interligada. Assim como os quadrinhos, os belgas amam sua tradição em pintura medieval, e em cada cidadezinha de 10 mil habitantes podem-se encontrar museus e obras destes mestres pioneiros. Isso sem falar na continuidade barroca e pós-renascentista trazida pelo antuérpio Peter Paul Rubens, um dos pintores mais influentes de todos os tempos.

Centre Belge da la Bande Dessinée

Art Nouveau

É por isso que, além de museus de arte flamenga e de instrumentos musicais (muito maneiros), há também um Centre Belge de la Bande Dessinée, ou o Museu Belga das Histórias em Quadrinhos, em Bruxelas. Logo na entrada do museu – um prédio envidraçado projetado pelo mestre da art nouveau Victor Horta – uma estátua de Gaston Lagaffe, o pai de todos os picaretas belgas, criado pelo genial André Franquin, nos lembra que aquele é um lugar amigável para o fã de quadrinhos. Já no hall de entrada, antes mesmo de pagar, nos deparamos com uma série de estátuas legais de personagens tradicionais da BD francobelga: os Schtroumpfs, várias coisas de Tintim (o foguete lunar, os personagens vestidos de astronautas, um busto em bronze), Lucky Luke, etc, além do carro vermelho vintage de Spirou todo pichado e desenhado pela nata histórica destes quadrinhos: Morris, Goscinny, Uderzo, Peyo, etc. Depois disso, o museu se divide em uma didática sessão sobre como as BDs são confeccionadas tradicionalmente, com rico material original, desde a concepção, os roteiros, o letreiramento, a coloração, a impressão, o marketing, enfim, todas as etapas da industrialização dos quadrinhos. Há dois salões de exposições temporárias (em um dos quais estava instalado um interessante panorama das HQs romenas) e, é claro, o andar principal, onde, entre escadarias e vãos de leveza art nouveau, podemos acompanhar, cronologicamente, entre estátuas, réplicas, brinquedos e instalações muito divertidas, toda a trajetória da BD belga (somente belga; nenhum artista francês é relacionado ali).

Neste andar principal, três tipos de subdivisão interessam. Em primeiro lugar, uma vasta e interativa sala toda dedicada ao personagem Tintim e ao seu criador, Hergé, com, além de ilustrações originais e modelos em escala humana, instrumentos de trabalho e painéis informativos ilustrados sobre o refinamento artístico, narrativo e humanístico do personagem, deslindando sua grande importância para a cultura das BDs. Com o lançamento do filme de Spielberg, os belgas, é claro, estavam em alvoroço, e o Tintim estava em toda parte.

Passando por esta sala de abertura, começamos a entender a concepção de curadoria do museu. A divisão das salas é mais ou menos cronológica e separada por autores (o primeiro deles é o pioneiro Jijé, criador do Spirou nos anos 30, tão importante, digamos, que também tinha um museu só pra ele em Bruxelas), mas estas salas (na verdade, elas funcionam como grandes divisórias de um labirinto de quadrinhos) são divididas em duas grandes estruturas pelo andar, separada por uma charmosa banca de jornal no modelo dos anos 40: de um lado, toda a história do semanário Spirou, com centenas de capas clássicas, e a trajetória ano a ano de seus editores. Do outro, a trajetória do jornal ou revista Tintim (ambas são revistas de variedades em quadrinhos e publicavam dezenas de personagens e autores diferentes), com as capas dispostas da mesma maneira.

Saindo, então, das salas que contam as histórias das revistas que, cultivando saudável rivalidade, permitiram o desenvolvimento da HQ belga, fica mais fácil e claro entender as salas dos próprios autores, dezenas deles, com várias páginas originais de cada, rascunhos, objetos pessoais, além de textos bastante ricos informando-nos a trajetória editorial do autor, suas influências, o método de criação, a concepção de seus personagens, sua popularidade, etc. Vale mencionar que as salas dos autores são personalizadas de acordo com suas criações. A sala de Franquin, por exemplo, é disposta como se fosse o escritório zoneado de Gaston Lagaffe, além de um corredor escuro que homenageia sua obra-prima tardia, as Idées noires. A de Morris se parece com um saloon que homenageia Lucky Luke, e assim por diante.

Acabei demorando-me um bocado de tempo nestas salas, procurando conhecer os muitos autores ali dos quais eu nunca ouvira falar, e foi uma pesquisa muito fértil. Foi possível entrar em contato, por exemplo, com Raymond Macherot e seu Sibylline, uma popular HQ de animais falantes, na melhor tradição Disney ou Pogo, que constrói inteligente comentário social a respeito da Europa nos anos 50-70. A sala de Macherot era decorada com modelos das árvores onde seus personagens vivem, com diminutas famílias arranjadas dentro dos troncos. Pude também dar uma olhada melhor no autor Maurice Tillieux e sua BD detetivesca Gil Jourdan. Por sorte, pude comprar versões compiladas, extremamente bem editadas, de todas as BDs que me interessaram. Coisas dos anos 40, 50 e 60, reeditadas em obras completas, mostrando o profundo respeito que os belgas devotam à sua tradição quadrinística.

Vale também mencionar a sala de Peyo. Além de originais e coisas de praxe, encontramos um mini-museu só dos Schtroumpfs, com modelos dos “edifícios” e construções dos Schtroumpfs.... em escala Schtroumpf. Há também uma grande tela de tinta a óleo com toda a vila dos Schtroumpfs pintada pelo próprio Peyo. Outras coisas de interesse estão na grande sala dedicada à BD Boule e Bill, de Jean Roba, uma história infantil muito simpática e popular, calvinesca, sobre um garotinho e seu cachorro, além de muitos outros personagens que já foram publicados até em português, como Alix (Jacques Martin), ou Le chat (Phillipe Gerluck).

Módulo Lunar (modelo) do Smurf Astronauta

Módulo Lunar de Tintim

Por fim, uma curiosidade substancial é a maneira como os autores que se originam da cultura dos flandres (e, portanto, são publicados em holandês) possuem um tratamento diferenciado no museu. Segundo o que o curador de um pequeno museu de música informou ao meu irmão na cidade da Antuérpia, basicamente a maioria dos belgas nos flandres se identifica com essa cultura, e a capital só fala francês graças a uma imposição de Napoleão após ter conquistado o país. A cultura francesa (obviamente também orgulhosa) na Bélgica, situada na região da Valônia, é bem mais pobre a marginalizada do que os ricos belgas de origem flamenga. Talvez isso explique por quê, no museu, os influentes autores flamengos ostentem os textos de curadoria em holandês acima dos textos em francês, ao contrário de todo o resto. Os principais nomes desses quadrinhos – Willy Vandersteen, chamado “verdadeiro criador da linha clara” e sua imensamente popular BD familiar Bob e Bobette; e Marc Sleen, criador de As aventuras de Nero – ocupavam espaço de grande destaque no salão central do museu. Depois, ao tentar comprar a HQ Nero e não encontrar nenhuma edição em francês (e carregando somente uma tradução em inglês nas mãos), perguntei pra velhinha que atendia na loja: “Nero em francês está em falta”? No que ela respondeu: “Não, isso nunca foi publicado em francês”. Oh, I guess I struck a nerve.

BD World

Acho que tudo que me esforcei para escrever com clareza acima dá uma ideia da complexidade cultural de um país com 30 mil km² e apenas 10 milhões de habitantes. Especialmente para os fãs de quadrinhos, é um tour que vale a pena. Tanto quanto chocolaterias (esqueci de dar algum destaque a isso, porque, ao contrário de 99% da população mundial, não gosto muito de chocolate), há um universo de lojas de quadrinhos na Bélgica, especialmente em Bruxelas. Cheguei a visitar umas 4 ou 5, afinal, o tempo era curto e tinha muita cerveja pra beber. Faço questão de destacar a BD World, uma loja labiríntica, com milhares de quadrinhos, atendida por duas preciosidades a quem eu não recusaria um pedido instantâneo de casamento; a Multi-BD, cujos atendentes são tão atenciosos que escrevem suas próprias mini-resenhas e colam junto às capas dos quadrinhos, classificando-as como “premiadas”, “favoritas da casa”, etc; e a própria loja instalada no museu, a Slumberland, franquia de uma megastore de quadrinhos que tem outras 5 ou 6 lojas espalhadas por Bélgica e França. A Slumberland é quase como uma Fnac só de quadrinhos, e praticamente somente quadrinhos francobelgas. Os comics americanos, aliás, parecem bastante desprezados pelo país. Pouco se vê deles pela Bélgica. Vou me abster apenas de falar no bizarro hábito de comer batatas fritas com maionese como se fosse cachorro-quente, e de dar mais detalhamento sobre a qualidade da mulher belga, primeiro para não entediar nossas leitoras, e segundo porque esta é uma qualidade que deixo à imaginação, e àqueles que se aventurarem para uma visita in loco.

Bruges, na Bélgica: você senta-se no café, pede um chocolate quente e pega um gibi pra ler.

Agradecimentos ao meu irmão Guga (verdadeira fanático por pintura flamenga, prestou ótima assessoria), meu irmão Quilk (que tirou a maioria das fotos) e ao colega Pedro Brandt (que morou na Bélgica e me informou alguns detalhes essenciais sobre o país).

O que são BDs? Pt.2


por Ciro I. Marcondes

Conforme vimos no primeiro post sobre a cultura da BD clássica, as revistas que coletavam jovens autores dos anos 40-60 na França e na Bélgica – Tintim e Spirou – foram responsáveis por uma verdadeira diáspora na europeização (especialmente francófona) das histórias em quadrinhos. E antes que a BD atingisse sua faceta adulta, erótica e delirante (herdeiros da Metal Hurlant), esses quadrinhos supostamente infantis foram responsáveis por construir um imaginário estilístico e temático: paródico, grotesco, cartunesco e especialmente denso em termos de humanidade para os personagens. Aqui, mais algumas BDs que se destacaram nesta trajetória.

1 – GASTON LAGAFFE – Franquin

André Franquin foi um dos mais geniosos artistas belgas a saírem do jornal/revista Spirou durante seu apogeu nos anos 50, e muito disso graças a uma transfiguração de si mesmo em seu personagem mais famoso, o gaffeur patético e picareta Gaston Lagaffe. Este personagem, que já nesta época transpirava o espírito de contradição entre o desejo de liberdade moderno e o andamento aborrecido e rotineiro no capitalismo avançado, tem interessante reverberação nas adoráveis comédias italianas de Mário Monicelli e Dino Risi. Franquin em princípio se destacou em história de jornal, de um página, conforme era costume nas HQs mundiais da primeira metade do século. Gaston ainda carregava a bandeira de ser um trabalho metalinguístico para as edições da revista Spirou, pois ele trabalha numa ficctícia redação da própria revista, não raro cruzando com outros personagens importantes da publicação, como o próprio Spirou e Fantasio.

De certa maneira, o humor aloprado e politicamente incorreto de Gaston, junto com a habilidade minuciosa de Franquin para desenhar expressões faciais e detalhes caricaturescos para seus personagens é que popularizou esta HQ como uma das mais avançadas de sua época. Gaston é uma espécie de “orêia-seca” da redação, folgado e preguiçoso, cuja importância resume-se basicamente em enviar a correspondência e consertar coisas. A intenção de mostrar um escritório como um ambiente insuportável e altamente procrastinável antecipam alguns dos produtos de humor contemporâneos mais refinados sobre o cotidiano do trabalho, como a série The office e o Vida de estagiário, do Alan Sieber. Tudo isso somado a um conjunto carismático de coadjuvantes e belas garotas (vela ressaltar a habilidade preciosa dos autores da BD clássica em desenhar adoráveis caricaturas da beleza feminina), além das aspirações desastrosas de Lagaffe em sair do detestável ambiente da redação tornando-se inventor (ainda não tão longe das aspirações dos jovens contemporâneos que trabalham em escritório), que geram ótimos plots. Acho que é motivo suficiente para considerar essa HQ um item obrigatório, especialmente se buscamos algo capaz de te conquistar em uma só página.


2 – SPIROU E FANTASIO – fase Janry e Tome

O personagem Spirou é uma criação tão antiga quanto o Super-Homem e foi um dos pilares tanto para a consolidação da editora Dupuis (fundada pelo visionário Charles Dupuis), quanto pela sobrevivência da Revista Spirou, quanto pelo crescimento da HQ franco-belga. Spirou é um simpático grumete (ajudante) de hotel, virtuoso e bem-intencionado, à maneira de Tintim, com o adicional de sua timidez ser um ingrediente irresistível a belas garotas. O coadjuvante Fantasio, um fotógrafo mais descolado e de arquétipo mais politicamente incorreto e malandro, foi criado já nos 40, e a série passou pelas mãos de vários mestres da BD belga, como Rob-Vel, Jijé e teve fase áurea nas mãos de Franquin. No nosso caso, vale destacar a fase mais contemporânea, desenvolvida ao longo de 20 anos pelo desenhista Janry (Jean-Richard Geurts) e pelo roteirista Tome (Phillipe Vandevelde). Nas mãos destes autores os personagens ganharam tom bem mais aventuresco e de espionagem, com interessantes doses de romance e erotismo. Considerando que Spirou e Fantasio é tradicionalmente uma HQ infantil, é admirável as fronteiras entre o mundo das crianças, dos adolescentes e dos adultos que a série quebra com elegância e precisão narrativa, sem insultar ou superestimar a inteligência infantil, tudo isso ajudado pelo fantástico e carismático talento gráfico de Janry. Os textos completos de Tome, cheios de referências interessantes e aprofundamentos narrativos à Will Eisner, conferem o selo de qualidade definitivo para esta fase da série. Como se já não bastasse, a dupla ainda é responsável pela série Le petit Spirou (“O pequeno Spirou”), uma acertada e lasciva versão infantil dos personagens, capaz de fazer os roteiristas de Turma da Mônica Jovem desejarem abandonar suas carreiras para prestar concurso público.

3 – LUCKY LUKE -  Morris e Goscinny

Antes do monstruoso e avassalador sucesso de Astérix, Goscinny – um dos grandes escritores de HQ da história – trabalhou com o não menos lendário desenhista Morris, da primeira leva de grandes autores belgas. O resultado, durante mais de dez anos, foram as incrivelmente famosas histórias do cowboy monossilábico Lucky Luke, que traziam o estilo errante e dramaticamente preciso de Goscinny ao traço mais fino e artístico de Morris. O resultado, mesmo que seja mais antiquado e menos arrojado que o posterior Asterix, é uma HQ histórica e fenomenal que se junta à vasta produção dos fumetti italianos e aos filmes de bangue-bangue spaghetti nos anos 70 como uma tentativa de a cultura europeia construir sua própria reflexão – dentro do pop, claro – de um universo e uma categoria artística exclusivamente americanos. A aproximação das culturas europeias com o distante mundo do velho-oeste curiosamente começa com um embargo de importação de gibis (anos 40) americanos durante e após a segunda guerra, obrigando os europeus a escreverem historia de bangue-bangue se quisessem ter contato com isso. Lucky Luke talvez seja um dos produtos mais bem-acabados dessa cultura, sendo ambiguamente entusiastas e críticos do passado norteamericano. Tantas as paisagens de Morris quanto os personagens de Goscinny são devedores e dignos renovadores do western clássico americano, amplificado porém por um senso de humor e um olhar cético típico da cultura francófona.

4 – UMPA-PÁ – Goscinny e Uderzo

Umpa-pá (Oumpah-pah) é de certa maneira um complementador de Lucky Luke e também um outro lado da inteligência quadrinística mostrada em Asterix por Goscinny. Mesmo que não tenha sido um grande sucesso como os anteriores, esta HQ parece subestimada mais por aspectos fortuitos do mercado e do timing do seu lançamento do que pela qualidade artística. Vamos falar sério: Umpa-pá foi criado na mesma época de Asterix, pelo mesmo escritor e mesmo desenhista. O apego imediato que o público francês e logo mundial teve pelo inigualável subtexto político de Asterix certamente ajudou não apenas a ignorar as histórias da América colonial de Umpa-pá como para fazer seus autores desistirem da publicação após 5 álbuns. O tempo, porém, sempre dá abertura às obras-primas, e hoje podemos ler a incrível alegoria colonial das histórias do guerreiro indígena Umpa-pá (um tipo escoteiro, que tem dificuldade em processar não só a cultura do homem branco, mas especialmente os entrecruzamentos sociais entre as culturas) como uma das visões mais antecipadoras (estamos falando dos anos 50) do debate humanista do multiculturalismo e do pós-colonialismo a partir dos anos 70. Muito antes que o cinema sonhasse em reverter as relações de poder cultural no passado colonial das américas, os quadrinhos investiam neste tema de maneira lúdica e ousada.

ESPANHA

O universo das HQs espanholas não é necessariamente tão próximo às BDs e ainda falta alguém aqui neste blog para fazer uma examinação mais completa deste vasto e desconhecido continente que são los cómics (mas estamos cuidando disso!). No entanto, com um acento mais mediterrâneo e traço mais grosseiro e rústico, é lógico que a mistura entre as fronteiras do cômico, do dramática, do realismo e do cartunesco, assim como a permuta entre mundos infantis, adolescente e adultos também influenciou HQs populares da Espanha, e cabe um pequeno comentário sobre uma delas:

5 – MORTADELO E SALAMINHO- Francisco Ibáñez

O temperamento ibérico e mediterrâneo dos espanhóis produz ótimos efeitos quando o modelo plural das BDs francófonas se adapta ao talento de Ibáñez, um dos grandes “magos del humor” das HQs de língua espanhola. Mortadelo e Salaminho (Mortadelo y Filemón) surgiram (1958) um pouco depois do esplendor da escola belga, mas pode-se dizer que está alinhado em um profundo movimento de renovação da HQs de línguas latinas. Os quadrinhos de Ibáñez, sobre dois agentes secretos insuperavelmente estúpidos, são recheados de chistes grosseiros e escatologia, além de piadas mais diretas e um vínculo bem direto com acontecimentos midiáticos, políticos e éticos que atravessam os anos junto com a série. Este apelo mais rústico de Mortadelo e Salaminho torna esta HQ menos poética e elegante que as BDs francófonas, mas Ibañez tem sua maneira de compensar com uma quadrinização hiper-meticulosa com belo trabalho em onomatopeias, linhas de movimento, hipérboles hilárias e insistente repetição de gags e cenas, apostando numa narrativa propositadamente irritante e neurótica. 

O que são BDs? Pt. 1

por Ciro I. Marcondes

BD (bedê) vem da designação francesa bande desinée (“banda desenhada”, como se diz em Portugal, ou simplesmente uma “tira desenhada”). Graças a um domínio bastante substancioso do quadrinho de língua francesa na produção europeia, é comum que praticamente toda produção do continente esteja relacionada ao universo das BDs. De uma forma metonímica, pode-se dizer que a HQ europeia, ou no mínimo a brilhante produção franco-belga, se identifica com as origens da BD. Isso não lima a importância de outras manifestações quadrinísticas da cultura europeia, como os fumetti (quadrinho de banca italiano), por exemplo, ou as origens do quadrinho de tabloide britânico, que se confude com as próprias origens das HQs. Além disso, estamos fazendo aqui um corte bastante específico, de BDs que se originam a partir de Tintim, assemelhados especialmente pelo traço, cartunesco, e por uma imersão inteligente no mundo adulto a partir de situações que fazem fronteira clara com o exagero, a fantasia, a história, a aventura, enfim, um universo próprio, fundamentado em narrativas simples, mas em geral elegantes e de plena consciência e domínio sobre as possibilidades expressivas dos quadrinhos. Os quadrinhos europeus são incrivelmente vastos e especializados, e se proliferam em culturas nas quais esta forma de expressão há muitas décadas deixou de ser um entretenimento infantil. Logicamente, a revolução que parte da revista Metal hurlant e todo um aprofundamento no campo da fantasia, erotismo e ficção científica merece um tópico à parte. Assim como o quadrinho experimental, o faroeste, as histórias de piratas, o noir europeu, entre tantos outros gêneros importantes.

1 - TINTIM (Tintin): Hergé

Por vezes, é comum que se façam ressalvas a Hergé (Rémi, Georges – RG) por conta de algum conteudo enviesadamente político ou colonialista – digamos, não antropologicamente correto segundo os padrões de hoje – em alguns de seus primeiros álbuns. Bem, temos de relativizar isso, logicamente. Hergé começou a escrever sua obra-prima Tintim ainda nos anos 20, quando a antropologia americana (de Ruth Benedict e Margaret Mead, mulheres formidáveis), essa que nos ensinou a relatividade cultural, estava ainda em seus passos iniciais. Fôssemos pensar assim, teríamos de proibir da leitura de autores como Herbert Spencer ou Monteiro Lobato.

A questão é que uma HQ como Tintim (tantan, na pronúncia francesa), que teve seu derradeiro álbum publicado em 1976, possui tantas qualidades gráficas, narrativas e temáticas que seria uma tolice falar sobre qualquer outra coisa neste momento. Atualmente, é comum que as pessoas tenham certa preguiça de ler Tintim, por mais que surjam novas e belas edições de seus álbuns. Isso se dá talvez por falta de uma leitura contextualizada e o entendimento de que esta é uma obra essencialmente da primeira metade do século. Aos olhos cínicos do leitor atual, Tintim é romântico, ingênuo, enfadonho, previsível.

Porém, para exaltarmos a necessidade de se ainda ler Tintim, cabe talvez apenas enumerar alguns atributos básicos:
1) Tintim não é uma história de super-heróis. Pelo contrário, surgiu antes deles, e traz, mais ou menos como Tom Sawyer ou Apanhador no campo de centeio, a criança/adolescente como protagonista intuitivo e sagaz. Um protagonista arguto, que valoriza possibilidades realistas de solução dos problemas, cujos coadjuvantes não são menos carismáticos e palpáveis e saudavelmente politicamente incorretos.
2) Tintim ainda tem um mundo a apresentar aos seus leitores. Podemos ir ao Congo, às arábias, à China, à Lua (em álbum muito detalhado e coerente em relação ao mapeamento lunar, escrito antes de Apolo 11). Olhando ao meu redor, vejo que a maioria das pessoas ainda não sabe quase nada sobre lugares como esses.
3) Tintim tem pegada clássica, de pistas a serem seguidas pelo leitor, mas Hergé não deixava de ser um mestre da narrativa por isso. Seu domínio do tempo na HQ, fragmentando quadros e inserindo microsegundos em incrível detalhismo espacial, ainda é exemplar para a maioria dos quadrinistas mundiais.
4) O traço de Hergé fundamenta praticamente tudo que conhecemos de uma vertente franco-belga em quadrinhos de aventura, num caricaturismo contido, ainda delineado pela realidade, fundador dos quadrinhos em estilo linha-clara. É um traço fino, detalhista, elegante e limpo.
5) Ao contrário do que se alardeia ordinariamente, Will Eisner não inventou a graphic novel nos anos 70 (pasmem!). Já nos anos 30 Hergé lançava álbuns de histórias longas, desenvolvidas como romances, com pleno domínio do fôlego narrativo em HQs.
6) Capitão Haddock, um alcoólatra impulsivo e de bom coração que... nunca deixa de ser alcoólatra.




2. ASTÉRIX: Uderzo e Goscinny

Se considerarmos como critério a estrutura narrativa clássica em HQ, a longevidade, popularidade, cristalina qualidade imaginativa e capacidade de contar histórias, Asterix seria sério candidato a melhor HQ da história. Levando a cabo a estética de admirável ousadia e inventividade trazido por Hergé, o Asterix clássico tem textos de René Goscinny, já antes celebrado pelo humor refinado de Lucky luke, mas muito mais debochado, especial e calibrado na série do famosíssimo gaulês. Ao seu lado, o traço de Uderzo, que seguiu com os textos da série após a morte de Goscinny nos anos 70. Uderzo, que praticamente redefiniu o detalhamento e a abordagem visual em BD, sendo capaz de criar uma identificação própria, sua, em cada etnia, cada padrão arquitetônico, cada peça indumentária e cada indivíduo dentre as centenas de variedades que aparecem na antiguidade mostrada em Asterix. No caso desta HQ não poderíamos nos limitar a apenas dizer que os personagens são carismáticos e inesquecíveis. A galeria genial e geniosa dos gauleses e romanos é tão fértil e aprofundada na série que podemos estipular um tipo de criação mitológica contemporânea, da mesma maneira que se faz com a criações de Tolkien para O senhor dos anéis
Os personagens correspondem a arquétipos que se enquadram tanto na tipologia da antiguidade (soldados, ferreiros, chefes, césares, matronas, comerciantes, generais, barqueiros, gladiadores, arquitetos, escribas, intelectuais, feirantes, etc.) quanto nas relações muito peculiares da vida contemporânea (sendo evocados o jornalismo, o comércio, a construção, as guerras, as culturas modernas, a política, tudo com escarninho, mas brilhantemente bem dosado, humor de modelo francês). Desta maneira, Asterix ainda fornece fértil diálogo e consciência sobre a História, produzindo um tipo de dialética instantânea e mítica, capaz de divertir, ensinar e ser um sofisticado produto de arte, tudo ao mesmo tempo. As páginas grandes, carregadas de desenhos personalíssimos, detalhados em minúcias, estão envolvidas em narrativas potentes e equilibradas. Goscinny tinha pleno domínio do tom que deveria ser vertido nos quadros, de maneira a não desandar a história, aplicando grafismos geniais, referências escondidas e deformação nas fontes e onomatopeias, prescindindo dos diálogos quando podia, deixando os quadros e sons se contarem por si. Personagens como Asterix e Obelix, passeando em arte tão bem dominada e sincera, acabam lembrando, no fim das contas, seres bíblicos como Davi e Golias, ou mitológicos como Ulisses e o Ciclope, ou rei Minos, o Minotauro e Ariadne – coisas de eras, histórias, pessoas e narrativas mais puras e profundas. Após a morte de Goscinny a série tem um decaimento bastante vertiginoso. Então é melhor recomendar os álbuns publicados apenas até meados dos anos 70, finalizando um era poderosa nas HQs.



3 – OS SCHTROUMPFS (SMURFS): Peyo

Os anos 50 foram sem dúvida a era de ouro da BD clássica, quando as histórias em quadrinhos europeias conseguiram romper definitivamente o julgo das comics americanas e passaram, cada país a seu modo, a transformar as HQs do velho mundo em fenômenos culturais autônomos. No caso da Bélgica, duas revistas que atingiram seu esplendor nesta época foram determinantes para solidificar a cultura das HQs francófonas, exercendo obviamente grande influência no quadrinho francês. A Revista Tintim era editada por Hergé, trazendo, é claro (mas não só) sua criação principal, e foi responsável por fundar a linhagem da HQ de linha clara. Por outro lado, a Revista Spirou, que, entre idas e vindas, existia desde o período entre-guerras, abriu espaço para uma verdadeira constelação de grandes artistas franco-belgas de traço mais caricatural e viés cômico e crítico, dentre eles André Franquin, Morris.. e Peyo. 

De certa maneira, ao lado de Hergé, Peyo (Pierre Culliford) pode ser considerado um análogo francófono de Walt Disney, porque logo cedo a capitalização de seus personagens se tornou maior do que suas histórias em quadrinhos, e o próprio autor deixou de produzi-las pessoalmente para ir cuidar de franquias, merchandisings, parques temáticos e produtos baseados em suas criações improváveis e fascinantes. Dono de uma capacidade imaginativa que rivaliza com a de Goscinny, Peyo possuia natural senso de construção narrativa, e suas BDs estão entre as mais prazerosamente legíveis dentre os mestres franco-belgas. Sua primeira criação de sucesso foi a série Johan e Pirlouit, situada em um adorável universo medieval onde temos como protagonista um jovem escudeiro e seu ajudante ranzinza e aloprado que servem como buchas-de-canhão para os mais cômicos e estapafúrdios problemas do reinado local. Já nesta série Peyo demonstra completo domínio do tempo nas HQs, usando páginas inteiras sem mudar de cenário e criando grande número de situações e ações não-dialogadas. Impressiona sua natural e seletiva capacidade de saber o que mostrar e o que não mostrar em uma narrativa que segura e abre os requadros com timing muito preciso e brilhante dinamismo. Seus personagens são desengonçados e não conseguem fazer nada direito, contrapondo, já nos anos 50, aos virtuosismo tolo dos heróis americanos. 

Os Schtroumpfs, que ficaram conhecidos em nossa cultura pela denominação em língua inglesa – os Smurfs: realmente é difícil pensar em um não-francófono se acostumando a pronunciar o termo original, que é difícil até para os franceses, apesar de ser exatamente esta a piada do nome – , aparecerem em um dos melhores álbuns da série Johan e Pirlouit, “A flauta de seis schtroumpfs”, de 1958, e posteriormente ganharam uma série que hoje contabiliza mais de 20 álbuns, transformados em histeria global após a série animada da Hanna-Barbera (supervisionada por Peyo) nos anos 80. Esta história colocava Johan e Pirlouit de encontro com um lugar adimensional e feérico, o “país maldito”, onde eles teriam de recorrer à ajuda de pequenos gnomos azuis, mal-humorados, excêntricos e irascíveis (mais afrancesados que suas contrapartidas folclóricas do norte da grã-bretanha), que se comunicam usando a impronunciável palavra schtroumpf como verbos, adjetivos e substantivos, tornando difícil uma comunicação que não fosse entre eles. 

Nesta primeira história, o Schtroumpfs parecem bem mais uma massa impulsiva e homogênea de pequenos diabinhos azuis do que uma comunidade organizada em que cada cidadão possui uma característica própria (como vemos no desenho animado). Porém, mesmo com uma aproximação mais clara com as sociedades humanas nos álbuns a partir dos anos 80, as HQs dos Schtroumpfs até hoje não perderem sua diretriz não-maniqueísta, em que seus protagonistas são desarranjados e flutuantes, com grande quantidade de arquétipos egoístas, mesquinhos e dignos de pena. Suas personalidades falastronas e enxeridas de certa maneira ajudaram as BDs a não se distanciarem do gênio voluntarioso do europeu continental. O antagonismo entre o Grande Schtroumpf (Papai Smurf), único ser de bom senso no país maldito, e o alucinado, patético e misantropo bruxo Gargamel (o devorador de Schtroumpfs) ainda conta entre os mais clássicos e impagáveis pares de nêmesis dos quadrinhos, não deixando dúvidas de que esta série é famosa por apelar ao delirante e ao irracional, mas ao mesmo tempo tem o mérito de ajudar a fundar, esteticamente e tematicamente, a tipologia de todo um universo nas HQs mundiais.

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