por Ciro I. Marcondes
No posfácio da edição de
O olho
do diabo publicada pela editora Sampa em 1993 com três histórias de
Mozart Couto dos anos 80, o próprio quadrinista analisa sua narrativa de um homem que
vê a família morrer nas mãos do demônio da seguinte forma: “O demônio, que na
história aparece como uma ‘entidade astral’, simboliza também nossa face
oculta, a ignorância, que nos guia ‘nesse mundo estranho onde não se sabe quem
perde ou quem ganha’, como diz o personagem narrador”. Já na lucidez dessa
sacada a gente entende um propósito mais adensado muitas vezes não muito
perceptível num produto de cultura de banca como esse gibi, hoje infelizmente
no ostracismo.
Quem me passou essa joia foi
Pedro Brandt, sabendo que eu era ao mesmo tempo fã de duas coisas que eram
clara referência ao quadrinista:
filmes de faroeste e a literatura de Guimarães
Rosa.
O olho do diabo é daquelas HQs que, travestidas de histórias ordinárias
e descartáveis, na tradição do
fumetti,
com tons de super-herói e
horror old school, não demora a arrebatar, congelar o
sangue, impressionar adultos.
A carreira de Mozart Couto é
muito extensa para ser resumida aqui, então vou me ater apenas a duas histórias
presentes nesta seleção, mas vale parar um pouco e refletir como estas
narrativas se enquadram perfeitamente na fronteira entre o autoral e a cultura
de massas, sem renegar um ou outro, com exímia qualidade gráfica, erudição e
senso de aventura. Mozart Couto, pasmem, continua sendo modelo (ou deveria ser)
para quadrinistas brasileiros mais jovens.
E como isso ocorre? As
histórias de
O olho do diabo buscam um certo alinhamento com uma tradição da
literatura regional brasileira, de jagunçado ou cangaço, filiada ao nosso
estilo moderno (além de
Rosa, basta ler
Bernardo Elis ou
Mário Palmério).
Mozart tem mérito em ser um dos pioneiros nessa tradução pros quadrinhos, e
mais ainda por adequar as pretensões rebuscadas e historiográficas desses
autores para o contexto mais fantástico, erótico e diabólico dos quadrinhos de
sua geração. Em particular, vale pensar em seu interesse pela relação do
jagunçado com o diabo, frequente na literatura de Rosa (e obviamente em “Grande
Sertão: Veredas”.
Encara aí em pdf que eu quero ver). A diferença é que, mesmo
pensando em simbolismos, Mozart faz dos seus roteiros aventuras grotescas de
vingança brutal, mortes hediondas e um imaginário nefasto e vil, bem mais próximo
das atrocidades das histórias de Al Feldstein em
Tales from the crypt do que da prosa poética e joyceana do nosso
maior autor moderno.
O grande lance é que isso não
minimiza a arte de Mozart Couto. Pelo contrário. A erudição está diluída num
patamar bem adequado, robusto em seu engajamento nesse gênero de quadrinhos.
Basta pensar nas histórias, mitos fáusticos, de danação impiedosa, pactos com o
“capiroto”. Na primeira delas, que dá título ao volume, um massacre em uma
fazenda, “rixa antiga” de família, leva um herdeiro a atravessar veredas em
busca de um certo Antenor Balbino, velho com fama de sanguinário e diabólico,
motivado por um rancor de ciúmes (uma prostituta aparece como alicerce da
“perdição”, retomando narrativas míticas), envolvido em magia negra. Um
jagunço, sobre Balbino: “S’or sabe, o pai dele teve um filho que nasceu ruim da
cabeça. Pois num sabe que ele matou o pobre? Levou ele pra bem longe de casa e
pendurou numa árvore de cabeça pra baixo! Duas semana dispois acharo o corpo!”.
Como se vê, além de Rosa e Goethe, Édipo. Um Édipo pulp, diga-se.
Sertão trasheza
Mas a cereja do bolo, como não
poderia deixar de ser, é a qualidade gráfica do trabalho de ilustração de Mozart. Neste sentido ele também caminha por escolas talvez fora de moda, ainda
que essenciais, como a de Hal
Foster, John
Buscema ou Frank
Frazetta. Se for assim, ler Mozart
Couto reforça o incentivo para se retornar um pouco à HQ clássica. Mozart é
famoso pelo detalhismo anatômico, e pra isto basta citar os sertanejos convincentes,
belas mulheres e verdadeiramente horripilantes figuras sobrenaturais. Mas o que
me impressiona mesmo é a qualidade de reprodução de seus cenários, minuciosos e
verdadeiros. Esta força espacial de suas HQs não foge à tradição do faroeste,
em que a inscrição do homem no ambiente é uma relação simbólica fundamental e
inescapável.
Da mesma forma, a alternância
entre cenas noturnas e diurnas, invertendo o sombreamento, e uma primorosa
quadrinização dos movimentos dentro e fora dos requadros não pode nos remeter
senão a um ato de maestria. Em “O olho do diabo”, a sequência do tiroteio
final, em cinco grandes páginas de edição do espaço, chega a lembrar o ápice
deste modelo de cena que vemos no clássico
Matar ou morrer, de Zinneman, que nos ensina que, no cinema, podemos ter a
perspectiva de todos
heroes and villains
presentes na ação.
Em
Mozart Couto, somos ainda premiados com um sertão mineiro
visível e assombrado, com casarões e armas detalhados em minúcias.
Pulando “Shagara”, uma exótica
história de alienígenas e ritos macabros no sertão, vale fechar o texto
comentando “O poder de satã”, que, de certa forma, aparece como complemento a
“O olho do diabo”. Nas duas histórias, a associação com o diabo surge por meio
de objetos (um talismã, na primeira, e artesanatos de cerâmica, na segunda), e
em ambas o demoníaco surge de maneira não-simbólica, materializando um
diabo arquetípico e sinistro, talvez assustador demais para os padrões descolados das
HQs de hoje. Em “O poder de satã”, porém, o pesadelo das páginas é menos
delongado e mais afim às palavras iniciais de Mozart que citei antes: uma
fazenda, bem familiar, recebe a visita de um estranho que os presenteia com
estes tais objetos de cerâmica, muito bonitos, mas cujas inscrições exóticas
chamam a atenção do patriarca.
Como deve ser numa narrativa de
tiro curto, os esforços logo se resultam vãos, e a filha do patriarca se atrai pelos objetos, libertando uma força macabra, do que segue-se um pesadelo
marcado por estupros, esquartejamentos e monstruosidades. Nas últimas páginas
descobrimos que o patriarca, observando o padecer geral de todos os membros de
sua família, fizera um pacto com o diabo décadas antes, e confessa a culpa.
Mozart, também impiedoso, não abre espaço para redenção e finaliza a história
no meio do ato, com um animal infernal irrompendo pelo chão do casarão e
cobrando a dívida num quadro arrebatador.
Estes objetos, tão antropologicamente
portadores de espíritos, são uma chave para pensarmos este demônios como
conflitos humanos arraigados, ancestrais, inconscientes. No fim das contas, se
Mozart recorre a um pouco de
trash
para criar sua metáfora de solidão e acertos com um passado que nos assombra,
eu arrisco dizer que ele também acerta ao redimir os quadrinhos em suas formas
mais populares. Já é esteira o suficiente para que um gênero inteiro ganhe continuidade a partir disso, seja nos traços mais modernistas de outro mestre
(Flávio Colin), nos de um contemporâneo (Watson
Portela), ou nos de um renovador do gênero com características mais
contemporâneas (Danilo Beyruth).