Daytripper: quadrinhos como vontade e representação
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por Ciro I. Marcondes
Li Daytripper, dos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá, em um avião.
De certa maneira, acabei me tornando um leitor privilegiado de uma obra que não
para de receber o mais unânime e justo laureamento. No avião, você parece ainda
mais dentro de Daytripper, como se esta coincidência de ironia macabra
fizesse parte daquele penúltimo capítulo, de um sonho emaranhado na vida, que
nunca termina. Como Daytripper nos alerta, a cada instante, da
possibilidade iminente da morte (ainda que celebrando a robustez da vida), não
apenas não havia como não se substituir pelo personagem Brás de Oliva Domingos
(isso é óbvio, já que esta HQ fala mesmo é de mim, você, todos), como não havia
como não pensar em minha própria morte, em sua iminência, naquele mesmo instante.
Para quem já leu, apenas imaginem como me senti enquanto estava lendo o
capítulo do acidente da TAM. Penso que alguns não conseguissem empreender tal façanha (ler Daytripper no
voo), mas a vida é esta, e o pior que podemos perder é ela própria, não é?
Segui lendo, arriscando minha própria obsessão por uma morte irônica, e venci
esta venturosa graphic novel.
Na página de abertura do
capítulo dos sonhos, vemos Brás retornando ao episódio onírico em que se
encontra, num bote, com Iemanjá, em mar aberto, rodeado por oferendas. Ela lhe
diz: “Você é este barco flutuando em um oceano infinito. Estas cestas contêm
desejos, ambições... forças que movem sua vontade adiante. Porém, se você ficar
aqui apenas olhando para elas... cedo ou tarde... elas irão todas afundar”.
Esse trecho, além de retomar a própria trajetória do personagem e dar-lhe ares
mitológicos, fundamenta a linda base filosófica (schopenhaueriana, como
veremos) da qual a HQ parte: a vida como insistência em resistir à força inelutável que é a morte.
Para quem ainda está por fora, um
resumo didático: cada capítulo de Daytripper é um dia na vida de Brás de
Oliveira Domingos – o nome nos leva ao Brás Cubas de Machado de Assis,
curiosamente num romance que trata seu protagonista como meio para uma
elaboração niilística e moderna da vida –, da infância à velhice. São
dias fundamentais, marcados por experiências que dividem águas para o personagem. Cada
capítulo é nomeado pela idade em que Brás está no momento. Isso não seria uma
história particularmente incomum se, ao final de cada capítulo, não nos
deparássemos com a morte do próprio Brás, sempre em circunstâncias acidentais,
fazendo emergir um significado próprio da vida do personagem caso ela
tivesse acabado com aquela idade em particular. A cada idade, somos um, e o que
seremos no futuro será determinado tanto pelo acaso quanto por nossa
perseverança.
Eu já havia escrito a respeito de outra HQ de Moon e Bá, bem menos ambiciosa, em que um mote similar se nos é
(uau) apresentado: a ideia de que cada decisão nossa, a cada instante, gera um
outro eu hipotético, que segue sua trilha paralela, que, por sua vez, a
cada instante, gera outra trilhas, etc. Em Daytripper, esta ideia se
amplifica com incomparável força lírica, colocando-nos diante de escolhas (ou
acidentes) a respeito de quem nos tornamos, e como nos tornamos, e o que é,
afinal, nossa biografia diante da dialética que plasma nossa vontade pessoal e
as forças inexoráveis do acaso. Afinal, qual é a biografia de Brás de Oliveira
Domingos? Ele é o jovem obituarista frustrado que morre em um assalto, nunca
tendo conseguido sair da sombra do pai? É o escritor de sucesso que morre nas
mãos enlouquecidas de seu melhor amigo? É o “pequeno milagre”, que, como uma
flecha, atravessa o mundo e se despedaça? Moon e Bá criam um sistema de
possibilidades, um roteiro de intervenções possíveis, um logaritmo gerador de
vidas e mortes. O sentido da história, porém, convulsiona-se para o leitor: quem, quando e onde é você? Quem, quando e onde foi você? E, a mais importante, porque temos o poder de mudar:
quem, quando e onde será você?
Quem, quando e onde será você? |
Quando eventualmente afirmo que os quadrinhos são a forma de arte mais importante para o mundo que está se construindo no século 21, não tenho intenção de criar frases de efeito e
bravatas. Daytripper aparece em um cenário cultural em que outros meios
já problematizaram há muito a percepção da vida, do espaço, do tempo e da
memória levando suas potencialidades ao limite. Vejamos Rashomon, de
Kurosawa, e sua ideia de que a verdade é um consenso de causos. Vejamos O ano passado em Marienbad, de Resnais, em que se indistinguem a memória do
fato, e a visão do personagem da própria visão do narrador, e a credibilidade
do próprio ato de rememorar, tornando impossível sistematizar leitura para o
filme. Já lemos o delírio como expressão da vida em Dom Quixote, já lemos a vida como jornada de volta às catacumbas do tempo, em
Proust. Já lemos um dia como a própria vida, em Joyce. Daytripper faz de
sua estrutura em quadrinhos e vidas simultâneas um projeto de probabilidades, e
nos coloca no olho desta consciência de que devemos, inevitavelmente,
calculá-las e agir, a cada instante. É um grande fardo e uma grande aventura.
Os quadrinhos, em sua simultaneidade, seu vai-e-vem, acabam se tornando
expressão máxima desta encruzilhada de probabilidades.
Para o leitor brasileiro, a
beleza desta história tem ainda sabor especial, porque os gêmeos a situam numa
cuidadosa seleção de memórias (não-clichês, vejam bem), de nosso imaginário
cultural. O espaço, seja ele amplo (a Chapada Diamantina, as cidades de
Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro), diminuto (um posto de gasolina numa
estrada brasileira, uma mesa de bar, um quarto, um sítio), ou histórico (o
acidente da TAM, a popularidade de um time de futebol, a tecnologia de cada
época) nos é revelado com esmero e afetividade. A jornada de Daytripper,
para nós, é também uma jornada enquanto brasileiros, revisitando com essa
memória afetiva nossa própria trajetória nacional (muitas vezes não muito diferente da
de Brás) através de objetos, marcas, formas, cores. Os personagens, tão cheios de humana complexidade, envelhecem e rejuvenescem com verossimilhança, e Daytripper não deixa de ser também um estudo sobre a fisionomia humana.
Destino schopenhaueriano
Por fim, vale pensar uma
conclusão de base mais filosófica, já que, afinal de contas, a HQ trata, de
maneira muito específica e direta, da vida e da morte. E é fácil
levar uma leitura focando em algum tipo de épico íntimo (é um
paradoxo, eu sei) que traceja o rompimento brusco entre a grandiosidade de cada
momento da vida e a obtusidade da morte. Porém, pensando em um filósofo como
Schopenhauer (e podemos avançar para um procedimento psicanalítico, em Freud,
ou científico, em Richard Dawkins), nós somos movidos por um ímpeto originário
e gerador de todas as coisas, chamado Vontade, que nos impele, em moto
perpétuo, adiante.
A irrefreável Vontade é, de
maneira um tanto platônica, o movimento natural e invisível de todas as coisas,
combustível processador e gerador do mundo e que é, no fim das contas, o mundo
em si. Essa Vontade – que é ao mesmo tempo nosso instinto de sobrevivência, o pulsar de nossa consciência, nossa sensação de presença e nossa força libidinal
– se manifesta em seu duplo material, a Representação (todas as coisas que
vemos, sentimos e percebemos), em cuja multiplicidade se replica, em cada
mínimo ser, a centelha da Vontade. O objetivo da Vontade é, num mundo de
Representação, a manutenção da própria Vontade, e isso basta enquanto “sentido
da vida”. Queremos arrumar trabalho, diversão, felicidade, satisfação
espiritual, afeto, sexo e reprodução simplesmente porque estes são caminhos
válidos e inquestionáveis para que nossa Vontade possa continuar existindo.
Aspiramos não apenas a continuar vivendo, mas à imortalidade em si. A morte, é
claro, seria o cessar da Vontade.
Quando os gêmeos falam em “Você é
este barco flutuando em um oceano infinito. Estas cestas contêm desejos,
ambições... forças que movem sua vontade adiante”, estão trazendo este destino
schopenhaueriano, com toda sua pungência, ao mundo dos quadrinhos. E que melhor
mídia que os quadrinhos, com sua mistura de simultaneidade em sucessão,
linguagem simbólica (palavras!) e icônica (imagens!) para nos desvelar um mundo
de vontade e representação? Quando lemos Daytripper, tememos a morte
(como temi no avião) e refazemos a trajetória da nossa vida com intensidade e
sufocamento justamente porque esta HQ atinge o coração de nossa Vontade,
acendendo-lhe a centelha iridiscente. E daí passamos a olhar quem somos, em
nossas dores e amores, em percalços e desventuras, em nossas origens
familiares, nossos habitats, nossos céus e infernos particulares. Coisas, é
claro, que nos distraem enquanto procuramos ludibriar a presença da morte, que,
como Daytripper bem mostra, está sempre à espreita, em qualquer lugar,
em qualquer circunstância, a cada momento, a cada etapa da vida.