HQ em um quadro: a ciência do sono induzido, por Pablo de Santis e Juan Sáenz Valiente





O hipnotizador Arenas desmistifica seu ofício através de um argumento científico (Pablo de Santis, Juan Sáenz Valiente, 2007): É comum que se associe culturas midiáticas visuais a um tipo específico de hipnose. No cinema, isso foi alvo de teorias cheias de complexidade (ver Münsterberg ou Morin). O mundo visual traduzido em enquadramentos ordenados e organizados em dispositivos de causa e efeito, em algum grau, parece nos submergir em distintos estados de transe ("projeção-identificação", nas palavras de Morin). Quando o famoso escritor argentino Pablo de Santis (histórico roteirista da Fierro), ao trabalhar com o virtuoso ilustrador Juan Sáenz Valiente, traz o tema do hipnotizador a esta magnífica história publicada em capítulos pela nova versão da Fierro, isso pode ou não ter sua carga de metalinguagem. Gosto de achar que sim, e as reviravoltas na história soturna de um mestre argentino desta antiga arte, que desvela o passado das pessoas através do sono, mas não consegue dormir, parece um indicativo interessante de seu dilema enquanto artista que alterna as funções de escritor e de roteirista de HQs (da qual ele estava afastado havia anos). O escritor domina a arte de induzir o sono imaginativo construído na mente de leitor. Ao quadrinista cabe o trabalho de sonhar pelo mesmo.

O hipnotizador foi republicado em bela edição da Reservoir Books na forma de novela gráfica em 2010. Seria uma bela pedida de tradução para o português. Numa narrativa sombria e cheia de desgastes úteis, tipo noir da antiga Buenos Aires, os autores vão desenhando um trama insólita e kafkiana, entre o sonho, o transe e o pesadelo, prestadora de tributo a tipos geniais como Borges ou Poe. As ilustrações e a amostra caricatural na galeria de personagens, cheia de gente pérfida, arrasada, trágica, não deve nada a um Dobro de cinco, de Mutarelli, ou a um Daytripper, em termos de engenhosidade. Cabe lançar um olhar delongado aos nossos nobres vizinhos. Valiente é dono de uma arte líquida, aquarelada, onde predominam púrpuras e pastéis de um passado obscuro, de capital latinoamericana. Neste quadro simples, apenas um numa página com nove, Arenas põe os pingos nos "i"s de seu obscuro ofício: "A hipnose, senhores, não é magia. É uma poderosa forma de sugestão. É a ciência do sono induzido". Tampouco parece magia a arte de narrar e elaborar uma história em quadrinhos. Parece, na verdade, uma ciência do sono voluntário (CIM).  

Moon e Bá em Brasília

Fábio Moon e Gabriel Bá participam hoje (terça-feira, 31 de janeiro), a partir das 19h30, de um bate-papo no teatro Eva Herz, localizado da Livraria Cultura do Iguatemi Shopping (Brasília) - o acesso é livre. Na pauta, o sucesso de Daytripper, os caminhos do quadrinho nacional e os próximos trabalhos dos irmãos. Na entrevista a seguir, os gêmeos paulistanos adiantam um pouco da conversa que vai rolar à noite. (PB)
* Crédito da foto: JR Duran




Daytripper repercutiu muito bem, nacional e internacionalmente. Qual dos reconhecimentos recebidos pela obra deixou vocês mais felizes? Por que?
Gabriel: Todo reconhecimento do Daytripper nos deixa felizes, de formas diferentes. Nos Estados Unidos, foi nosso maior projeto autoral e serviu para nos consolidar como autores, não só como desenhistas. Aqui no Brasil, foi nosso primeiro trabalho que conseguiu reunir o reconhecimento que temos no exterior, os prêmios que a obra ganhou, a visibilidade que temos na mídia e o fato do próprio livro estar sendo lançado e disponível no país inteiro. Estamos muito felizes com tudo.

E qual o reflexo dessa boa repercussão na carreira de vocês?
Gabriel: Hoje somos mais reconhecidos como autores, não só desenhistas, e as editoras estão mais abertas para nossos projetos — não só para usar nossos desenhos nas histórias dos outros. Vários convites para convenções e eventos de quadrinhos ao redor do mundo são resultado desta repercussão e temos tentado balancear as viagens com o trabalho, pois é importante divulgar e promover os livros, mas é preciso continuar produzindo material novo.

Vocês conseguem perceber o surgimento de novos leitores para o trabalho de vocês?
Fábio: Estamos sempre buscando novos leitores. Quadrinhos não são só pra “nerds” ou “crianças”. Queremos expandir o mercado de quadrinhos e mostrar a pessoas que não costumam ler HQs que elas podem encontrar ali histórias incríveis. Acredito que o Daytripper esteja fazendo um pouco isso, mas precisamos continuar produzindo este tipo de quadrinhos pra conseguir realmente formar este público “novo”.

Um assunto recentemente muito discutido por quem faz e lê quadrinhos foram as propostas de lei para cotas de produção nacional nas editoras brasileiras. Vocês acompanharam essa história? O que pensam a respeito dessas propostas?
Gabriel: Acho que pode ajudar na formação de público se bem utilizado nas escolas e faculdades (como propõe o artigo 5º da lei). Mas não acredito que resolverá a vida dos autores e criará problemas para editoras, principalmente as pequenas. Nunca se publicou tanta HQ como hoje em dia, em variedade de gêneros e títulos, tanto estrangeiros quanto nacionais.

O que vocês leram de interessante de quadrinho nacional em 2011 e recomendariam para as pessoas?
Gabriel: Um projeto muito bacana de 2011 foi uma página de quadrinhos no IG, de onde surgiram três trabalhos excelentes: O beijo adolescente, de Rafael Coutinho; Roberto, do Edu Medeiros; e Tune 8, do Rafael Albuquerque. Tanto o Beijo adolescente quanto o Tune 8 foram compilados e publicados em papel. Outra HQ legal foi Achados e perdidos, do Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho, pois é uma boa história infanto-juvenil, gênero pouco trabalhado no quadrinho nacional.
Fábio: E quem continua firme e forte numa ilustre carreira nos quadrinhos é o Gustavo Duarte, que depois das premiadas (2009) e Taxi (2010), lançou Birds, mais uma HQ sem falas, contando tudo com seus elegantes desenhos.

Quais os planos de vocês para 2012? Quando poderemos ler o próximo trabalho de vocês?
Fábio: Este ano vamos lançar um álbum da série Cidades Ilustradas, da Casa 21, sobre São Luís do Maranhão. Além disso, também deve sair por aqui o Casanova, série que fazemos nos Estados Unidos com o escritor Matt Fraction. Estamos trabalhando na adaptação para os quadrinhos do livro Dois irmãos, do Milton Hatoum, mas vai demorar ainda pra ficar pronto.

Daytripper: quadrinhos como vontade e representação























por Ciro I. Marcondes

Li Daytripper, dos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá, em um avião. De certa maneira, acabei me tornando um leitor privilegiado de uma obra que não para de receber o mais unânime e justo laureamento. No avião, você parece ainda mais dentro de Daytripper, como se esta coincidência de ironia macabra fizesse parte daquele penúltimo capítulo, de um sonho emaranhado na vida, que nunca termina. Como Daytripper nos alerta, a cada instante, da possibilidade iminente da morte (ainda que celebrando a robustez da vida), não apenas não havia como não se substituir pelo personagem Brás de Oliva Domingos (isso é óbvio, já que esta HQ fala mesmo é de mim, você, todos), como não havia como não pensar em minha própria morte, em sua iminência, naquele mesmo instante. Para quem já leu, apenas imaginem como me senti enquanto estava lendo o capítulo do acidente da TAM.  Penso que alguns não conseguissem empreender tal façanha (ler Daytripper no voo), mas a vida é esta, e o pior que podemos perder é ela própria, não é? Segui lendo, arriscando minha própria obsessão por uma morte irônica, e venci esta venturosa graphic novel.


Na página de abertura do capítulo dos sonhos, vemos Brás retornando ao episódio onírico em que se encontra, num bote, com Iemanjá, em mar aberto, rodeado por oferendas. Ela lhe diz: “Você é este barco flutuando em um oceano infinito. Estas cestas contêm desejos, ambições... forças que movem sua vontade adiante. Porém, se você ficar aqui apenas olhando para elas... cedo ou tarde... elas irão todas afundar”. Esse trecho, além de retomar a própria trajetória do personagem e dar-lhe ares mitológicos, fundamenta a linda base filosófica (schopenhaueriana, como veremos) da qual a HQ parte: a vida como insistência em resistir à força inelutável que é a morte.


Para quem ainda está por fora, um resumo didático: cada capítulo de Daytripper é um dia na vida de Brás de Oliveira Domingos – o nome nos leva ao Brás Cubas de Machado de Assis, curiosamente num romance que trata seu protagonista como meio para uma elaboração niilística e moderna da vida –, da infância à velhice. São dias fundamentais, marcados por experiências que dividem águas para o personagem. Cada capítulo é nomeado pela idade em que Brás está no momento. Isso não seria uma história particularmente incomum se, ao final de cada capítulo, não nos deparássemos com a morte do próprio Brás, sempre em circunstâncias acidentais, fazendo emergir um significado próprio da vida do personagem caso ela tivesse acabado com aquela idade em particular. A cada idade, somos um, e o que seremos no futuro será determinado tanto pelo acaso quanto por nossa perseverança.

Eu já havia escrito a respeito de outra HQ de Moon e Bá, bem menos ambiciosa, em que um mote similar se nos é (uau) apresentado: a ideia de que cada decisão nossa, a cada instante, gera um outro eu hipotético, que segue sua trilha paralela, que, por sua vez, a cada instante, gera outra trilhas, etc. Em Daytripper, esta ideia se amplifica com incomparável força lírica, colocando-nos diante de escolhas (ou acidentes) a respeito de quem nos tornamos, e como nos tornamos, e o que é, afinal, nossa biografia diante da dialética que plasma nossa vontade pessoal e as forças inexoráveis do acaso. Afinal, qual é a biografia de Brás de Oliveira Domingos? Ele é o jovem obituarista frustrado que morre em um assalto, nunca tendo conseguido sair da sombra do pai? É o escritor de sucesso que morre nas mãos enlouquecidas de seu melhor amigo? É o “pequeno milagre”, que, como uma flecha, atravessa o mundo e se despedaça? Moon e Bá criam um sistema de possibilidades, um roteiro de intervenções possíveis, um logaritmo gerador de vidas e mortes. O sentido da história, porém, convulsiona-se para o leitor: quem, quando e onde é você? Quem, quando e onde foi você? E, a mais importante, porque temos o poder de mudar: quem, quando e onde será você?

Quem, quando e onde será você?

Quando eventualmente afirmo que os quadrinhos são a forma de arte mais importante para o mundo que está se construindo no século 21, não tenho intenção de criar frases de efeito e bravatas. Daytripper aparece em um cenário cultural em que outros meios já problematizaram há muito a percepção da vida, do espaço, do tempo e da memória levando suas potencialidades ao limite. Vejamos Rashomon, de Kurosawa, e sua ideia de que a verdade é um consenso de causos. Vejamos O ano passado em Marienbad, de Resnais, em que se indistinguem a memória do fato, e a visão do personagem da própria visão do narrador, e a credibilidade do próprio ato de rememorar, tornando impossível sistematizar leitura para o filme. Já lemos o delírio como expressão da vida em Dom Quixote, já lemos a vida como jornada de volta às catacumbas do tempo, em Proust. Já lemos um dia como a própria vida, em Joyce. Daytripper faz de sua estrutura em quadrinhos e vidas simultâneas um projeto de probabilidades, e nos coloca no olho desta consciência de que devemos, inevitavelmente, calculá-las e agir, a cada instante. É um grande fardo e uma grande aventura. Os quadrinhos, em sua simultaneidade, seu vai-e-vem, acabam se tornando expressão máxima desta encruzilhada de probabilidades.

Para o leitor brasileiro, a beleza desta história tem ainda sabor especial, porque os gêmeos a situam numa cuidadosa seleção de memórias (não-clichês, vejam bem), de nosso imaginário cultural. O espaço, seja ele amplo (a Chapada Diamantina, as cidades de Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro), diminuto (um posto de gasolina numa estrada brasileira, uma mesa de bar, um quarto, um sítio), ou histórico (o acidente da TAM, a popularidade de um time de futebol, a tecnologia de cada época) nos é revelado com esmero e afetividade. A jornada de Daytripper, para nós, é também uma jornada enquanto brasileiros, revisitando com essa memória afetiva nossa própria trajetória nacional (muitas vezes não muito diferente da de Brás) através de objetos, marcas, formas, cores. Os personagens, tão cheios de humana complexidade, envelhecem e rejuvenescem com verossimilhança, e Daytripper não deixa de ser também um estudo sobre a fisionomia humana.


Destino schopenhaueriano

Por fim, vale pensar uma conclusão de base mais filosófica, já que, afinal de contas, a HQ trata, de maneira muito específica e direta, da vida e da morte. E é fácil levar uma leitura focando em algum tipo de épico íntimo (é um paradoxo, eu sei) que traceja o rompimento brusco entre a grandiosidade de cada momento da vida e a obtusidade da morte. Porém, pensando em um filósofo como Schopenhauer (e podemos avançar para um procedimento psicanalítico, em Freud, ou científico, em Richard Dawkins), nós somos movidos por um ímpeto originário e gerador de todas as coisas, chamado Vontade, que nos impele, em moto perpétuo, adiante.

A irrefreável Vontade é, de maneira um tanto platônica, o movimento natural e invisível de todas as coisas, combustível processador e gerador do mundo e que é, no fim das contas, o mundo em si. Essa Vontade – que é ao mesmo tempo nosso instinto de sobrevivência, o pulsar de nossa consciência, nossa sensação de presença e nossa força libidinal – se manifesta em seu duplo material, a Representação (todas as coisas que vemos, sentimos e percebemos), em cuja multiplicidade se replica, em cada mínimo ser, a centelha da Vontade. O objetivo da Vontade é, num mundo de Representação, a manutenção da própria Vontade, e isso basta enquanto “sentido da vida”. Queremos arrumar trabalho, diversão, felicidade, satisfação espiritual, afeto, sexo e reprodução simplesmente porque estes são caminhos válidos e inquestionáveis para que nossa Vontade possa continuar existindo. Aspiramos não apenas a continuar vivendo, mas à imortalidade em si. A morte, é claro, seria o cessar da Vontade.

Quando os gêmeos falam em “Você é este barco flutuando em um oceano infinito. Estas cestas contêm desejos, ambições... forças que movem sua vontade adiante”, estão trazendo este destino schopenhaueriano, com toda sua pungência, ao mundo dos quadrinhos. E que melhor mídia que os quadrinhos, com sua mistura de simultaneidade em sucessão, linguagem simbólica (palavras!) e icônica (imagens!) para nos desvelar um mundo de vontade e representação? Quando lemos Daytripper, tememos a morte (como temi no avião) e refazemos a trajetória da nossa vida com intensidade e sufocamento justamente porque esta HQ atinge o coração de nossa Vontade, acendendo-lhe a centelha iridiscente. E daí passamos a olhar quem somos, em nossas dores e amores, em percalços e desventuras, em nossas origens familiares, nossos habitats, nossos céus e infernos particulares. Coisas, é claro, que nos distraem enquanto procuramos ludibriar a presença da morte, que, como Daytripper bem mostra, está sempre à espreita, em qualquer lugar, em qualquer circunstância, a cada momento, a cada etapa da vida.