HQ em um quadro: "Pateta Repórter" homenageia Chaplin, por Teresa Radice e Stefano Turconi

Cena em P&B de O Garoto na visão da Disney contemporânea (Teresa Radice, Stefano Turconi, 2009): A série Pateta Repórter, publicada pela Disney entre 2009-2015 e que recebeu bela edição definitiva pela Abril recentemente, pode não ser das leituras mais profundas, mas é um baita projeto interessante de reconstituição histórica e recontextualização de personagens já cansados de décadas e décadas de repaginações. Ilustrada com toda simpatia pelo italiano Stefano Turconi e escrita a partir de bem feita pesquisa pela também italiana Teresa Radice, estes quadrinhos colocam o abobalhado personagem na pele de um repórter estilo "Forrest Gump" (faz tudo errado, mas dá tudo certo) numa Nova York do new deal nos anos 30, tudo estilizado num romântico ambiente de profissões intrépidas (algumas quase extintas, como o jornalismo, vide manchete "Neymar volta a curtir uma foto no Instagram de Bruna Marquezine"), cafés charmosos, calhambeques, trens e chapéus, muitos chapéus. Não é incomum encontrarmos citações a manifestações maneiras da época, como o swing jazz de Louis Armstrong e Benny Goodman, ou o lendário jogador de beisebol Babe Ruth. Vale destacar também e predileção de Radice por colocar personagens femininas (como Minnie, melhor amiga do Pateta) em evidência, deixando Mickey como uma aparição meio fantasma em cada história (ele nunca tem tempo pra nada).

Em certo momento da saga, chegou a vez de Charles Chaplin ser homenageado, e é o que vemos nos dois quadros selecionados acima. Quem está familiarizado com cinema mudo vai reconhecer uma homenagem/paródia a O Garoto (The Kid, 1921), primeiro longa-metragem de Chaplin, que de certa maneira consolidou a carreira que ele vinha construindo desde 1914 em mais de 60 curtas-metragens realizados por pequenos estúdios muito populares na época, como Keystone, Essaney e Mutual. Pode-se dizer sem medo de errar que Chaplin já era uma unanimidade (e talvez a maior estrela de cinema do mundo) antes mesmo que filmasse seu primeiro longa. A questão é: tentando homenagear Chaplin, a dupla Radice/Turconi troca os pés pelas mãos em alguns quesitos (perdoáveis, claro. É apenas um gibi do Pateta), não compreendendo completamente a influência de Chaplin e ao mesmo tempo situando-o em uma época que não foi propriamente a sua.

Explico, claro: a história em questão, "O Guarda-Chuva, o Chapéu e o Garoto", conta como Minnie vai receber o grande cineasta em Nova York para que ele realize uma filmagem (O Garoto, obviamente, não foi filmado em NY, e sim na periferia de Los Angeles, nos primórdios de Hollywood). Ao mesmo tempo, o vigarista cego Biagio (um papagaio que faz parte da gangue de trambiqueiros de Bafo de Onça) vai receber seu sobrinho, um simpático mini-meliante chamado Jack, no porto de NY. Durante a sequência de chegada (que representa bem o caos que devia ser esse porto no momento em que navios vinham da Europa), ocorre uma confusão e Jack embolsa o famoso chapéu coco de Chaplin, Pateta fica com o guarda-chuva de Biagio, etc. O plot realmente não importa muito. Apenas ressalte-se que o que se segue é uma tentativa de emular o estilo "slapstick" - comédia física cheia de algazarra e tons de absurdo, que poderíamos dizer ter sido inventada por Mack Sennet, o mestre de Chaplin que o acolheu quando ele chegou da Inglaterra sem um tostão furado, com uma trupe de teatro, em 1914. A história segue com perseguições burlescas por diversos cenários e situações engraçadas e ridículas. O slapstick é um gênero consolidado nos anos 10, e O Garoto, neste sentido, está muito mais próximo desta década do que do cinema dos anos 30.

Repito que não quero pegar pesado em uma justa homenagem a Chaplin num gibi infantil, mas gostaria de ressaltar algumas curiosidades históricas em relação ao grande cineasta que o gibi subverte, adapta ou simplesmente ignora:

1 - A ambientação da época: é comum as pessoas pensarem que os anos 20 e 30 são a mesma coisa, mas a verdade é que são tão diferentes quanto os anos 80 são dos 70, e por aí vai. Pateta Repórter se situa nos anos 30, portanto após o crack da bolsa de NY e dentro de um contexto de muita pobreza e desemprego nos EUA, o que fez esta década se tornar culturalmente, economicamente e cinematograficamente muito diferente da anterior. Em primeiro lugar, nos anos 30 o cinema já é sonoro e foi em poucos anos que se realizou uma transição completa. Mesmo que Chaplin (um resistente) tenha feito alguns de seus melhores filmes, como Luzes da Cidade e Tempos Modernos, nos anos 30, qualquer um minimamente informado sabe que, se estamos falando dos anos de glória do cinema mudo, estamos falando das décadas de 10 e 20. O Garoto, como vimos, foi lançado em 1921, e Chaplin não era um "velho mestre" (como mostrado no gibi), mas sim um iniciante em longas-metragens. É verdade que este filme é fundamental para delinear a estilística chapliniana, misturado o slapstick com melodrama, mas isso já havia sido ensaiado em curtas como O Vagabundo, que Chaplin filmou pela Essaney ainda em 1915. Portanto, para não deixar erros: anos 20 são roaring twenties, era do dixieland, das flappers, da euforia pós primeira guerra, muito dinheiro gasto em crédito, lei seca, junk spots, etc. E especialmente: o momento em que as maiores obras-primas do cinema mudo são produzidas. Anos 30 são de reconstrução dos EUA, Roosevelt, new deal, mulheres voltando para dentro de casa e o auge do cinema sonoro de gênero, como musicais e faroestes. Neste sentido, O Garoto aparece aqui como forçação de barra e uma indução à confusão entre épocas bastante distintas.

2 - O cinema representado: em certo momento da historia, Jack e Pateta estão se perseguindo e entram num estúdio de cinema. É a oportunidade que os autores têm de fazer sua homenagem a todo o (digamos) "cinema antigo", misturando referências e épocas. Vejamos: primeiro eles passam pelas filmagens de um western. Ok, gênero que praticamente funda o cinema como um todo e atravessou bem a fase silenciosa (vide The Great Train Robbery, filmes de William S. Hart, Tom Mix, experimentos de Griffith, etc.). Depois, um filme de piratas, também um gênero mudo estrondoso, sendo o mais famoso The Black Pirate, com Douglas Fairbanks, de 1926. No terceiro quadro temos um filme de ciclo arturiano, ou ao menos medieval, que remete aos vários filmes de Cruzadas (como o clássico italiano de 1918) e também a filmes de Robin Hood, como o clássico de 22 também com Fairbanks (o desenho de Radice no quadrinho, no entanto, emula mais a versão de 38 com Errol Flynn, o que condiziria mais com a época do gibi). Depois, na página seguinte, a coisa começa a ficar meio torta. O sci-fi no primeiro quadro só pode remeter ao "serial" de Flash Gordon de 1936. O famoso quadrinho de Alex Raymond saiu em 1934. Portanto, nem um nem outro têm qualquer coisa a ver com cinema mudo. O quadro seguinte mostra Pateta topando com fantasias de Drácula, Frankenstein e outros monstros: clara referência aos clássicos de Universal dos anos 30 (Drácula de Todd Browning, Frankenstein de James Whale e o Lobisomem com Lon Chaney Jr, que já é dos anos 40). Por fim, King Kong, que é de 1933 e epítome da Hollywood dos anos 30. Portanto, referência bacanas, cruzadas, entre anos 20 e 30, mas ainda sinto Chaplin um tanto deslocado nesse contexto.

3 - O garoto: Jack, o pequeno papagaio, é referência direta, obviamente, a Jackie Coogan, uma das primeiras estrelas mirins de Hollywood, que contracenou com Chaplin no filme de 1921. Ao contrário do que se pensa em algumas lendas urbanas, Coogan não morreu de overdose de heroína, e sim teve uma carreira decente no cinema até falecer de causas naturais nos anos 80. Além de ter feito "o garoto", ele também ficou famoso por lutar pelos direitos das crianças que atuam e por ter feito o tio Fester na série original da Família Adams.

4 - Chaplin gosta de textão: em certo momento da história, quando Chaplin finalmente vai apresentar seu filme ao público, ele profere um discurso (meio longo) antes, o que faz o Pateta comentar o seguinte: "Para um gênio do cinema mudo, o mestre fala um bocado!" De fato, Chaplin, ao fazer seu primeiro filme falado (O Grande Ditador, 1940), resolve descontar as décadas de mutismo num discurso enorme no final da história, uma das falas mais emblemáticas da história do cinema. Ele teve um atraso de 13 anos para aderir ao cinema falado, mas, quando finalmente o fez, marcou também a nova tecnologia. E curtia um textão mesmo: suas entrevistas são lendárias e polêmicas. Sua autobiografia é um delicioso calhamaço de 500 páginas.

Os dois quadros que selecionei mostram, em P&B puxado pra sépia, a agrura de Carlitos criando Jack em meio à pobreza (o que me lembra a notória frase do cineasta François Truffaut: "Quando Chaplin entrar na Keystone para rodar ‘filmes de perseguição’, correrá mais rápido e mais longe que seus colegas do music-hall, pois, embora não fosse o primeiro cineasta a descrever a fome, foi o único a conhecê-la") e a afetividade entre os dois personagens. Foi a maneira definitiva com que Radice e Turconi cristalizaram sua homenagem: plasmando o cinema em quadrinho. Bela e fofa homenagem, diga-se. Esses detalhes e imprecisões relatados são coisa de gente chata, não se acanhem. Coisa de doente. (CIM)

A influência dos gibis na minha paixão pelos livros e outras histórias




Volta e meia, nós da Raio Laser pedimos para amigos nossos escreverem sobre suas experiências como leitores de quadrinhos. A maioria não topa o desafio. A justificativa para a negativa seria um pretenso pequeno conhecimento sobre o universo das HQs. Insistimos dizendo que nesses casos não procuramos textos de especialistas, também nos interessa saber o que pensa o leitor comum, aquela pessoa que já leu quadrinhos mas não tem uma relação tão próxima, intenção ou aprofundada sobre o assunto. Queremos conhecer as memórias afetivas, as impressões instantâneas, os causos pitorescos. O primeiro amigo a topar a empreitada foi nômade bon vivant Leonardo Messias. O segundo é o jornalista brasiliense (anapolino de nascimento) Lúcio Flávio Silva. Apreciador do bom rock e do bom cinema, Lúcio edita um blog muito bacana no qual fala de suas paixões e expurga alguns demônios. Tudo de maneira bastante despojada e pessoal, por vezes bastante intimista, sempre com contornos interessantes e dicas valiosas. No texto a seguir, Lúcio Flávio comenta como os gibis lidos na infância serviram para ele de ponta para a literatura e ainda revela como esse contato germinou uma eterna simpatia pelos quadrinhos. (PB)

por Lúcio Flávio Silva

Houve um tempo, em algum lugar da minha infância, que os sábados não eram apenas dias santos, mas um estado de espírito mágico materializado em nossas visitas à banca de revista mais próxima de casa naqueles passeios matinais com papai. O coroa, sempre protegido do sol com sua boina estilo Pablo Neruda, trazia debaixo do braço a feira do dia e o jornal da semana, enquanto que eu e meu irmão gêmeo nos deliciávamos com os gibis de nossa predileção que ele comprava. E assim, mês a mês, nossa coleção ia aumentando consideravelmente. 

Bem, digam o que quiserem sobre os malefícios da leitura de quadrinhos, da má influência de Walt Disney sobre várias gerações, de milhares de bobagens do tipo. Mas o fato é que, bem antes de Monteiro Lobato e coisas do gênero, aprendi a gostar de ler mesmo foi com Pato Donald e o Mickey Mouse, Tio Patinhas e os seus sobrinhos, com a turma da Luluzinha e claro, com o Maurício de Sousa e seus personagens marcantes.



E, mesmo que não soubéssemos ainda, de uma forma ou de outra, estava tudo lá, nas entrelinhas lúdicas dos quadrinhos, influências de um Molière, das aventuras de Alexandre Dumas, dos desafios científicos de Júlio Verne e H. G. Wells, do submundo das tramas policiais delineadas pela narrativa elegante dos escritores Dashiell Hammett e Raymond Chandler e, veja só, até mesmo Shakespeare. Sim, ou você acha que personagens como o avarento Tio Patinhas e seus corajosos mosqueteiros Huguinho, Luizinho e Zezinho, assim como o inventivo Professor Pardal e os mal-intencionados irmãos Metralhas, entre outros, surgiram de onde?

Como diria o velho poeta maranhense Ferreira Gullar, citando a influência da obra de Le Corbusier no trabalho de Oscar Niemeyer: “Na cultura, assim como na vida, tudo é herança e transformação”.

E dos gibis da turma da Disney, da Luluzinha e da Mônica para os livros de Monteiro Lobato e outros clássicos da literatura infanto-juvenil comAlice no país das maravilhas, O pequeno príncipe, O menino do dedo verde, Meu pé de laranja-lima, entre outros, foi um pulo. Contudo, ainda perduram em algum lugar de minhas recordações infanto-juvenis, aquelas tardes gostosas de sábado e domingo com cheiro de café quente e petas da minha mãe, misturados com as páginas surradas dos meus gibis. Pilhas e mais pilhas de gibis que não sei onde foram parar depois.

Fragmentos de algumas dessas leituras até hoje pairam em meu inconsciente fosse pelo forte caráter social, político ou existencial, embora na época eu estivesse longe de saber o que significava essas coisas todas. Não me esqueço, por exemplo, de uma crítica à ganância e ao capitalismo desenfreado num episódio em que, na medida em que o Pato Donald ia subindo de status numa empresa, seu espaço no estacionamento acompanhava o bem sucedido desempenho profissional dele, simbolizado pelo materialismo. Assim, logo, logo aquela reles e sucateada bicicleta de entregador que ele pedalava no início da história, para cima e para baixo, era substituída por um carro mais aconchegante, e mais outro e outro, até chegar a uma lustrosa limusine.

Numa história do Maurício de Sousa, um personagem vive em agonia com o latente medo de tudo que sente. De não conseguir emprego, de andar sozinho pela rua, de não conseguir ser alguém na vida, de ficar doente, enfim, de morrer. Um dia, a Morte, em osso puro, lhe faz uma visita e o leva embora para o além-mundo e lá está ele a sete palmos do chão, para desespero da Senhora Foice, reclamando do medo de ressuscitar. E olha que estamos falando de um singelo quadrinho de Maurício de Sousa. Mais barra pesada impossível.

Daí veio a fase dos super-heróis e era um tal de barganhar gibis do Homem-Aranha, Super-Homem, Capitão América, Hulk, Homem de Ferro, e claro, Batman, meu preferido, com os colegas do colégio. Além de economizar uma grana, valia pela troca de experiências sensoriais e impressões afetivas de cada um.

Lembro que dessa fase, o maior ato de rebeldia ou quem sabe coragem que cometi foi chegar em casa um dia, para desespero da minha mãe, com uma revista do Conan, o Bárbaro enrolada sorrateiramente debaixo da camisa. Tudo isso para a coroa não se assustar com os traços sensuais das personagens baseadas na literatura de Robert E. Howard e as musas do crimeriano cheias de desejos. Um estratagema usado por pura vergonha que não funcionou, mas que com certeza, foi uma experiência bem menos traumática do que eu me decepcionar com a silhueta do bárbaro nos quadrinhos. Sim, porque eu não me conformava com o fato do personagem criado nos anos 70, não ter a cara do Arnold Schwarzenegger das telonas. Fazer o quê, como disse os meninos dos Stones, a gente nem sempre consegue tudo o que quer.


Nos últimos anos, motivado por experiências amorosas frustradas e momentos familiares mágicos, tenho me dedicado, não sei por que, com mais afinco, à leitura de clássicos como Calvin e Hobbes, Snoopy, Tintim e Malfada, esse último o predileto lá de casa, dividido entre tapas com minha sobrinha-afilhada. Não há como não se encantar com a urgente ingenuidade da menina Mafalda.

Bom, tenho muitos amigos que são profundo conhecedores de quadrinhos por aí, verdadeiras bibliotecas e enciclopédias ambulantes sobre o assunto e às vezes, me envergonho e sinto constrangido de não ter o conhecimento que eles têm no seguimento, com as observações sofisticadas e perspicazes sobre mangás, autores conceituados no gênero como um Robert Crumb ou Will Eisner e tantos outros. De modo que só me resta uma grande admiração pela turma.

* Este texto foi escrito ao som de: Out here e Roadmaster (Love/1969 – Gene Clark/1972)

Lixo extraordinário: sobre as HQs de Zé Carioca


por Ciro I. Marcondes

No ano passado, numa frutífera excursão aos sebos, encontrei uma pequena coleção do Zé Carioca – edição quinzenal – entre 1971 e 1979 (pegando os – ainda modestos – 25 anos da Editora Abril), que consegui pechinchar pela quantia de R$ 1,00 cada, levando, ao todo, no final, umas 40 edições bem conservadas, sem grampo, bem amareladas (como não poderia deixar de ser), mas dignas. A coleção está toda furada, mas isso pouco me importava (não sou muito afeito aos esquisitismos do colecionismo). Após uma amiga me declarar que eu havia gasto 40 reais em uma bela pilha de lixo, resolvi ensacar aquilo e guardar para quando uma oportunidade interessante de aproveitá-la na Raio Laser aparecesse.

Sempre fui leitor Disney (é verdade que é difícil indicar algum tipo de HQ que eu não leia) desde a infância, e, por mais que estivesse distante desse universo há alguns bons anos (ou décadas), sentia falta dessa parcela tão importante da cultura de HQs aqui no blog. Disney acabou sendo bastante defenestrado por suas associações com o macartismo, além da presença daquele livro eficiente, mas academicamente chucro e datado (“Para ler o Pato Donald”), que cuidou de limar lentamente outros tipos de leitura inteligente de seus quadrinhos. Minha lembrança dos quadrinhos Disney sempre foi de narrativas versáteis, atuais, cheias de ricos universos de personagens, com arquétipos fortes (carregando, lá, seus preconceitos, mas, felizmente, naquela época ninguém se importava), variabilidade temática, instigações cientificas, sociológicas, uma fartura de benesses.

Minha pequena “pilha de lixo” vai do número 1031 até o número 1445, lembrando que, em primeiro lugar, esta série começa no número 449 (primeira estranheza) e que, em segundo, ela consta apenas de números ímpares, já que os números pares eram dedicados ao Pato Donald na Abril dos anos 60-70 (estranheza editorial número 2). É claro que, como estamos falando de Zé Carioca, estamos falando de um tipo especial de cultura Disney, ou seja, uma desenvolvida no Brasil e para o Brasil, e vou privilegiar aqui a análise deste aspecto das histórias. A imensa maioria delas é já da fase de editoração 100% nacional, provavelmente desenhadas pelo lendário Renato Canini, responsável pelo abrasileiramento absoluto do Zé nos anos 70, mas não há créditos.

As histórias do Zé nesta época são intensamente vivazes, muito coloridas, com familiar cenário brasileiro, e geralmente lidando com problemas mais afeitos ao leitor brasileiro: um tipo especial de assaltos e violência, por exemplo, ou a cultura do samba e outros tipos de cultura de matriz negra, geralmente excluídas do compêndio cultural da Disney, ou um certo temperamento mais despojado, elétrico e malandro de todos os personagens, contaminados por um senso de ética carioca que, sejamos francos, ainda faz bastante sentido. Portanto, selecionei quatro histórias que funcionam como um anedotário daquilo que encontrei em Zé Carioca ao chafurdar neste “lixo extraordinário”.

1: A cultura do western e a cultura da violência

Em “O mais procurado da cidade”, presente em Zé Carioca Nº 1037, de 71, acompanhamos a história se abrir com um belo requadro panorâmico desenhado de forma realista (grande sacada), em que uma grande tela de cinema mostra um cowboy atirando (Bam! Bam!), ao mesmo tempo em que silhuetas de personagens Disney observam atônitos. Logo depois, após mais um requadro anunciar o fim da história, vemos as silhuetas (dentre as quais podemos identificar a de Zé Carioca) conversarem empolgadamente sobre o filme. Saindo do cinema, diante do cartaz, Zé (ainda vestido de terninho, chapéu panamá e guarda-chuva, conforme seu visual clássico) empunha o guarda-chuva empolgado, entusiasmadamente falando em voz alta: “Menino! O Texas Bill é o máximo! É o quente!”

Esta pequena história, cuja moral se centrará num engano (Zé será confundido com um bandido e verá que vida “cheia de perigos” do faroeste não é tão legal quando vivenciada no “mundo real”), me faz pensar em dois aspectos dignos de nota: em primeiro lugar, a solidez da cultura do western no Brasil já nos anos 70, quando o gênero, em sua matriz americana, resfolegava. Filmes extremamente críticos à cultura do faroeste, como Os profissionais (66), Meu ódio será sua herança (69) e Pequeno grande homem (70), já delineavam o declínio do gênero, que nas décadas seguintes apenas perderia cada vez mais sua espantosa popularidade adquirida nos anos 30, 40 e 50. 

Como o entusiasmo do Zé com o filme de “Texas Bill” parece fresco como o de um menino vendo hoje “Os vingadores”, isso é amostra o suficiente da perenidade da cultura dos westerns no Brasil, com vários cinemas especializados, durante os anos 70, além da popularidade dos chamados “Western Spaghetti” (feitos por italianos), que vão se disseminar a partir especialmente desta década. O nome do filme de “Texas Bill”, “O Cruzeiro furado”, de fato parece parodiar os títulos dos filmes de Sérgio Leone. A história, simpática, ainda flerta com o gangsterismo e o noir, fazendo singela homenagem ao cinema, alinhavando a relação que o cinema de violência no Brasil tem com estas culturas estrangeiras. Se alguém se lembrou, na outra ponta da corda, um filme como Cidade de Deus, eu não acho que seja por acaso.

2: O Rio continua lindo

Em “Um guia em apuros” (Zé Carioca Nº 1207), o quadro panorâmico que geralmente abre toda história Disney mostra Zé Carioca em um modesto stand (o “Zé-Tur”) tentando dar viabilidade à sua agência de turismo. No fundo, nada menos que os morros da Urca e do Pão de Açúcar. “Conheçam o Rio! Férias! Sol! Verão!”. No quadro seguinte, após vermos as ofertas dos concorrentes, Zé olha, num plano frontal, para o próprio leitor e comenta, desanimado: “Ufa! E me disseram que o turismo é um bom negócio... mas por mais que eu grite... a turma vai toda pra agência concorrente!”

Tentando trabalhar (mas não conseguindo – como é a tônica da maioria das histórias do Zé Carioca) honestamente, Zé, aturdido com os baixos preços dos concorrentes (uns gatunos malhados), resolve implementar todo tipo de reforma no negócio para conseguir tirar um trocado: muda o stand de localidade (juntamente com seu amigo urubu, Nestor), abaixa os preços, mas nada muda. Resolvendo então pagar para ver qual o segredo dos gatos, eles descobrem que os concorrentes executavam um crime consideravelmente hediondo: levavam os turistas para cima de um morro e os assaltavam. Me pergunto se colocavam eles dentro de pneus enfileirados e tacavam fogo também, para depois jogar as carcaças na floresta da Tijuca.

Dadinho é o caralho!

Esta história me trouxe à tona dois imaginários sobre o Rio: primeiro, o turismo, que agora bomba tanto com as Olimpíadas, sempre primitivo, batendo na mesma tecla tropical, mostrando que, num estereótipo grosseiro em um gibi para as massas, ou numa campanha governamental “séria”, o Rio de Janeiro continua sob o signo de umas duas ou três características supostamente imutáveis. Em segundo lugar, o aparecimento, bastante agressivo, de uma terceira característica implicada no mundo caótico dos cariocas: a violência associada a uma inteligência intrusa e perversa, ou a selvageria do gangsterismo à brasileira. De alguma forma enraizado num paradoxo de eterno paraíso perdido, o Rio só tem salvação mesmo, nas páginas do gibi, na figura do malandro romântico que é Zé Carioca, trazendo sempre algo de “bom selvagem”, procurando sempre mostrar ao leitor cínico que naquele algures caótico que se valoriza o descaso e a trapaça, convive também a cultura do “viva e deixe viver” tropical, deitada na rede, jogando futebol.

Malandraij

3: Tô me guardando pra quando...

A edição número 1.111 de Zé Carioca, datada (precisamente) de 23/02/73, é uma edição de carnaval. Logo na capa, uma bela ilustração sobre fundo rosa-bebê, vemos um verdadeiro fuzuê com Zé, Donald, Pateta e toda turma batucando no tamborim, soprando corneta, soltando serpentina, cheirando lança-perfume (sic!). Quando abrimos o gibi, nos deparamos com a encantadora história “Um paulista na corte do rei momo”, um tema dificilmente batível em termos de brasilidade. Cheia de vitalidade carnavalesca, esta história vai contar o deslumbramento do desajeitado primo Zé Paulista quando é convidado por Zé Carioca para desfilar no carnaval mais famoso do mundo. Vale recontar a primeira página: Zé Paulista, de cabelinho penteado, terninho empoleirado e uma puída gravata, chega na rodoviária carioca cheio de dúvida e anseios, enquanto lê-se numa placa na própria rodoviária: “o serviço público rodoviário informa: faltam 3 dias para o carnaval”.

Zé Paulista, pontual e ansioso, pergunta-se onde estará Zé Carioca, que prometera buscá-lo na rodoviária. Ao mesmo tempo, num suspeito estereótipo de erudição paulista, pergunta-se como comprará ingressos para o Teatro Municipal. A verdade é que Zé Carioca estava na praia e vai buscar o primo apressado e “culto” com duas horas de atraso. O grande charme desta história é exatamente a caricatura um tanto ridícula, mas ao mesmo tempo insistentemente pregnante, que se pode observar da cultura de São Paulo a partir do primo de Zé. Este enfoque na dedicação, mas ao mesmo tempo na ingenuidade, acabam por definir o destino do personagem na história. Se o trabalho sem malandragem (exatamente o oposto do Zé Carioca) aparece como fator definidor do paulista na história, é justamente o apego ingênuo ao trabalho que o transforma no melhor tocador de tamborim de Vila Xurupita. Como bom paulista obcecado e dedicado, ele recebe a missão de tocar o instrumento, no bloco de rua da moçada, das mãos do próprio Zé. Levando a experiência como uma missão de vida ou morte e treinando dia e noite, ele acaba surpreendendo os jurados e vencendo o carnaval de Vila Xurupita. Diante deste panorama paradoxal, qual é exatamente, portanto, a visão construída sobre os paulistas nesta história? A do “mané” que não sabe tocar e perde o tempo treinando pateticamente, ou a do bastião da força de trabalho, eficiente até mesmo na cultura alheia? Esta singela historinha tem o poder de invocar as duas perspectivas.

Locomotiva do Brazeel

4:  Brasil grande

Por fim, uma das histórias que melhor atestam o carimbo de “brasilidade” atribuído às HQs do Zé Carioca está na edição número 1209, e tem por título “O sumiço dos herdeiros”. Aqui, novamente o primeiro requadro panorâmico, padronizadamente responsável por nos introduzir os conteúdos essenciais da história, é o guia que nos denuncia os signos para uma análise cultural. Num casarão iluminado a velas e com a presença elementos aristocráticos (uma armadura medieval, uma grande poltrona central), o velho coronel (sim, um coronel brasileiro à moda antiga) conversa com quatro de seus herdeiros, humildemente espremidos em um pequeno sofá. São eles: Zé Paulista, Zé dos Pampas, Zé Queijinho e Zé Jandaia, cada um representando o estereótipo cultural de uma região brasileira, fator bem marcado pelo chapéu que cada indivíduo veste. Este coronel, pintado como uma figura severa, mas de bom coração, explica que há um mistério: tentam matá-lo, e cabe aos herdeiros resolver esse problema.

Esta história vale-se de um sincretismo bastante bizarro, que associa o coronelismo arcaico brasileiro a uma certa aristocracia europeia, fazendo a casa do coronel parecer um castelo, e fazendo seus herdeiros parecerem, de algum jeito estranho, vassalos de uma casta nobre e digna. A história, portanto, desenvolve-se em exótica mistura do clima de uma fazenda no interior do Brasil, com direito a sotaque característico e comidas típicas, com romance de fantasmas europeu à Horace Walpole. No final das contas, Zé Carioca, que não participara da reunião por esperteza, salva a família do golpe planejado pelos primos tortos que não estavam sendo contemplados pela herança do coronel. 


Este coronel, que usa chapéu, bengala, monóculo e bigodinho, propõe-se na história a ser um signo exótico, de um antigo conformismo paternalista com culturas brasileiras arcaicas, ainda num manso traquejo de favores entre uma cultura herdeira do escravismo (ou de um militarismo torpe e corrupto) e uma certa dignidade empostada perdida na contemporaneidade. Que as regiões mais famosas do Brasil estejam presentes para abaixarem a cabeça diante de tal autoridade não surpreende e, mesmo sendo tiro pela culatra, a história do Zé Carioca acaba desvelando um sentido meio macabro da própria subserviência brasileira. Uma história de terror e fantasmas, sem dúvida.

Panorama da HQ chilena



É com muita satisfação que a Raio Laser recebe suas propostas de colaborações, que têm crescido, com pautas interessantes, dentro do nosso conceito. Foi numa dessas que conhecemos o Gustavo Trevisolli, que colaborou com nosso parceiro Pipoca e Nanquim, e que nos ofereceu um texto muito interessante sobre a cultura de quadrinhos chilena. Ei-lo! E eis as informações sobre nosso mais novo (e jovem) colaborador: Gustavo Trevisolli tem 21 anos e é Analista de Suporte. Ele atualiza um um site onde coloca textos mais curtos e notas sobre opiniões mais pessoais e ilustrações com algumas tiras e charges (quando tem tempo de scanear). Vai lá.

Pra não deixar de meter o bedelho, vou indicar eu mesmo também uma HQ chilena que passou em branco no texto do Gustavo. Trata-se de Humanillo, uma coletânea do já veterano ilustrador e quadrinista chileno Jorge Quien. Adquiri esse livro numa viagem para a Argentina no começo de 2011 e coincidentemente estava-o lendo agora. Quien é um quadrinista diferente e sensível, de matriz poética, procurando reverter o valor e lugar dos objetos e das coisas, muitas vezes ilustrando poemas de outros autores. Destaco esse quadro aonde ele faz o grande Frank Herbert, autor de Duna, apresentar a si mesmo a um personagem. (CIM)

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por Gustavo Trevisolli

Nas férias decidi com a minha esposa fazer algo diferente: uma viagem a algum país da América do sul. Como ela já conhecia a Argentina, ficamos entre Peru e Chile. Queria conhecer o Chile principalmente por ser a casa de Neruda, além de ser conhecido como um dos países mais culturais da América do Sul. Depois de pesquisar bastante, percebi que, além de Condorito, não havia muita coisa sobre os quadrinhos chilenos das quais se teria algum conhecimento ou divulgação no Brasil. Resolvi
dedicar então algum tempo de minha viagem fazendo uma pesquisa informal em Santiago, sobre a produção e distribuição dos gibis chilenos.


Depois de andar pelos bairros de Lastarria, Centro, Providência, Bella Vista e adjacências, cheguei à conclusão de que o mercado americano não oferece muito poder sobre o Chile: os quadrinhos do Condorito ainda são muito distribuídos, sendo uma espécie de turma da Mônica. A diferença é que seu humor é mais adulto, não sendo difícil encontrar piadas sexistas ou chauvinistas em seus quadros. Geralmente as mulheres são retratadas todas de maneira igual. Os traços me lembram um pouco os quadrinhos da Disney.

O condor é um passaro (e isto todos devem saber), símbolo do Chile. Porém, o  Condorito, assim como toda a cultura em quadrinhos, em geral, envolvendo nossos vizinhos (Argentina, Uruguai, Chile, etc.) é um pouco desconhecido para nós. Se fôssemos comparar com algum personagem, ele seria o Zé Carioca dos chilenos. Inclusive, foi criado como resposta do Chile ao desenho da Disney chamado Saludos amigos, onde temos o Pato Donald se encontrando com o Zé Carioca e o galo Tríbilin (esse do México). Em 1953, Condorito ganhou sua revista própria, e tive a sorte de encontrar na biblioteca nacional chilena uma exposição sobre os 100 anos de seu criador, o Pepo, com diversas tiras e cartuns, alguns com bom humor político, às vezes explicito ou não. O interessante é ressaltar o tamanho do sucesso que a revista faz com os chilenos. Podemos encontrar edições de Condorito para ler na íntegra em uma pesquisa rápida na internet. O formato chama a atenção por abranger geralmente todas histórias em uma página. A marca registrada ficou com o pássaro terminando várias tiras com as pernas para o ar.

É meio triste admitir, mas foi difícil encontrar coisas relacionadas aos quadrinhos no Chile, principalmente de produção nacional, se formos analisar. Nas bancas em geral encontra-se, além de Condorito, algumas edições do X-Men, e (pasmem!) quadrinhos de Star Wars (os filmes adaptados em graphic-novels, e não as séries publicadas pela Mythos). Mas não desisti:  queria procurar e pesquisar mais em campo sobre os quadrinhos chilenos, e frequentei uma pequena feira onde livros e quadrinhos usados são vendidos. Encontrei mais HQs da Marvel ou DC, e perguntei a alguns vendedores se havia alguns “cómics” chilenos. Alguns me apresentaram mangás (um gênero que também está bem difundido no Chile, e é mais comum ver anúncios de aulas de mangás e encontros do tipo do que de outros quadrinhos). Alguns chegaram a dizer que não tinha praticamente nada de quadrinhos no Chile. Resolvi continuar procurando em bancas, quando encontrei no dia seguinte a loja Westcoast Motion Picture. Ao encontrá-la tive um verdadeiro choque, pois se trata de provavelmente uma das melhores lojas voltadas aos quadrinhos que já encontrei. Fiquei um tempo olhando e conversando com a atendente da loja (uma senhora que julguei ser mãe do dono). Ela não parecia entender muito e apenas indicou Condorito quando perguntei dos quadrinhos chilenos, além de algumas revistas muito antigas. Quando citei Jodorowski,  me apontou seus filmes ao invés dos cómics. Perguntei sobre quem era o dono e ela me pediu para eu voltar mais tarde. Eram dias complicados, e tentei equilibrar os quadrinhos com os passeios turísticos em Santiago, Viña del Mar, Valparaiso e uma visita à vinheda de Concha Y Toro, cidades que conheci nos últimos dias. Logo, havia apenas neste mesmo dia em questão a oportunidade para conversar com o dono da loja, já que faltavam poucos dias (que seriam ocupados) para ir embora do Chile.

Quando encontrei o dono, ele estava de saída e me atendeu muito rápido. Apesar de ser educado, ele disse que precisava ir embora e perguntou se não poderia voltar outro dia. Fiquei muito triste, pois não poderia encontrar com ele de novo. Após nossa breve troca de informações, menti dizendo que voltaria outro dia. Ele me indicou alguns quadrinhos, porém não consegui tirar nenhuma foto de dentro da loja! O lugar era alucinante, acho que a melhor comic shop que já vi. Encontrei muitos quadrinhos de diferentes estilos, além de brinquedos e filmes. Havia diversos itens que transformaria a loja em um museu, como cartazes antigos. Vocês podem conferir mais sobre a loja aqui.

Depois resolvi ir até a loja chamada “Feira do livro nacional chilena”, uma espécie de livraria gigante aonde encontramos quase quaisquer tipos de livros, muito comum no Chile. Logo, como não consegui comprar nada na loja de quadrinhos, decidi procurar, entre os conhecimentos que adquiri nesses dias, algo na livraria para trazer para casa. Não queria álbuns grandes ou luxuosos, e sim coisas que refletem o dia-a-dia do Chile. Dentre uma boa quantidade de graphic novels, de maioria importada, trouxe comigo:

* Zombies en la Moneda, onde temos zumbis tentando invadir o palácio de la Moneda. Escolhi este livro porque parecia ser um dos quadrinhos mais vendidos do Chile. Já tinha ouvido falar e é realmente muito interessante, pois eles juntaram vários autores diferentes, entre roteiristas e desenhistas, e, dentro do tema em comum, desenvolveram um roteiro base. Então temos vários estilos, do realista ao cartoon, envolvendo a história que termina com um gancho no final  (tem uma nova edição saindo, se não  me engano). Achei muito interessante essa iniciativa, que originalmente foi publicada de forma independente e separada por capítulos. Seria bem legal algo envolvendo um plot desses aqui no Brasil, não? Zumbis tentando invadir o Senado! Mas, falando sério, também temos que analisar que o palácio de La Moneda é conhecido como um dos principais pontos turísticos da cidade. Só para se ter uma noção, é lá que foi foi o palco central do golpe militar do Chile em 1973, aonde o então presidente Salvador Allende se suicidou após tropas do General Pinochet invadirem o palácio. Logo, temos na
história uma ligação direta com a ideia do quadrinho.

* Um livro de Marcela Trujillo, El diario intimo de maliki cuatro ojos. Como diz o título, , é uma espécie de diario, e eu já conhecia, antes de viajar, o trabalho de Marcela pelo seu site. Ela é uma representante forte dos quadrinhos chilenos, especialmente no meio underground. E ainda por cima por ser mulher, mãe e divorciada. E é realmente essas e outras informações de sua vida pessoal que temos na leitura de seu livro. Gosto muito do estilo dela, lembrando bastante Crumb, mas acho que o que realmente me fez gostar de seu trabalho é sem dúvida a maneira natural com a qual consegue expor sua vida, de um jeito transparente, sem medo do que vão pensar. Acho que nunca vi um quadrinho tão sincero quanto o dela. Para quem quer conhecer bem o quadrinho atual produzido no Chile, recomendo fortemente. Outro livro publicado pela autora é  Crônicas de Maliki.

* O terceiro cómic que comprei foi um mais underground e fanfarrão. Malaimagen é uma espécie de autor da área de Lastarria (bairro boêmio de Santiago. Como uma Lapa sem tanta sujeira e com lindos bairros ao invés de apenas uma ou duas ruas decentes. Acho uma parada obrigatória para tomar uma cerveja ou um petisco). Trata-se mais de um livrinho com piadas onde cada folha tem um cartoon contando elas (charge). De humor rápido e de leitura leve, temos diferentes idéias em um estilo bem comum para quem desenha, contorna e faz acabamentos dos desenhos com caneta de escrever em CD. Para quem tiver com uma graninha curta e quiser pegar um quadrinho apenas de lembrança, também dou essa recomendação.

* Menção honrosa: Aqui no Brasil também conhecemos bastante o trabalho de Alberto Montt por meio de sites onde seus trabalhos são sempre expostos. Se não me engano, um Jacaré Banguela da vida vive postando. Conhecia bem o trabalho do autor, e no Chile encontramos várias edições de suas tiras que podem ser encontradas on-line neste sítio.

 
Bom, resumindo, é isso: o Chile está vivendo um bom momento nos quadrinhos, onde autores jovens estão se destacando. Algo ainda bem regional mesmo, e pretendo viajar ao Chile algumas outras vezes ( para conhecer a Isla Negra, onde fica a única das três lindas casas do Pablo Neruda que não visitei e que, acreditem, vale mais a pena do que alguns museus, e também para conhecer o deserto do Atacama, que provavelmente é o lugar mais lindo do mundo).

Entre a utopia e a distopia: Mickey no ano 2000

Em 1988 a Editora Abril lançou três grandes e lindos volumes recompilando todas as primeiras edições de “Pato Donald”, que não apenas foram as primeiras publicações de Disney no Brasil, como também as primeiras publicações da própria Abril. E, naquela época, levado por meu pai a uma das feiras do livro de Brasília, eu estava lá, observando a linda capa do Volume 1, com Donald xerife de peito de aço recebendo saraivada de balas. Eu estava lá, e pedi a meu pai que comprasse aquele volume pra mim. Tenho certeza de que esta edição de “Anos de ouro do Pato Donald” foi muito importante para a minha formação quadrinística. Lembro-me de ler este volume algumas vezes, bastante afoito. E lembro-me de uma história em especial, que nunca me fugiu à mente depois que o volume desapareceu da minha casa, em meados dos anos 90.

“Mickey no ano 2000” é uma história do ano de 1950, e não faço ideia a quem se deve atribuir a autoria (“Copyright 1950 Walt Disney Productions”). É uma história absolutamente admirável e, nela, o camundongo recebe, de maneira muito não-usual, uma encomenda pelo correio com uma caixa e o seguinte bilhete: “Querido Mickey! Ponha esta capa invisível e verá as maravilhas do ano 2000. – Um amigo da ciência”. Se a própria noção de uma “capa invisível” já parece junk-science o suficiente, imagine o que ela – e todo o resto de vitupérios científicos que viriam nas páginas a seguir – podiam realizar na cabeça de um menino de sete anos. Essa coisa do ano 2.000 sempre me fascinou de tamanha maneira (obviamente, antes que o ano modorrento que ele efetivamente foi chegasse) que eu também aderi de um jeito um tanto irracional a outra obra de retrofuturismo que abordava (de uma maneira, digamos, ligeiramente diferente) a mesma questão: o filme 2001, um odisseia no espaço. Quando encontrei, mais recentemente, num sebo, esta mesma edição por preço até módico, catei ela da prateleria e resolvi reler esta minha incrível história de formação.

Hohoho. E Papai Noel, vai bem?

É surpreendente que uma história tão ingênua tenha sido capaz de me reencantar. Para entender o processo todo, cabe um pequeno exercício de futurologia e análise retrofuturista: após vestir a capa, Mickey efetivamente se materializa no ano 2000. Em primeira instância, temos uma investigação do nosso herói – após atravessar o simbólico portal para a nossa suposta contemporaneidade – da vida, coisas e hábitos do ano 2000. Além de engenhocas como hidrantes esquisitos e máquinas que te vestem e lavam, há um fascínio pela conquista do espaço aéreo, com helicópteros cumprindo todas as funções do nosso trânsito, a ponto de Mickey, ao observar o aero-ônibus “Bonde aéreo à praça da Sé” (a tradução paulistana é impagável), soltar a seguinte observação: “Formidável! Solucionaram o problema de transporte de passageiros!”. Se cabe um comentário ao camundongo, vale dizer que nós, habitantes verdadeiros do ano 2000, nunca sequer soubemos de um “problema de transporte de passageiros” em São Paulo... em 1950! Quão surpreso nosso herói ficaria se pudesse como realmente andam essas coisas nos anos 2000.

Além de algumas previsibilidades interessantes e acertadas, como as videoconferências e a emulação de algumas contingências sociais derivadas disso, a primeira parte é toda motivada por um espanto do personagem (junto com Pluto) em relação a uma tecnização absoluta do mundo: pessoas se alimentando de pílulas, vendendo terrenos nas nuvens, mendigos dormindo em redes flutuantes. Há outros tipos de comentários sociais neste “admirável mundo novo”, como a presença de um “olho elétrico” que impede que Pluto entre num mercado avesso a animais. Todo este ato, corolário da eficiência da tecnologia (e de um mundo racionalizado pela técnica) ganha seu comentário definitivo quando Minnie é sequestrada por Bafo de Onça (“Pete”), e Mickey se dirige à polícia. Lá ele toma conhecimento de que “não há crimes no ano 2000” (estranho: se não há crimes, pra quê existe polícia? E estranho essa designação de “ano 2000” como um lugar, e não como uma época). Em 2000, uma conquista do espaço aéreo como espaço de habitação e convivência (alguém aí lembrou o Elevado de São Paulo?) e uma tecnologia capaz de realizar tudo que precisamos (inclusive plantando árvores artificiais para nós) leva o mundo a uma utopia. Quase uma utopia comunista, conforme Marx havia imaginado que teleologicamente aconteceria. É irônico que esta história tenha sido escrita dentro da empresa de maior pegada industrial de quadrinhos dos EUA, no meio da era do macartismo.

 A essa altura, a história já era suficientemente interessante sob vários aspectos, mas ela melhora ainda mais no segundo ato quando descobrimos que Bafo de Onça (conflito!) vive dentro de uma nuvem onde existe uma outra abordagem sobre a tecnologia, complexificando enormemente a versão ingênua do primeiro ato. Aqui, nosso herói deve se deparar com um mundo perversamente tecnizado, dominado por um ditador à 50’s (o próprio Bafo), que pretende, nada mais e nada menos, que “conquistar o universo”. Neste seu reino particular, Bafo controla um exército de autômatos (“robots são como autômatos”, eles precisam explicar) que usufruem de todo tipo de armas e techno bubbles, assim como compõem as divisões de defesa, política e organização de uma sociedade inteiramente não-humana. Prevê-se uma substituição completa da humanidade por duplos mecanizados, obedientes, seguidores de programações . Uma distopia se anuncia, e Mickey se depara com horripilante perspectiva ao perceber que Bafo havia construído um clone mecânico seu, com suas virtudes de herói, mas revertidas para a servidão. Um problema do complexo de Frankenstein, da tecnofobia, e um comentário sobre cibercultura contemporânea se estabelece: se nosso duplo fáustico for um duplo mecânico, devemos temê-lo mais ainda?

Bafão

Tudo caminha, então, para a concretização desta distopia que nos levaria à extinção quando, mais uma vez, esta engenhosa história que – à parte uma análise futurista ingênua que apontaria apenas os itens sonhadores que não se concretizaram –, numa imanência subliminar, parece entender de alguma forma nossa própria época e ao mesmo tempo lançar os antídotos para solucioná-la. Assim como Mickey, Minnie também tem um duplo robótico (a sensual Mimi, não exatamente igual a Minnie, mas cumprindo mesma função narrativa). Mimi, o robô humanizado, tão retratado na ficção científica, se apaixona por Mickey, e, lançando-se à vontade de se tornar indefectivelmente humana, sabota a operação de Bafo, reprograma os outros robôs, salva o mundo e – pasmem – ainda é tragicamente assassinada pelo facínora. No final das contas, à maneira de outro conto sombrio que também denunciava metaforicamente a tecnização do mundo (O gabinete do Dr. Caligari), Mickey desperta e percebe que tudo aquilo não passara de um sonho que ele tivera após brincar com seu sobrinho e seus bonequinhos de “robots”.

Bem, que leitura eu poderia retirar desta fábula tão bem construída em dois atos sólidos e excelente quadrinização, altamente problematizadora e invertendo relações na cabeça de um modesto garoto de sete anos? Neste mundo de 2000, excetuando-se a bobagem de prever o futuro (sempre o erro dos que pensam que sci-fi serve pra isso), vemos um ambiente onde algumas das principais questões do século 20 são retratadas de maneira dinâmica, com a possibilidade de reprogramação da distopia pela utopia utilizando das mesmas ferramentas que levaram a sociedade ao colapso: o velho paradoxo da tecnologia. Não é à toa que Mickey fantasia este mundo através de um objeto infantil, cuja premissa de repetição é a mesma da técnica. A criança que brinca (já dizia Walter Benjamin) quer continuar brincando (e não há mal nisso). Mas o adulto não pode mais brincar, e, ao invés disso, cria uma fantasia narrativa sobre o processo cumulativo, repetitivo e asséptico da técnica, que, felizmente, ainda pode ser reprogramado.