A verdade dos quadrinhos e os ciúmes


Alexandre Linck Vargas é professor universitário de Cinema. Atualmente faz também doutorado sobre Teoria dos Quadrinhos e escreve para um blog diferente, com uma proposta "além", o Quadrinhos na Sarjeta. Linck realiza leituras analíticas, muito contextuais, deslindando visões estéticas e sociopolíticas a partir dos quadrinhos, e seu blog é altamente recomendado. Aqui, colaborando para a gente, ele escreve sobre a Academia e os Quadrinhos, um tema relevante. Como em qualquer assunto, os quadrinhos são matéria-prima para o pensamento estético, filosófico e/ou sociológico. Não existe absolutamente qualquer razão para que assim não o seja, considerando que o "pensamento acadêmico" por sí só não existe, a não ser como direcionamento do próprio pensamento em si. Obrigado Linck e boa leitura a todos! (CIM)

por Linck

Antes de tudo gostaria de agradecer o convite do Ciro para escrever aqui. Demorei para achar o tom na medida em que já escrevo em outro lugar e não queria apenas fazer mais um texto de “rotina”. Pensei então em concentrar uma discussão que de certa maneira se dissemina em cada texto lá no Quadrinhos na Sarjeta: A verdade das HQs! (música de revelação). Isso é pretensioso? Demais. E é mentiroso também. Eu não falo da verdade, muito menos das HQs, mas quero pensar um pouco o problema da verdade.
                                         
É sabido que historicamente os quadrinhos foram pouco lidos pela academia. Há diversas iniciativas que se destacam, mas pontuais. No Brasil existem duas tradições bastante fortes, a tradição semiótica e a tradição marxista. Mesmo assim num país pouco escolarizado e bastante alheio ao mundo acadêmico, essas duas linhas não encontraram muita ressonância no leitor comum. Com isso criou-se um curioso cenário de isolamento. Não só isolamento da academia com o leitor, mas também entre os pequenos grupos que estudavam quadrinhos no âmbito acadêmico.


Tudo isso que aponto, tenho por base algumas conversas que ouvi do pessoal da velha guarda, como Álvaro de Moya e Moacy Cirne. Mas também noto isso falando com os antigos colecionadores de quadrinhos. Seja como for, o que me parece evidente é que grupos ou pessoas, no isolamento cultural natural dessa arte, outrora “lixo”, desenvolveram verdades a respeito das HQs para si. A falta de interlocução fora do “clube” propiciou isso. Então chegamos aos anos 2000.

O gradual movimento de valorização das HQs na Europa nos anos 1960, no Brasil nos anos 1970 e nos EUA nos anos 1980 fez os quadrinhos integrarem toda uma sorte de debates nos dias de hoje, sejam eles estéticos, políticos, mercadológicos, etc. Somados à internet, com a profusão de blogs e sites a respeito, qual o resultado mais provável? Um estranhamento. Mas não qualquer estranhamento, falo do tipo ciumento mesmo, ensimesmado que quando vislumbra um olhar muito diferente sobre algo já consolidado para si, tende a deixar de ver, rejeitar ou até mesmo agredir. “Como ousa dizer que o Batman é assim quando ele é assado?” é a personificação desse gesto. Academicamente outro clichê é “você não pode ler Batman assim ignorando a teoria a, o autor b e tradição c”!

O que está em jogo no cenário atual é uma espécie de choque com o reflexo. “Como alguém que curte Conan, como eu, pode ser tão diferente?”  A resposta, creio eu, é porque as HQs são de fato uma arte rica, como qualquer coisa que pode ser enriquecida quando tanta gente devota uma paixão. O maior desafio agora, entre os leitores, nos blogs e na academia, é a abolição da verdade. Do conceito de verdade, dessa metáfora que a gente usa pra encerrar uma discussão e preservar narcisicamente um pensamento. “Isso é verdade, tudo o que você disser contrário é mentira!”. A afirmação de uma verdade é a maior covardia perante a responsabilidade que um olhar pode ter. Só hipocritamente se eximindo de nossa atuação extrínseca que dá pra qualificar como verdadeiro algo intrinsicamente.

Semioticismo, marxismo, ou qualquer outro ismo são formas de ver, ferramentas que uns julgam mais eficientes, outros não. Faz parte do jogo. A mesma coisa vale com aquele leitor que nunca precisou recorrer a essas teorias pra ler um gibi. Teorias são atravessadas na cultura, a diferença é quando conhecemos a tradição que nos inserimos e praticamos ou não. Por isso a necessidade de largar mão de certos ciúmes, aceitar outros olhares no que há de contínuo, criativo, estranhamente diferente no outro. É por aí que se potencializa a artes das HQs, não no vale tudo da relatividade, mas no próprio poder de inventividade dos argumentos. Contra o choque monocromático da verdade é preciso o diferencial da afecção de cada um. Longa vida criativa então aos espaços dedicados a pensar os quadrinhos de forma aberta – mesmo que sejam eles, também, muito estranhos ao meu olhar! Sigamos, como quadro após quadro, na diferença do desenho, que estabelece uma única narrativa.