A iniciativa ENQUADRINHOS

Novidade nos bancos de poeira do planalto central! Eu já venho dizendo que algo acontece na química que constrói os quadrinistas do Distrito Federal. Por aqui, paredes dos túneis das tesourinhas e passarelas por debaixo do eixão são encantadas e coloridas por pôsteres, lambe-lambes, ilustrações, grafites e stencil com poesia vagabunda. Bem ou mal, a linguagem gráfica ganha cada vez mais adeptos e os quadrinhos, enquanto forma de comunicação mais versátil e modelável do séc. 21, se inscrevem como mais uma forma de identidade da nossa jovem capital.

Pois eis que uma inciativa do grupo GIBI (que meigo), integrado por estudantes de pós-graduação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (incluindo o professor Lima Neto, membro da RAIO LASER), formalizou a criação de um evento que dá um passo além tanto na formulação teórica e científica quanto na criação artística em quadrinhos no território brasileiro. Trata-se do ENQUADRINHOS - 1° ENCONTRO DE QUADRINHOS DE BRASÍLIA (16 a 18 de setembro de 2015). Diferentemente de outros eventos semelhantes que também ajudam a consolidar o estudo dos quadrinhos como campo acadêmico, o Enquadrinhos, despojado, vai se focar em um formato mais breve (o pôster) e apostar no mérito de dar oportunidades iguais de apresentação tanto para o pesquisador quanto para o artista: existem as modalidades de inscrição "acadêmica" e "artística". 

Além dos trabalhos, divididos em quatro abrangentes eixos temáticos, o Encontro contará com quatro pauladas em forma de palestras, realizadas por gente de calibre tanto em produção acadêmica, quanto em editoração, quanto em realização artística: Paulo Ramos, Edgar Silveira Franco, Henrique Magalhães e Rafael Coutinho. Tudo isso ajuda a se pensar uma confluência dialógica entre artistas, pesquisadores e editores, elaborando a única sinergia possível para a continuidade e ampliação do movimento vibrante que ocorre com os quadrinhos no Brasil atualmente, mas que corre (sempre) o risco de morrer na praia graças à marginalização que o meio sofreu em todas as suas áreas de atuação desde... bem, desde sempre.

É hora de consolidar o grande momento dos quadrinhos no Brasil. Não apenas com uma morosa institucionalização e legitimação técnica e intelectual, mas sim com pensamento vigoroso, transformador, capaz de entender e modelar os processos que este meio de comunicação e arte move na sociedade. E isso não é possível sem que mercado, academia e os próprios artistas pensem conjuntamente. É o que o Encontro está propondo. Artista ou pesquisador, vai lá e se inscreve sem medo! É até 13 de julho. (CIM)

NORMAS PARA ELABORAÇÃO DE POSTER

1 – O EnQuadrinhos receberá resumos de trabalhos acadêmicos e projetos de produção em quadrinhos de inscritos ligados ao ensino superior. Os resumos aprovados serão transformados em posters para exibição durante o evento e se dividirão em duas categorias: Poster acadêmico e pôster artístico.

2 - Para que o pôster proposto aprovado seja apresentado é obrigatória a inscrição formal do autor, ou um dos co-autores no site do evento: www.enquadrinhos.net.br

3 - Cada poster poderá ter 01(um) autor principal e até 02 (dois) co-autores;

4 - Os resumos aprovados deverão ser adaptados para o formato de pôster e enviados para confecção até a data prevista (conferir nos informativos do site). O pôster impresso deve ser apresentado ao público por, no mínimo, um de seus responsáveis em um horário pré-determinado para apreciação geral e avaliação por parte da comissão científica;

5 - É obrigatório que o autor responsável pela inscrição forneça os seguintes dados: Título do Trabalho e nome de todos os autores com seus respectivos vínculos institucionais. Importante - Esses dados serão utilizados para confecção do certificado. O preenchimento incorreto é de inteira responsabilidade dos autores, e não implicará em troca de certificados posteriormente;

6- Prazo para sumissão de resumos: impreterivelmente até dia …, através do site www.enquadrinhos.net.br;

7 - Os posters devem obedecer as medidas de 120cm de altura e 80cm de largura, ou seja, obedecendo a orientação de retrato. Deverão estar expostos com clareza no poster: título, autores e instituição de origem na parte superior com o logotipo da respectiva instituição;

8 – O arquivo digital do pôster deve ser enviado no formato PDF atentando para o gerenciamento das cores em CMYK (cores para impressão);

9 - Abaixo do título e da identificação deve constar, em letra de tamanho inferior à utilizada no texto, a forma de contato com os autores;

10 - A área de apresentação deve conter as informações referentes aos objetivos da pesquisa, processo metodológico, corpo da pesquisa, discussão e referências bibliográficas (no caso de poster científico);

11- Deverá ser reservado 15 cm de altura na parte inferior do poster onde será colocada a identificação do Encontro (logotipo do encontro e das agências de fomento participantes assim como os apoiadores privados);

12 - Cada trabalho exposto receberá um certificado.

13 - Os certificados estarão disponíveis no site do evento em data que ainda será determinada.

Redundância e obsessão: reminiscências sobre Homem Animal de Grant Morrison

Olá pessoal. Meu nome é Lima e já colaborei com a Raio Laser em alguns textos no passado. Este agora é meu primeiro ensaio de uma nova e promissora fase de intensificada participação na Raio e que pretende ser marcada por uma fronteira bem anuviada quanto as fontes quadrinísticas. Quem já leu meus textos anteriores percebeu que tenho um pé firme no quadrinho “mainstream” e, de fato, considero urgente promover uma leitura crítica do que se passa nas bancas de revista atuais. Há os que prefiram nem passar perto da massa amorfa e sem graça que se fabrica nas grandes editoras do gênero. O que considero uma atitude razoável. Mas a força que estes quadrinhos industriais exercem no imaginário atual, e os problemas que desencadeiam, me fazem ver na Raio Laser um espaço perfeito para escarafunchar este material de maneira crítica contribuindo para que um eventual leitor das “grandes editoras” possa ter despertada uma curiosidade para com outros gêneros e matrizes de produção de HQ’s. Sendo claro, boa parte do meu objeto de discussão vai ser o quadrinho de grande tiragem, o que inclui o gênero super-herói ou o Mangá, entre outros tantos. Aqueles que não suportarem este tipo de quadrinho podem ignorar os textos com a minha benção. Findo esta breve apresentação com um bem-vindo a todos e vamos logo ao que interessa. (LN)

por Lima Neto

As histórias em quadrinhos nos capturam pelo olhar. É uma obviedade dizer isso, mas é sempre saudável lembrar que, na expressiva dança entre palavra e imagem que transcreve a leitura de uma HQ, é a imagem que toma a dianteira na sedução. É depois que o olhar engole o anzol pictórico que a narrativa encontra a abertura para desfraldar sua trama, seus dramas e acontecimentos. Mesmo que não tenha palavras, uma HQ vai ser formada de uma sequência de imagens que encenam um narrar ordenado que se desfralda da direita para a esquerda (no ocidente). Uma página de quadrinhos é, portanto, uma ou mais imagens que se submetem a uma narrativa que não é própria de seu estatuto. Ou melhor, a narrativa linear impregnada de imagens da página de quadrinhos instaura um estatuto próprio que é fruto de uma síntese entre a linearidade narrativa e a espacialidade visual.

Volto agora alguns 20 anos no passado. As bancas de revistas dos primeiros anos dos anos 90 viviam um momento de glória. O quadrinho nacional encontrava um fôlego econômico para se proliferar e as HQ’s mensais das grandes editoras, sob o monopólio da então soberana editora Abril, chegavam em fases novas e autorais graças à chegada no Brasil da conhecida invasão britânica. Alan Moore se consagrava como respeitado criador do meio. Neil Gaiman já causava frisson com a tessitura narrativa de seu Sandman e uma segunda leva de escritores aportava nas praias brasileiras. Nomes como Jamie Delano, Peter Milligan e um criativo escocês chamado Grant Morrison.

No início dos anos noventa o autor destas linhas estava na sexta série. O hábito de ler quadrinhos me permitia descobrir verdadeiros esconderijos em minha escola para ficar em paz. As HQ’s não prestigiavam deste respeito artificial que pode se ver hoje em dia, e ler um gibi no recreio só era possível longe das pessoas “normais”. Num destes esconderijos, encostado numa grade de ferro e sentado desconfortavelmente no chão de paralelepípedos que separava o pátio do recreio das quadras de educação física, minha relação com as histórias em quadrinhos, e consequentemente com o mundo das imagens, mudou completamente. Lendo uma edição do extinto mix DC 2000, especificamente uma das sempre impressionantes histórias do Homem-Animal de Grant Morrison, fui tomado por uma imagem que era ao mesmo tempo um lugar-comum e uma epifania.

Esta cena do personagem Buddy Baker o retrata no ápice de uma viagem de autoconhecimento regada a peyote ritual. Prometendo respostas para seu passado confuso e seu presente surreal, um Doutor indígena chamado Highwater oferece respostas através de um ritual shamânico. Como resultado deste procedimento, Buddy recebe três revelações, sendo que a terceira é a revelação da existência de uma outra dimensão acima dele que não apenas observa o que se passa em sua vida, como sua vida se revela como um simples entretenimento. Resumindo, naquela manhã, no intervalo da minha escola, um super-herói se tornou ciente da minha presença e do impacto que ela causa em sua vida. O mundo para mim nunca mais foi o mesmo e esta imagem tornou-se uma obsessão.

Cabe aqui uma melhor contextualização deste momento na história do personagem. Afinal, este texto não pertence à seção HQ em um quadro. Conhecido por seus roteiros “viagem”, ao trabalhar para a DC Comics, Morrison escolhe o personagem mais esquisito que estava à disposição. O Homem Animal era um personagem do quinto escalão da editora. O “homem com poderes animais” ganhou seu dom ao ser exposto a uma radiação alienígena e, sem nenhuma história memorável fora a participação em outros títulos como a participação especial do mês, terminou seus dias ao lado dos Heróis Esquecidos, um grupo de heróis de igual celebridade nula. Com a reformulação da editora, durante a saga Crise nas Infinitas Terras, Morrison recebe carta branca para fazer o que desejasse com o personagem e o transforma em um herói ecológico e pai de família que encara a luta contra o crime como um trabalho normal como outro qualquer. Suas aventuras esquisitas o colocavam contra soldados poetas e obras de arte de destruição em massa, gênios do mal suicidas, deuses africanos cancerígenos e messias coiotes que se recusavam a morrer. Era a alucinação da era de prata elevada a níveis concentrados de lisergia. É para dar conta deste cotidiano dadaísta que o Homem Animal decide embarcar no ritual que termina por lhe revelar sua natureza como ficção. Ao se defrontar com o nonsense absoluto que é a morte, o herói adentra neste labirinto da meta-linguagem até encontrar com o responsável por suas desgraças: Grant Morrison.

Retornando à imagem. Algumas páginas antes de olhar para mim, Buddy está discutindo com ele mesmo. Trata-se da versão do Homem-animal de antes de Crise, aquele dos Heróis Esquecidos. Ele revela o segundo segredo para Buddy, o de que houve outro Buddy Baker que foi apagado para que o atual vivesse. É este Homem-Animal, devidamente vestido em seu uniforme adornado com uma gigante letra “A”, que revela minha presença para Buddy. E é a partir da visão de minha presença que o personagem decide ir à busca de seu criador.

Retornando à imagem. A metalinguagem é usada nos quadrinhos desde seus primeiros anos e aparece abundantemente nos quadrinhos de humor até os dias de hoje. De fato é um recurso retórico de efeito fácil, mas, em mãos hábeis, a metalinguagem ainda consegue exercer seu assombro poético. Esta imagem é, como todo requadro de uma página de HQ, uma janela. Mas Morrison abre a janela. Escancara. O olhar de espanto de Baker, representado de maneira honesta pelo artista Chas Truoug, se eleva em direção ao leitor e o puxa para dentro. É um vórtice de identidades, de arbítrios que se querem livres sem saber que seguem um roteiro. Tornamo-nos personagem direto da revista e por uma fração de segundo somos uma criação de Grant Morrison. Muito esperto senhor Morrison. Entretanto, havia algo mais, e, na busca deste algo mais, passei a seguir o senhor Morrison aonde quer que ele fosse. Mas não foi nele que encontrei respostas. Pelo menos não encontrei respostas diretas.

Não foram os limitados componentes estéticos da imagem que repercutiram na minha alma naquele momento. Como desenhista, Truoug é bastante limitado e exerce sua função de maneira bem burocrática e direta. Sua construção pictórica do rosto espantado é pobre quando comparada à imensa miríade de desenhistas que trabalhavam na indústria naquele período pré-Vertigo e esta dobradinha “bons roteiros X arte medíocre” vai ser uma bandeira que viria a se tornar o selo de quadrinhos adultos da DC Comics. A razão de minha obsessão residia no significado daquele momento na narrativa do personagem (o que estava sendo representado nas ações e gestos dos personagens), e a maneira com que este momento é foi passado ao leitor (as escolhas linguísticas que foram tomadas ao criar a cena). Interpretando esta imagem sob a luz das pesquisas empreendidas por Gilbert Durand é possível perceber que o efeito “mágico” da cena é resultado de suas características enquanto imagem simbólica.

A palavra “símbolo” vem do grego sumbolon que, assim como o hebraico mashal e o alemão sinnbild, implica uma reunião de duas metades. No caso do símbolo, uma reunião entre significante e significado. Significante é a parte visível do símbolo e esta possui 3 dimensões concretas: uma dimensão cósmica – que reproduz o que está visível a sua volta; uma dimensão onírica – que constrói sua imagem a partir dos gestos fantásticos de nossos sonhos e fantasias e  esta intimamente ligada à nossa biografia pessoal; e uma dimensão poética – construída com a matéria prima da linguagem em seu momento de maior ímpeto. Se a arte de Truoug corresponde a dimensão cósmica, então a narrativa visual da imagem vai corresponder a dimensão onírica, e a metalinguagem corresponde à dimensão poética deste requadro simbólico. Como se pode ver, o lado significante do símbolo é infinitamente aberto em suas possibilidades figurativas. Mas é próprio do símbolo que este significante só se refira a uma “qualidade” não figurável.

Esta “qualidade” não figurável é o componente do outro lado do símbolo: o significado. Como o significante, o significado também é infinitamente aberto. Por não ser representável, o significado se espalha por todas as ordens de coisas e dimensões. A dimensão do significado é epifânica. No símbolo, significado e significante estão sempre divergindo, sua existência é uma aproximação feliz e fugaz. Esta inadequação só é superada pela redundância. A ação de sempre retornar a imagem simbólica de forma a reinterpretá-la, a corrigi-la e complementá-la. Como o fizemos em parágrafos anteriores. Da mesma forma este texto é a volta mais recente de uma redundância que minha alma executa desde os anos 90 em cima da imagem principal deste texto. Não à toa Durand descreve a redundância da imagem como com a imagem de um solenoide.

Vimos que a redundância exercida sobre a imagem do HA é baseada nas dimensões poética e onírica do símbolo que engendra. Durand estipula que as redundâncias estabelecidas por meio de relações linguísticas são conformam símbolos mitológicos, enquanto que as redundâncias que emergem dos gestuais oníricos e subjetivos prescrevem os símbolos rituais. A dimensão cósmica, a representação dos fenômenos do mundo, engendra múltiplas redundâncias. Quando afirmamos que a arte de Truoug é “pobre” esteticamente é porque são poucas as redundâncias possíveis no espaço que ele encena sua representação em comparação, por exemplo, com uma página de Little Nemo. Os símbolos destas redundâncias são os símbolos iconográficos.

Mas, voltando à imagem, e voltando aos quadrinhos. A complexidade da imagem simbólica é grande. E ainda mais complexo é o simbolismo em uma página de quadrinhos. Na HQ, diferentes tipos de símbolos se revezam na construção da narrativa. O próprio quadrinho pode ser considerado uma narrativa simbólica onde dois lados de propriedades distintas se encontram ligados de maneira indissociável. Mas no que tange à imagem em questão, identifico dois simbolismos originários de redundâncias distintas que exercem seu efeito sobre mim. O símbolo poético que a metalinguagem representa e o símbolo mítico do encontro que a imagem exprime.

Como vimos, Buddy Baker se encontra na imagem no ápice de um encontro epifânico. É uma jornada dentro de sua própria psique. Neste embate ele encontra consigo mesmo em sua versão original de Homem Animal. E este o mostra a verdade de sua condição como ficção. Na obra de Morrison o mito do labirinto é uma imagem persistente. Até em sua recente passagem pelo título de Batman, concluída em 2013, encontramos referências diretas ao mito e seus componentes: 

No mito do Minotauro, o herói Teseu adentra o labirinto para salvar os atenienses mandados para ser pasto para o monstro com cabeça de touro e corpo de homem. Ao se encontrar com o vilão, Teseu usa de uma arma proscrita para matá-lo o que acaba por amaldiçoar seu destino heroico. O que Teseu encontra no fundo do labirinto é a imagem de seu próprio instinto animal reprimido para o subconsciente, mas, ao eliminá-lo, torna-se Minotauro. Seu valor heroico se inverte. O herói vira monstro e o monstro torna-se vítima. Buddy Baker se encontra com seu “eu” em um estado mais primário, original. Um homem com poderes animais. Um Minotauro encarcerado no labirinto à espera de seu libertador. Mas tudo que encontra é Buddy Baker, seu lado humano, sua identidade secreta. A imagem do homem sem sua parte animal. E, sendo vítima do mito, Buddy pouco pode fazer para salvar seu oposto animal. Mas antes de morrer, o Homem Animal clássico aponta para a saída do labirinto. No mito original há apenas duas saídas do labirinto, pelo fio de Ariadne ou por cima, pelos céus. Esta é a estratégia utilizada por Dédalo, o inventor do labirinto, e seu filho para escaparem do encarceramento ao qual foram condenados por ajudar Teseu. Olhando para trás e para cima, Buddy vê não sua liberdade, mas enxerga aqueles entes aos quais sua liberdade é submetida. Em uma indústria onde a qualidade do que é produzido fica em terceiros e quartos lugares, as possibilidades poéticas do personagem são severamente limitadas pelas intenções do público alvo. Neste vislumbre de liberdade, nós leitores nos tornamos personagens da história. Submetemos-nos às mesmas imposições às quais a vida de Buddy sofre. Como Teseu e o Minotauro, nós trocamos de lugar com Buddy Baker.

Esta troca é expressa pelo símbolo poético representado pela metalinguagem. Uma meta linguagem extrema, radical, impetuosa. A metalinguagem é a ação de abrir a cortina. De rasgar a fina película que separa a cena de seu público. É um ato de trazer o leitor para dentro do mecanismo de construção de uma escritura e fazê-lo perceber seu funcionamento. Nesta imagem que analisamos este “trazer para dentro” se torna queda. Torna-se um choque que derruba, pulveriza a fantasia e a espalha pela realidade misturando uma com a outra. E assim permanecem ligados até o final da história, quando Grant Morrison, o próprio Dédalo, entra em cena e revela para Buddy a natureza de sua existência.

A redundância da imagem simbólica, seu padrão circular, vai encontrar paralelo na noção de eterno retorno que a imagem possui. Diferente da palavra, a imagem não tem ordem de leitura. Ao se deparar com uma imagem, o olhar se fixa em um ponto que lhe seja significativo à subjetividade do observador e este passa a construir e ler a imagem a partir de visadas cíclicas que sempre retornam a este ponto determinado, muitas vezes sem razão lógica aparente.

Em uma narrativa em quadrinhos, este eterno retorno se submete à linearidade da leitura aos moldes da palavra. Mas isto não impede que seus símbolos efetuem redundâncias. E Grant Morrison é bem ciente disto. No título que vai trabalhar paralelamente ao Homem-Animal – Patrulha do Destino – Morrison recria o personagem da era de prata, Homem-negativo, na forma de Rebis. Uma entidade andrógina de corpo enfaixado que emite uma versão negativa de si mesmo para fora de seu corpo. Rebis é o nome do casamento alquímico entre dois elementos distintos, processo que é usado por Jung para descrever sua noção de símbolo e que vai ser posteriormente retomado por Durand. O personagem Rebis também é reconhecido como o Ourobouros: imagem da serpente que engole a própria cauda. Símbolo de eternidade e do fluxo circular do eterno retorno. É a imagem e sua redundância encarnados em um único personagem. Também o Ourobouros é um símbolo muito usado por Morrison. Mesmo em sua recente fase em Batman, o escritor insere o conceito de Ourobouros na forma de uma fonte de energia que nunca se esgota, como um moto-perpétuo. 

A propriedade redundante da imagem também vai ser representada, em Patrulha do Destino, na figura de um quadro arcano que suga para dentro tudo o que está fora. No arco “A pintura que engoliu Paris”, o bizarro grupo de desajustados que compõe a Patrulha do Destino se vê sugado para dentro do quadro junto com a cidade de Paris. Dentro o quadro, o grupo pula de uma dimensão para outra, cada uma representando um círculo do intricado labirinto que é a imagem do quadro. Cada círculo é regido por uma escola estética da arte: parte do grupo vai para um mundo futurista, outra parte se vê presa em um mundo impressionista. Há até um circulo dadaísta. Difícil não ver a produção simbólica humana como uma série de redundâncias, das quais as escolas estéticas são voltas em torno deste enigmático símbolo maior: a vida. 

Botando moral

Qual o limiar da moralidade nos comics?

O artigo de S. Seelow, “Frank Miller,Batman e o choque de civilizações”, publicado no Monde, (claro, sem querer) coloca uma questão interessante, diria mesmo de ordem, sobre o universo dos quadrinhos. Entre as polêmicas em torno do neo-conservadorismo de Miller, o autor achou por bem recorrer a um atalho, para dizer o mínimo, discutível: para explicar as reações negativas de fãs (note-se: desprezando as positivas) o texto afirma categoricamente que “o universo dos comics tem inspiração majoritariamente humanista e liberal”. Não sei bem o que quis dizer com “humanista”, mas o “liberal”, claramente é evocado num sentido meio pacifista, imoralista. Vindo de um jornal francês, ironicamente, vem-nos logo a lembrança, não direi do choque, mas de certo paralelismo entre duas subculturas bem conhecidas: a dos comics americanos e a das bandes dessinées franco-belgas (camada subliminar que me parece importante).

A pergunta que falta é a seguinte: entre os principais apelos do universo cultural norte-americano (e falo, evidentemente, não apenas dos quadrinhos) não está justamente seu moralismo fantasticamente (ia dizendo: fanaticamente) monolítico? “Heróis e vilões” (mocinhos e bandidos, diriam nossos pais, avós) simbiótica, surrealisticamente unidos, do espaço sideral ao velho oeste, até que a morte os separe...? A fórmula, claro, é bem ampla, mas no caso dos quadrinhos é preciso ir além; diria que não se trata apenas de uma forte característica mas da fórmula mais geral de seu sucesso e popularidade. Mesmo no cinema, provavelmente devido a seu público mais adulto, sempre houve um equilíbrio maior de gêneros e mensagens. Nos quadrinhos, dado seu papel semi-infantil ou semi-educativo, esse recurso tornou-se uma verdadeira norma formal, tudo o mais sendo “alternativo” (sintomático o surgimento, meio freudiano, dos quadrinhos de terror-erótico...?). Natural que essa tendência se manifestasse com força em solo puritano, certo?

Tex: típico herói americano?

Vamos com calma: 

Tex, herói típico americano é, na verdade, italiano. A atração exercida pelo ambiente desértico serve universalmente como pano de fundo, neutro, a-histórico, transcultural (como naqueles fundos nebulosos de J.-L. David), para o afirmação de uma ética simples, possível apenas num espaço ideal (versões urbanas: Gotham, Metropolis, etc.). É que o velho duelo do bem contra o mal, no fundo sabemos, não é uma bobagem. Bobagem é acreditar que ele é simples ou fácil. (Mesmo um ser-de-nada como Sartre visitou "o diabo e o bom Deus"). Um herói como o amnésico Ken Parker (meu favorito), mais dado a contradições, a mudar de lado, ora com índios, ora no exército, mesmo não repetindo o sucesso de Tex, buscava a tal da “verdade”. Diria que nos quadrinhos, mesmo quando isso não é o principal, permanece certa obrigatoriedade clássica de um chiaroscuro moral. Sendo assim, quem sabe, a exemplo da história da arte, haja certa vantagem em olhar o todo em termos de "clássico" e "anti-clássico".

David: ética simples, fundo simples

Heróis como Capitão América e Super-Homem, por exemplo, mantém esse apelo e parecem mesmo inviáveis sem ele (fórmula compatível com o cômico, com o ridicularizar-se a si próprio, pelo menos desde o final dos anos 80 com a Liga da Justiça, hoje consagrada no cinema com Os Vingadores - ia me esquecendo da série Batman, anos 60!). Anti-heróis como Justiceiro, Wolverine, e mesmo europeus como um Corto Maltese, um Blueberry, são só uns semi-Pilatos: guardam a estranha “mania” de serem bonzinhos. Pagam seu tributo a César. Os recordes de bilheteria dos filmes sobre heróis indicam que o seu simbolismo, o impulso de fazer a coisa certa, permanece vivo.

Certo, existem anti-heróis autênticos e de sucesso -- mais “anti” que “heróis” --, como Elektra (novamente Miller), Ranxerox, etc. O interessante é que são personagens "sem olhar", talvez mais artísticos, mas certamente menos (ou demasiado) humanos. Paira sobre esses quadrinhos uma espécie de nuvem negra de negação e contradição. Um classicista diria que são indispensáveis na medida que permitem renovar nosso gosto pelos clássicos.

Relatividade sem relativismo, moral sem moralismo... Os quadrinhos, atenção historiadores e sociólogos, educaram uma geração!

Elektra: anti-heroína autêntica

JORNADA!!!

Começa amanhã, e segue até quarta-feira, a III Jornada de Estudos Sobre Romances Gráficos na UnB. O evento é organizado pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea e, desta vez, tive a honra de participar da organização. Apresentarei, logo na primeira mesa, no dia 24, o trabalho "A espaçotopia a partir de Moebius", e vou ministrar um pequeno workshop sobre a história dos Quadrinhos no dia 25. A programação está muito rica e conta ainda com o lançamento do livro Histórias em quadrinhos: diante da experiência dos outros, organizado por Regina Dalcastagnè.

Segue a programação abaixo e... programe-se! (CIM)


III Jornada de Estudos sobre Romances Gráficos
 
Brasília – Universidade de Brasília – 24 a 26 de setembro de 2012
Local: Auditório 1 do Instituto de Ciências Biológicas
Coordenação: Regina Dalcastagnè (UnB) 
Comitê organizador: Ciro Inácio Marcondes (UnB), Gabriel Estedis Delgado (UnB), Igor Ximenes Graciano (UFF), Ludimila Moreira Menezes (UnB), Maria Clara da Silva Ramos Carneiro (UFRJ) 
Organização: Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea
Apoio: Departamento de Teoria Literária e Literaturas 
Inscrições pelo e-mail:jornadaromancesgraficos@gmail.com
As histórias em quadrinhos contaminaram o imaginário contemporâneo com seus personagens mais famosos, assim como sua estrutura icônica e sua narrativa tornaram-se referência para outras artes. Elas fazem parte do universo plástico e afetivo de pessoas de diferentes faixas etárias, gêneros, nacionalidades. Das tiras às histórias mais longas, seu sistema compreende diversos modos de realização, dentre as quais destacamos as graphic novels – ou romances gráficos. Fugindo ao herói tradicional dos gibis, muitos romances gráficos tratarão de temas extremamente literários, trazendo à baila, também, novas possibilidades discursivas. Dessa forma, os romances gráficos suscitam questões sobre o mercado livreiro, a indústria do entretenimento, a arte como relato e testemunho, e apresentam-se como espaço de exercício sobre memória, subjetividade, gênero, sexualidades. São problemas frequentes para a crítica literária que podem ser analisados, hoje, à luz desse objeto cultural ainda tão pouco estudado. 
Nesse âmbito, a Jornada de Estudos sobre Romances Gráficos, organizada pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, chega à sua terceira edição confirmando-se como um espaço necessário ao aprofundamento de tais discussões. Reunindo estudantes, profissionais da área de comunicação, artes e literaturas, professores e pesquisadores, o evento cresce a cada ano, envolvendo, a cada vez, novos eixos de debates.


PROGRAMAÇÃO
Dia 24/9
MESA 1
8h às 10h
Pontos de contato entre literatura infantil e histórias em quadrinhos no mercado editorial brasileiro
Paulo Ramos (Unifesp)
A espaçotopia a partir de Moebius 
Ciro Inácio Marcondes (UnB)
A utopia enquanto forma em La fièvre d’Urbicande
André Cabral de Almeida Cardoso (UFF)
MESA 2
10h30 às 12h
Formas animadas e percursos de leitura da imagem: vetorialidade e sistema das ações no humor gráfico
Benjamim Picado (UFF)
Sigmund Freud em quadrinhos: O homem dos lobos 
Pascoal Farinaccio (UFF)
Arquiteto de papel: ação do duplo em Asterios Polyp
Rosângela Maria Soares de Queiroz e Cleriston de Oliveira Costa (UEPB)
MESA 3
14h30 às 16h
Os homens da areia de Hoffmann e Gaiman
Sílvia Herkenhoff Carijó (UFF)
A fase independente de Alan Moore e sua cria subversiva
Naiana Mussato Amorim (UFU)
A Liga Extraordinária: o fanfiction de Alan Moore e Kevin O’Neill
Vinicius da Silva Rodrigues (UFRGS)
MESA 4
16h30 às 17h30
Jonah Hex: um cowboy americano de típico italiano
Alex Vidigal Rodrigues de Sousa (UnB)
Os cegos, os mortos, os bárbaros: desastre, violência e prognósticos do presente em Os mortos-vivos e Ensaio sobre a cegueira 
Pedro Galas Araújo (UnB)



Dia 25/9
MESA 5
8h30 às 10h
A difícil representação da equivocidade feminina em O homem que ri: da narrativa hugoana aos romances gráficos da contemporaneidade  
Junia Regina de Faria Barreto (UnB)
O grotesco e a monstruosidade feminina em Y: o último homem
Anne Caroline de Souza Quiangala (UnB)
Anti-urbanismo queer em Fun Home: uma tragicomédia em família, de Alison Bechdel
Adelaide Calhman de Miranda (UnB)
MESA 6
10h30 às 12h
Gênero, Shoujo Mangá e história alternativa: reflexões sobre Ōoku de Fumi Yoshinaga
Valéria Fernandes da Silva (FTB/Colégio Militar de Brasília)
Representações da prostituição nos quadrinhos
Daniel Leal Werneck e Letícia Cardoso Barreto (UFMG)
MESA 7
14h30 às 16h
Liberação sexual: a juventude da contracultura a partir da autobiografia de Robert Crumb, emMinha vida
Larissa Silva Nascimento (UEG)
Autobiografia e subjetividade: Fréderic Boilet e a nouvelle manga
Tiago Canário de Araújo (UFBA)
Sarjeta: o espaço subjetivo dos quadrinhos
André Valente (UnB)
MESA 8
16h30 às 18h
Capuchinho Vermelho, de Charles Perrault, e Mônica: a de vestidinho vermelho, de Mauricio de Sousa: dois estilos, duas linguagens e a expressão contemporânea do conto de fadas
Rita de Cássia Silva Dionísio (UNIMONTES)
O exílio da gata: a mulher felina como ameaça sexual em Batman
Marcia Heloisa Amarante Gonçalves (UFF)
Heróis em ação: palavra, narrativa e heroicidade na longa viagem entre o passado e o presente
Juliano de Almeida Pirajá (UEG)



Dia 26/9
MESA 9
8h30 – 10h
Narrativas contemporâneas: das artes “à margem”. Sobre Encruzilhada e outras “artes periféricas”
 Maria Clara da Silva R. Carneiro (UFRJ)
A imagem na palavra, a representação sob o signo da Esfinge em A arte de produzir efeito sem causa, de Lourenço Mutarelli
Rafael Martins (UFMG)
A narrativa visual em Eu te amo Lucimar, de Lourenço Mutarelli
Guilherme Lima Bruno E. Silveira (UNESP/São José Rio Preto)
MESA 10
10h30 – 12h
Infortúnios espaciais, prosperidades distantes em Lucille e Renée, de Ludovic Debeurme
Ludimila Moreira Menezes (UnB)
Desenhos do isolamento: personagens de Jimmy Corrigan, de Chris Ware
Breno Couto Kümmel (UFMG)
The Left Bank Gang: crise da memória e a crise na escrita
Pedro Henrique Trindade Kalil Auad (UFMG)
MESA 11
14h30 – 16h
Tradução e formação do mercado editorial dos quadrinhos no Brasil
Dennys da Silva Reis (UnB)
E-comics: linguagens, estratégias e prospectivas
Raimundo Clemente Lima Neto (UnB)
A poética da imagem como o atrativo de HQs
Eliane Dourado (UnB)
MESA 12
16h30 – 17h30
A peso do fandon no universo dos quadrinhos
Lucas de Sousa Medeiros (UFU)
Graphic novels na escola: o que propõem os suplementos de leitura?
Angela Enz Teixeira (UEM)



Oficinas
24/09 (18:30 às 21h30)
Oficina Básica de HQ’s, com André Valente
25/09 (18:30 às 21h30)
Oficina “História dos quadrinhos em 3 atos”,  com Ciro Marcondes



Lançamentos
Livro Histórias em quadrinhos: diante da experiência dos outros, organizado por Regina Dalcastagnè.
Número 39 da revista Estudos de literatura Brasileira Contemporânea, com dossiê sobre “realismo e realidade”.

A verdade dos quadrinhos e os ciúmes


Alexandre Linck Vargas é professor universitário de Cinema. Atualmente faz também doutorado sobre Teoria dos Quadrinhos e escreve para um blog diferente, com uma proposta "além", o Quadrinhos na Sarjeta. Linck realiza leituras analíticas, muito contextuais, deslindando visões estéticas e sociopolíticas a partir dos quadrinhos, e seu blog é altamente recomendado. Aqui, colaborando para a gente, ele escreve sobre a Academia e os Quadrinhos, um tema relevante. Como em qualquer assunto, os quadrinhos são matéria-prima para o pensamento estético, filosófico e/ou sociológico. Não existe absolutamente qualquer razão para que assim não o seja, considerando que o "pensamento acadêmico" por sí só não existe, a não ser como direcionamento do próprio pensamento em si. Obrigado Linck e boa leitura a todos! (CIM)

por Linck

Antes de tudo gostaria de agradecer o convite do Ciro para escrever aqui. Demorei para achar o tom na medida em que já escrevo em outro lugar e não queria apenas fazer mais um texto de “rotina”. Pensei então em concentrar uma discussão que de certa maneira se dissemina em cada texto lá no Quadrinhos na Sarjeta: A verdade das HQs! (música de revelação). Isso é pretensioso? Demais. E é mentiroso também. Eu não falo da verdade, muito menos das HQs, mas quero pensar um pouco o problema da verdade.
                                         
É sabido que historicamente os quadrinhos foram pouco lidos pela academia. Há diversas iniciativas que se destacam, mas pontuais. No Brasil existem duas tradições bastante fortes, a tradição semiótica e a tradição marxista. Mesmo assim num país pouco escolarizado e bastante alheio ao mundo acadêmico, essas duas linhas não encontraram muita ressonância no leitor comum. Com isso criou-se um curioso cenário de isolamento. Não só isolamento da academia com o leitor, mas também entre os pequenos grupos que estudavam quadrinhos no âmbito acadêmico.


Tudo isso que aponto, tenho por base algumas conversas que ouvi do pessoal da velha guarda, como Álvaro de Moya e Moacy Cirne. Mas também noto isso falando com os antigos colecionadores de quadrinhos. Seja como for, o que me parece evidente é que grupos ou pessoas, no isolamento cultural natural dessa arte, outrora “lixo”, desenvolveram verdades a respeito das HQs para si. A falta de interlocução fora do “clube” propiciou isso. Então chegamos aos anos 2000.

O gradual movimento de valorização das HQs na Europa nos anos 1960, no Brasil nos anos 1970 e nos EUA nos anos 1980 fez os quadrinhos integrarem toda uma sorte de debates nos dias de hoje, sejam eles estéticos, políticos, mercadológicos, etc. Somados à internet, com a profusão de blogs e sites a respeito, qual o resultado mais provável? Um estranhamento. Mas não qualquer estranhamento, falo do tipo ciumento mesmo, ensimesmado que quando vislumbra um olhar muito diferente sobre algo já consolidado para si, tende a deixar de ver, rejeitar ou até mesmo agredir. “Como ousa dizer que o Batman é assim quando ele é assado?” é a personificação desse gesto. Academicamente outro clichê é “você não pode ler Batman assim ignorando a teoria a, o autor b e tradição c”!

O que está em jogo no cenário atual é uma espécie de choque com o reflexo. “Como alguém que curte Conan, como eu, pode ser tão diferente?”  A resposta, creio eu, é porque as HQs são de fato uma arte rica, como qualquer coisa que pode ser enriquecida quando tanta gente devota uma paixão. O maior desafio agora, entre os leitores, nos blogs e na academia, é a abolição da verdade. Do conceito de verdade, dessa metáfora que a gente usa pra encerrar uma discussão e preservar narcisicamente um pensamento. “Isso é verdade, tudo o que você disser contrário é mentira!”. A afirmação de uma verdade é a maior covardia perante a responsabilidade que um olhar pode ter. Só hipocritamente se eximindo de nossa atuação extrínseca que dá pra qualificar como verdadeiro algo intrinsicamente.

Semioticismo, marxismo, ou qualquer outro ismo são formas de ver, ferramentas que uns julgam mais eficientes, outros não. Faz parte do jogo. A mesma coisa vale com aquele leitor que nunca precisou recorrer a essas teorias pra ler um gibi. Teorias são atravessadas na cultura, a diferença é quando conhecemos a tradição que nos inserimos e praticamos ou não. Por isso a necessidade de largar mão de certos ciúmes, aceitar outros olhares no que há de contínuo, criativo, estranhamente diferente no outro. É por aí que se potencializa a artes das HQs, não no vale tudo da relatividade, mas no próprio poder de inventividade dos argumentos. Contra o choque monocromático da verdade é preciso o diferencial da afecção de cada um. Longa vida criativa então aos espaços dedicados a pensar os quadrinhos de forma aberta – mesmo que sejam eles, também, muito estranhos ao meu olhar! Sigamos, como quadro após quadro, na diferença do desenho, que estabelece uma única narrativa.

Razão, causalidade e narrativa: o caso das HQs

por Eiliko Flores

O uso que fazemos das palavras é capaz de dizer muito sobre o modo como enxergamos o mundo. No uso da palavra razão encontra-se as marcas de como, em geral, a concebemos. Dizemos que “a razão disto é aquilo”, ou seja, associamos, sem perceber, razão a causalidade, como se fossem a mesma coisa. Quando dizemos que “a razão disto é aquilo” estamos querendo dizer justamente que a “causa” disto é aquilo. Mas um pensamento que se guie unicamente pela causalidade na interpretação do mundo certamente corre sério risco de reduzí-lo. O mesmo acontece na narrativa: ainda que muitas narrativas sejam construídas em torno de uma causalidade que simplesmente encadeia os acontecimentos, há sempre a possibilidade de construir de outro modo o que se quer contar. Um exemplo banal: começar pelo fim.

Se associamos de modo tão escancarado razão e causalidade, e se é verdade que a causalidade não é tão importante assim para a arte, não é estranho que se associe tanto arte e loucura. O reino da arte consegue subverter o primado da causalidade, permite o exercício de uma racionalidade outra, sem as rédeas e margens do mecanicismo. Subverter os meandros da causalidade na narrativa, explorar os múltiplos significados que podem surgir quando deixamos de ser regidos pela racionalidade anquilosada do pensamento estreito e unívoco, abrindo campo para a exploração de associações inesperadas, é uma experiência de liberdade: é deixar que emerja o mistério e a plurissignificação, é a descoberta de novas maneiras de interpretação e figuração do mundo, capazes de surgir do choque e da diferença entre os fragmentos, e não apenas de seu mero encadeamento linear, causal.

No âmbito da arte seqüencial, a justaposição de quadros pode, evidentemente, limitar-se a colocar uma ação ou pensamento depois do outro, como em uma narrativa tradicional. Entretanto, essa lógica pode ser subvertida, e não é nenhuma novidade: a justaposição de quadros pode ser capaz de associar imagens e momentos aparentemente desconexos, ocasionando a implosão de plurissignificações e simbolismos que a mera causalidade desconhece. 

Associações narrativas inesperadas: uma experiência de liberdade

Citando um artista da arte seqüencial contemporânea, de reconhecida posição iconoclasta, é fácil perceber que, há décadas, Laerte produz quadrinhos que subvertem não apenas a lógica causal em sua arte (promovendo, muitas vezes, associações inesperadas que beiram um absurdo calculado) e que afrontam todo um modo de ver o mundo. Laerte subverte a lógica estreita e mecanicista do dia-a-dia, as caretices das quais faz parte a causalidade erigida como lógica imperialista do pensamento. E não é o único, é claro.

Narrativa segundo Laerte

O pensamento causal, indispensável à ciência, é de pouca utilidade para a atividade do artista e sua interpretação da existência: basta dizer que o fluxo da vida, excluídas as contingências naturais, encontra pouco amparo na causalidade, embora seja comum que tentemos conduzir nossas ações segundo esse tipo limitado de lógica, prevendo conseqüências e reações a cada pequeno instante, de maneira automática. Não é a toa que o que se chama de ironia trágica, ou ironia do destino, seja justamente a emergência na cadeia dos acontecimentos de algo imprevisto, contraditório, inesperado e completamente avesso àquilo que as expectativas usuais poderiam prever. Também não é por acaso que a arte do século XX demonstrou a inutilidade da imediatez causal frente às marés do pensamento interior e suas associações selvagens, essa dança das idéias e sensações que transfigura o mundo exterior em símbolos e significações.

É o caso do movimento geral dos sonhos que encontramos em Little Nemo, por exemplo. É curioso ver que ali a lógica da criança está associada a tudo, menos à causalidade: e é inevitável notar que o jogo de associações que resulta da exclusão da causalidade imediata – que obviamente emula o universo infantil mais primário – alcança, em Little Nemo, justamente a expressão de muitas das possibilidades poéticas da arte seqüencial. A zombaria que se faz da causalidade, como nas vanguardas do século XX, associada com freqüência ao mundo infantil por razões óbvias, é, na arte, expressão da mais alta maturidade e domínio de expressão.

Little Nemo: lógica da criança não está associada à causalidade

O Dr. Manhattan de cada um

Utilizando nomenclatura que talvez seja considerada antiquada, poucas vezes a lógica causal, importante nas ciências exatas, consegue importar no mundo da arte na consideração daquilo que não está aparente, do que não é facilmente apreensível ao nosso redor. Causas aparentes, na arte, em geral são apenas isso: aparentes. A aparência é muito usada para determinar causas e conseqüências, e daí saem todos os preconceitos. Também todos os utilitarismos, toda a paranóia, toda a doentia vontade de poder que instrumentaliza o mundo, tentando dominar as causas e conseqüências de cada pequeno aspecto da realidade, até o limite da frustração. É nosso lado Dr. Manhattan – tanto mais evidente à medida que Dr. Manhattan se desumaniza, ao longo de Watchman.

É impossível negar a importância do pensamento causal e ele é necessário. Mas pode ser nocivo quando se transforma em um modo padronizado de interpretação do mundo, baseado mais em associações do que em diferenças. É isso o que a arte, incluindo os quadrinhos, consegue enfrentar. Jogar fora a causalidade seria, também, apenas infantilidade (sem arte). Recairíamos em uma ênfase desmedida no casual, no gratuito. Questões de pesos e medidas, é claro. 

Não pretendemos com estas considerações nenhuma atividade prescritiva: não pressupomos este texto como uma causa, da qual se extraia necessariamente uma conseqüência. Há muito mais no mundo do que isso.

Eiliko Flores é escritor, compositor e professor de literatura brasileira. 

Serviço de utilidade pública: III Jornada de Romances Gráficos


III JORNADA DE ESTUDOS SOBRE ROMANCES GRÁFICOS
Data: 24 e 25 de setembro de 2012.

Local: Auditório 1 do Instituto de Ciências Biológicas – Universidade de Brasília


O Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea convida para a terceira edição da Jornada de Estudos sobre Romances Gráficos. Dando prosseguimento e ampliando as discussões sobre as narrativas gráficas e suas relações, alcances, disputas no campo literário, o evento consistirá de apresentação de trabalhos, palestras com convidadas(os), oficinas, lançamentos sobre o tema. O público alvo é composto de pesquisadoras(es), estudantes, profissionais da área e interessadas(os) em geral, que poderão participar com a apresentação de trabalhos ou como ouvintes.

Inscrição: A inscrição será realizada pelo e-mail do evento – jornadaromancesgraficos@gmail.com – a partir de 15 de abril.
Pagamento da inscrição: O pagamento deverá ser realizado no primeiro dia do evento.
Professoras(es): R$ 70,00. Alunas(os) de pós-graduação: R$ 50,00. Alunas(os) de graduação: R$ 30,00. Ouvintes: R$ 20,00.

Vagas: 30 para apresentação de trabalhos e 100 para ouvintes.
Informações: http://www.gelbc.com.br
Submissão de trabalhos: 
Para inscrição de trabalhos, as(os) interessadas(os) deverão encaminhar resumo a ser analisado pela organização do evento. Estudantes de graduação poderão participar com a apresentação de pôsteres. O prazo final para envio é 20 de maio.

As(os) proponentes receberão um e-mail com a resposta até o dia 30 de junho, informando da aceitação ou não do seu resumo.
Todo o processo de encaminhamento de resumos será feito via e-mail do evento: jornadaromancesgraficos@gmail.com

Normas para apresentação do resumo para avaliação: 
A apresentação da proposta de trabalho deve conter, nesta ordem:
1) Nome completo da(o) autor(a), cidade, instituição a qual está vinculada(o), tipo de vínculo, e-mail para contato.
2) Indicação do eixo temático onde o trabalho pode ser inserido.
3) Título do trabalho, fonte times new roman, corpo 14, em negrito, centralizado.
4) Resumo, com no máximo 250 palavras, em fonte times new roman, corpo 12, espaço simples.

Eixos temáticos:
- Memória e subjetividades
- Gênero e sexualidades
- Reportagem, testemunho e relato
- Quadrinhos como expressão pictórica
- Quadrinhos de entretenimento
- Quadrinhos e mercado

Informações para apresentação de trabalhos orais: 
As apresentações terão duração máxima de 20 minutos. Será disponibilizado power point; para sua utilização, o arquivo com o trabalho deverá ser entregue com antecedência à organização do evento.

Informações para apresentação de pôsteres:
Caso o trabalho seja aceito, o pôster deverá, obrigatoriamente, ser fixado e retirado pela(o) participante no dia e local definidos pela organização. Mais detalhes serão fornecidos posteriormente.

Normas para submissão dos trabalhos científicos para os Anais:
1. Os trabalhos deverão ser enviados exclusivamente pelo e-mail do evento.
2. O trabalho deverá ter no máximo 30 páginas, incluindo as referências, conforme modelo definido pela organização, a ser divulgado. 
3. Mensagens relacionadas ao status de avaliação/aceitação ou não do trabalho serão enviadas por meio de e-mail informado na ficha de inscrição do(a) autor(a). 
4. Os trabalhos que não estiverem de acordo com as normas de submissão serão automaticamente desconsiderados para os anais.

Coordenação:
Profª Drª Regina Dalcastagnè (UnB)

Comitê organizador:
Ciro Inácio Marcondes (UnB)
Igor Ximenes Graciano (UFF)
Ludimila Moreira Menezes (UnB)
Maria Clara da Silva Ramos Carneiro (UFRJ)

Comissão acadêmica: 
Prof. Dr. Anderson Luís Nunes da Mata
Profª Drª Cíntia Schwantes
Profª Drª Maria Isabel Edom Pires
Prof. Dr. Paulo César Thomaz
Profª Drª Virgínia Maria Vasconcelos Leal

Organização: 
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea