Volta e meia, nós da Raio Laser pedimos para amigos
nossos escreverem sobre suas experiências como leitores de quadrinhos. A
maioria não topa o desafio. A justificativa para a negativa seria um pretenso pequeno
conhecimento sobre o universo das HQs. Insistimos dizendo que nesses casos não
procuramos textos de especialistas, também nos interessa saber o que pensa o
leitor comum, aquela pessoa que já leu quadrinhos mas não tem uma relação tão
próxima, intenção ou aprofundada sobre o assunto. Queremos conhecer as memórias
afetivas, as impressões instantâneas, os causos pitorescos. O primeiro amigo a
topar a empreitada foi nômade bon vivant
Leonardo Messias.
O segundo é o jornalista brasiliense (anapolino de nascimento)
Lúcio Flávio
Silva.
Apreciador do bom rock e do bom cinema, Lúcio edita um
blog muito bacana no qual fala de suas paixões e expurga alguns demônios. Tudo de maneira
bastante despojada e pessoal, por vezes bastante intimista, sempre com contornos
interessantes e dicas valiosas. No texto a seguir,
Lúcio Flávio comenta como os gibis lidos na infância serviram para ele de ponta para a
literatura e ainda revela como esse contato germinou uma eterna simpatia pelos
quadrinhos. (
PB)
por Lúcio Flávio Silva
Houve um tempo, em algum lugar da minha infância, que os
sábados não eram apenas dias santos, mas um estado de espírito mágico
materializado em nossas visitas à banca de revista mais próxima de casa
naqueles passeios matinais com papai. O coroa, sempre protegido do sol com sua
boina estilo Pablo Neruda, trazia debaixo do braço a feira do dia e o jornal da
semana, enquanto que eu e meu irmão gêmeo nos deliciávamos com os gibis de
nossa predileção que ele comprava. E assim, mês a mês, nossa coleção ia
aumentando consideravelmente.
Bem, digam o que quiserem sobre os malefícios da leitura
de quadrinhos, da má influência de
Walt Disney sobre várias gerações, de
milhares de bobagens do tipo. Mas o fato é que, bem antes de Monteiro Lobato e
coisas do gênero, aprendi a gostar de ler mesmo foi com Pato Donald e o
Mickey Mouse, Tio Patinhas e os seus sobrinhos, com a turma da Luluzinha e claro, com
o
Maurício de Sousa e seus personagens marcantes.
E, mesmo que não soubéssemos ainda, de uma forma ou de
outra, estava tudo lá, nas entrelinhas lúdicas dos quadrinhos, influências de
um Molière, das aventuras de Alexandre Dumas, dos desafios científicos de Júlio
Verne e H. G. Wells, do submundo das tramas policiais delineadas pela narrativa
elegante dos escritores Dashiell Hammett e Raymond Chandler e, veja só, até
mesmo Shakespeare. Sim, ou você acha que personagens como o avarento Tio
Patinhas e seus corajosos mosqueteiros Huguinho, Luizinho e Zezinho, assim como
o inventivo Professor Pardal e os mal-intencionados irmãos Metralhas, entre
outros, surgiram de onde?
Como diria o velho poeta maranhense
Ferreira Gullar,
citando a influência da obra de Le Corbusier no trabalho de Oscar Niemeyer: “Na
cultura, assim como na vida, tudo é herança e transformação”.
E dos gibis da turma da Disney, da Luluzinha e da Mônica
para os livros de Monteiro Lobato e outros clássicos da literatura
infanto-juvenil comAlice no país das
maravilhas, O pequeno príncipe, O menino do dedo verde, Meu pé de laranja-lima,
entre outros, foi um pulo. Contudo, ainda perduram em algum lugar de minhas
recordações infanto-juvenis, aquelas tardes gostosas de sábado e domingo com
cheiro de café quente e petas da minha mãe, misturados com as páginas surradas
dos meus gibis. Pilhas e mais pilhas de gibis que não sei onde foram parar
depois.
Fragmentos de algumas dessas leituras até hoje pairam em
meu inconsciente fosse pelo forte caráter social, político ou existencial,
embora na época eu estivesse longe de saber o que significava essas coisas
todas. Não me esqueço, por exemplo, de uma crítica à ganância e ao capitalismo
desenfreado num episódio em que, na medida em que o Pato Donald ia subindo de
status numa empresa, seu espaço no
estacionamento acompanhava o bem sucedido desempenho profissional dele,
simbolizado pelo materialismo. Assim, logo, logo aquela reles e sucateada
bicicleta de entregador que ele pedalava no início da história, para cima e
para baixo, era substituída por um carro mais aconchegante, e mais outro e
outro, até chegar a uma lustrosa limusine.
Numa história do Maurício de Sousa, um personagem vive em
agonia com o latente medo de tudo que sente. De não conseguir emprego, de andar
sozinho pela rua, de não conseguir ser alguém na vida, de ficar doente, enfim,
de morrer. Um dia, a Morte, em osso puro, lhe faz uma visita e o leva embora
para o além-mundo e lá está ele a sete palmos do chão, para desespero da
Senhora Foice, reclamando do medo de ressuscitar. E olha que estamos falando de
um singelo quadrinho de Maurício de Sousa. Mais barra pesada impossível.
Daí veio a fase dos super-heróis e era um tal de
barganhar gibis do Homem-Aranha, Super-Homem, Capitão América, Hulk, Homem de
Ferro, e claro, Batman, meu preferido, com os colegas do colégio. Além de
economizar uma grana, valia pela troca de experiências sensoriais e impressões
afetivas de cada um.
Lembro que dessa fase, o maior ato de rebeldia ou quem
sabe coragem que cometi foi chegar em casa um dia, para desespero da minha mãe,
com uma revista do
Conan, o Bárbaro
enrolada sorrateiramente debaixo da camisa. Tudo isso para a coroa não se
assustar com os traços sensuais das personagens baseadas na
literatura de Robert E. Howard e as musas do crimeriano
cheias de desejos. Um estratagema usado por pura vergonha que não funcionou,
mas que com certeza, foi uma experiência bem menos traumática do que eu me
decepcionar com a silhueta do bárbaro nos quadrinhos. Sim, porque eu não me
conformava com o fato do personagem criado nos anos 70, não ter a cara do
Arnold Schwarzenegger das telonas. Fazer o quê, como disse os meninos dos
Stones, a gente nem sempre consegue tudo o que quer.
Nos últimos anos, motivado por experiências amorosas
frustradas e momentos familiares mágicos, tenho me dedicado, não sei por que,
com mais afinco, à leitura de clássicos como
Calvin e Hobbes, Snoopy,
Tintim
e
Malfada, esse último o
predileto lá de casa, dividido entre tapas com minha sobrinha-afilhada. Não há
como não se encantar com a urgente ingenuidade da menina Mafalda.
Bom, tenho muitos amigos que são profundo conhecedores de
quadrinhos por aí, verdadeiras bibliotecas e enciclopédias ambulantes sobre o
assunto e às vezes, me envergonho e sinto constrangido de não ter o
conhecimento que eles têm no seguimento, com as observações sofisticadas e
perspicazes sobre mangás, autores conceituados no gênero como um Robert Crumb
ou
Will Eisner e tantos outros. De modo que só me resta uma grande admiração
pela turma.
* Este texto foi escrito ao som de: Out here e Roadmaster
(Love/1969 – Gene Clark/1972)