HQ em um quadro: sudeste da Ásia na BD clássica, por Peyo e Delporte

Benoît Brisefer chega em Khben-Nogbang (Peyo, Yvan Delporte, 1968): bem na época em que houve a polêmica a respeito do brasileiro executado na Indonésia, eu estava lendo esta história do personagem Benoît Brisefer, clássico belga criado por Peyo (de "Schtroumps" e "Johann e Pirluit"). Aqui, o simpático mini-herói (edição: "Os doze trabalhos de Benoît Brisefer") precisa recuperar nove pedaços de papel dos títulos de um terreno com petróleo que estão espalhados pelo mundo. Isso o leva até um "certo país no sudeste asiático", descrito no letreiro do quadro aqui destacado desta maneira: "Khben Nogbang, cidadezinha do Sudeste da Ásia, mistura o charme pitoresco do extremo oriente aos benefícios da civilização ocidental...". Ao olharmos para o quadro, vemos não apenas a cidade viva, magnificamente representada no traço gros nez de Peyo, como também as propagandas de Coca-Cola ironicamente emplacadas acima das lojinhas orientais. Ora, longe de querer fazer qualquer análise pseudossociológica que compare a situação sociocultural do sudeste da Ásia com a história da BD francobelga, eu gostaria apenas de apontar algumas curiosidades ao redor deste requadro.

Fuzilamento no sudeste da Ásia... Peyo já foi chamado de racista e comunista, e creio que neste caso sua intenção era fazer uma discreta denúncia dos "males do capitalismo" chegando de maneira ambígua a "tão bárbaro país". O imaginário sobre a Ásia, e especialmente do sudeste asiático (guerra do Vietnã pegando fogo) no meio dos anos 60 dificilmente seria outro: não apenas Peyo e Delporte não nomeiam o país, tratando-o como alguma substância genérica, como logo à frente o pequeno herói se envolve rapidamente em uma trama militar, mostrando os soldados (amarelos) do sudeste da Ásia prestes a fuzilar (por engano, lógico) um "honesto" arqueólogo europeu. Logo emerge, obviamente, o imaginário do colonialismo "cientificista" belga (e francês), e em plena era das descolonizações. Logicamente, os militares de tal país são mostrados como vilões atrapalhados, que caem na astúcia de Benoìt, mas ao mesmo tempo choca a imposição de suas leis brutais, de suas sanções severas, ditatoriais. Se pensarmos hoje na Coreia do Norte, ou neste caso de execução na Indonésia, etc, de que lado estariam efetivamente Peyo e Delporte? Na denúncia da "praga capitalista" ou no estereótipo racista que constroem a respeito das culturas que eles, de maneira tão colonialmente paternal, querem "proteger"?

A China de Hergé

A resposta reside, obviamente, na ambiguidade. Se hoje estas questões são plurais e apontam para vários lados, imagine nos anos 60, quando um imaginário de identidades sólidas e iluministas ainda vigorava com força em países como a França e a Bélgica. Isso tudo poderia levar a mais um debate inútil sobre Charlie Hedbo, mas eu prefiro olhar ainda mais para o passado e pensar a HQ de Tintim O lótus azul, de Hergé (1936). Muito criticado pelo viés racista e canhestro de seu Tintim no Congo, Hergé, afetado por uma crise identitária, resolve, na época, fazer da investida do personagem na China uma verdadeira experiência etnográfica e transcultural, consultado um amigo chinês a respeito dos costumes e de maneira de ser dos chineses, à época em um impasse político graças ao imperialismo japonês, retratado na história. O detalhismo cultural perseguido por Hergé aqui é fotográfico: das casas de ópio às cidades, à natureza e aos veículos, a China era processada e representada com respeito, numa trama também militar, mas menos esquemática do que na HQ de Peyo. Há inclusive uma página inteira de desambiguação dos estereótipos chineses, e Tintim e o chinês Tchang desenvolvem terna amizade.

O que quero chamar a atenção é que esta esquizofrenia representacional e de posicionamento político que apontamos em Peyo e Delporte (é sempre um "alvo fácil" mirar uma obra de outro contexto histórico e cultural) também existe no mestre "intocável" Hergé. Qual Hergé preferimos ler: o racista do Congo ou o humanista da China? Seria fácil defender um ou outro dependendo dos propósitos e intenções ideologizantes que construímos a priori. Não se enganem: Os doze trabalhos de Benoît Brisefer é uma ótima história em quadrinhos: é dinâmica, ilustrada e narrada com a excelência da BD clássica, e um lindo inventário sobre o envelhecimento e a maturidade. O personagem é até mais cativante do que a contrapartida mais famosa das criações de Peyo (Schtroumps), além de dar um tabefe irônico na cultura de super-heróis. Até ganhou um filme recentemente. Talvez bons produtos culturais possam (e até devam) ser ambíguos, facilitando o destrinchar da complexidade que envolve nosso posicionamento ético e político nos dias de hoje.

Por fim, escrevi tudo isso para me ajudar a pensar também a capa da última revista Fluide Glacial, que, num movimento (talvez honesto) anti-Tintim (reparem que o desenho faz referência ao quadro de O lótus azul), retrata um "francês típico" carregando um chinês rico (com um loira) em uma Paris completamente dominada pela cultura chinesa, com a seguinte chamada: "Perigo amarelo! E se já for tarde demais?" A capa da tradicionalíssima revista de humor francesa (ops...) já provocou stress diplomático com a China. Enfim, novos tempos, mas a polêmica histórica continua... (CIM)  

HQ em um quadro: join the dark side, por Blain e Lanzac

Arthur Vlaminck sonha com seu ministro vestido de Darth Vader

(Christophe Blain, Abel Lanzac, 2010): sejamos francos: que interesse poderia haver em um quadrinho hiperrealista sobre a diplomacia francesa? Um quadrinho obcecado com a minúcia e a técnica do ofício, com pouco cartum, pouca narratividade, poucos pontos de virada, excessivamente repetitivo, com personagens que parecem perfeitos exemplos monótonos do que acontece em certos setores do funcionalismo público. Ora, convenhamos que está aí um pouco da graça. Quai d'Orsay (como é conhecido o Ministério das Relações Exteriores francês) teve seu roteiro concebido justamente por um diplomata que lá trabalhou no início dos anos 2000, e foi pensado em cima de vivências reais. E o fato de ser um tipo de história para insiders do mundo da diplomacia o torna um tanto enigmático e desafiador, especialmente considerando-se que a cada página conhece-se mais sobre um universo novo para a maioria das pessoas. O tom blasé (uma certa mistura do humor europeu com Dilbert) do quadrinho produz um tipo de anestesia que contamina como que por uma osmose de escritório: como o funcionário que trabalha ali dia-a-dia, vamos acompanhando reuniões enfastiantes, discursos que são refeitos mil vezes, ações megalomaníacas dos quadros superiores, etc. Acabamos nos juntando a este humor discreto erigido sobre o banal ao nos tornarmos, também, funcionários do Quai d'Orsay.

A HQ trata da trajetória de dois personagens principais: a do jovem diplomata Arthur Vlaminck, que é encarregado de escrever os discursos do Ministro das Relações Exteriores Alexandre Taillard de Vormes (baseado no ex-Ministro francês Dominique de Villepin), e a do próprio Ministro. O primeiro, em princípio acanhado, vai ganhando dimensão na medida em que começa a compreender as contradições e dificuldades hercúleas de seu ofício, sendo "seduzido" cada vez mais pelo "lado negro" da força representado pelo aspecto workaholic, midiático, idealista de fachada e contraditório do Ministro. Um interessante jogo de bastidores políticos e diplomáticos se instaura enquanto vamos acompanhando e conhecendo a maneira com que se decide uma intervenção em algum país africano, ou um discurso na ONU, por exemplo. No final das contas, o que parecia uma monótona narrativa copiosa sobre o cotidiano burocrático da diplomacia ganha ares shakespearianos quando grandes decisões precisam ser tomadas, cada palavra falada precisa ser medida e a vida de pessoas entra em jogo. Obviamente, por efeito cômico, o caso edipiano de Star Wars, em toda sua opulência dentro do pop, serviu mais aos autores do que Shakespeare, e vemos, no final do Volume 1, Vlaminck sonhando com Taillard vestido de Darth Vader (sem perder os trejeitos efusivos), procurando convencê-lo a abandonar sua vida pessoal e a se dedicar integralmente à "causa" da diplomacia. Bastante premiado (inclusive em Angoulême), Quai d'Orsay ganhou uma versão cinematográfica de sucesso em 2013, e é uma das melhores BDs francesas da atualidade. Fiquem de olho aí, editoras. (CIM).   

HQ em um quadro: o Opium do povo, por Torres, Navarro e Marcos

O povo veste a máscara de Ruben Plata (Daniel Torres, Francisco Pérez Navarro e Incha-Ramón Marcos, 1982): há várias coisas legais na HQ Opium, criação do espanhol Daniel Torres, publicada no Brasil pela Abril em 1990: primeiro, um senso completamente idiossincrático de retrofuturismo. Os carros voam, mas são Cadillacs. As máquinas se insurgem contra as pessoas, mas são eletrodomésticos dos anos 50. Os desenhos, tanto de Torres quanto de Marcos, deveriam ser sombrios e obscuros, mas são uma mistura de Spirit com linha clara francobelga. É um choque. A HQ é kitsch e cool ao mesmo tempo. Em segundo lugar, temos o protagonismo de vilões elegantes (também mais voltados à era de ouro) e intrépidos. Opium, típica criminal mastermind, parece um Mandrake que saiu pela culatra. Sua convicção pelo mal é tão atroz que emociona. Gin é a perfeita femme fatale, gloriosa e sexy, muito malvada, e consciente destes atributos. Já do lado dos heróis, temos um protagonista de perfil apenas aparentemente clássico que, na verdade, é uma figura ambígua: o âncora de telejornal Ruben Plata, sacana, melindroso e vaidoso, pode ser considerado um anti-Clark Kent, e essa é a sua maior transgressão. Na edição número 2 da minissérie que saiu no Brasil, esta incomum HQ nos apresenta um enredo bastante curioso, que ressoa em algumas coisas que estão acontecendo atualmente (comprovando que o retrofuturismo, mesmo ele, ainda pode ser premonitório). Vejam bem: o jornalista Ruben Plata se indaga a respeito de por que o povo é arrebanhado, pacato, bovino. "O cidadão médio, perdido no anonimato, isolado, desconhece suas possibilidades pessoais e sua força coletiva, convertendo-se, virtualmente, em vítima de qualquer canalha"... Dito isso, Plata resolve criar um programa que possa unificar a necessidade coletivizante da população em torno de um centro, de um imagem, de uma pessoa. Pessoa esta que é...ele mesmo! Ele cria então o show "Imite-me", buscando automatizar seus gestos, gostos e falas na população com o paradoxal propósito de "despertá-las" de seu "sono dogmático".

As consequências deste gesto ao mesmo tempo ególatra, messiânico e "generoso" levarão Plata à prisão, mas interessa mais, aqui, a reação do povo: o clamor pelo "Imite-me" torna-se tão grande que as pessoas passam a sair nas ruas com máscaras de Ruben Plata, mobilizando causas forjadas por ele, obedecendo-lhe cegamente. Em última instância, tornando-se ele. Ou tornando-se sua imagem, como diria Baudrillard. E neste momento, a imagem passa a agir, ao invés do povo. Quando Plata conclama as pessoas para irem atrás de Opium e capturá-lo, o povo, finalmente encontrando sua convicção unificadora, vai às ruas para a caça às bruxas. É como se, ao invés de máscaras de Guy Fawkes, as pessoas aqui no Brasil usassem máscaras de William Bonner achando que estão vestidas como revolucionários. Em Opium, fica difícil discernir quem usa, no fim das contas, a máscara de quem. Plata é o suposto herói da série, mas seu uso da imagem o aproxima de um vilão fascista. O povo, sem identidade, encontra-a na máscara da imagem vazia de um ícone midiático. A agressividade recalcada daquela população bovina, no final, se volta contra a própria imagem que havia lhe conferido autonomia, e eles passam a caçar Plata - o que é o mesmo que caçar a si próprios. O ciclo eterno que permeia revolução e fascismo, mediado por imagens midiáticas vazias, é o sentido que se depreende disso tudo. Uma causa se torna o Opium do povo. (CIM

HQ em um quadro: Jodorowsky for kids, por Arno e Jodorowsky

Holibanum, Alef-Thau, Diamante, Malkuth e Hogl... caem (Jodorowsky, Arno, 1989): Certamente não é recomendável escrever sobre uma obra da qual constam oito volumes e que atravessou duas décadas tendo-se lido apenas um deles, mas, apesar de em alguma instância isso aqui consistir nisso mesmo, tentarei fazer o possível para que este possa ser um texto honesto. Afinal, é função da seção "HQ em um quadro" capturar algo de essencial nos quadrinhos a partir de uma única imagem, e resolvi tornar esta pequena reflexão desafiadora justamente por esta dificuldade. De qualquer forma, confesso que comprei essa HQ pelo preço 1 (um) Euro, numa promoção da incrível Elektra Cómics em Madrid, e não sabia que era o miolo de uma série grande. A ideia aqui é atingir o âmago desta história de maneira volátil, rápida, e se possível, certeira. O que vemos aqui são cinco personagens da série "As aventuras de Alef-Thau"... caindo. Esta cena está no Volume 5 da saga: El Emperador Cojo (em espanhol); L'Empereur Boîteux, no original. O contexto da imagem merece uma linha: o grupo cai porque foge, através de um rio, de uma infestação de "vírus hipertrofiados" que consome tudo que a circunda. No final das contas, eles caem num local seco, porque a presença da imortal Diamante faz desaparecer tudo que tenta matá-la, incluindo o rio e os vírus. A paisagem é de um colorido vívido e claro, e as formações rochosas são lindas, angulosas e fluidas, algo como a Chapada dos Veadeiros aqui no DF. A geologia e a botânica do mundo mágico é um dos atrativos desta HQ. Parece uma maluquice? Pois bem-vindo ao mundo de Alejandro Jodorowsky, o inimitável criador desta história. Selecionei este quadro com os cinco aventureiros porque ele parece expressar, de maneira metonímica, os componentes básicos deste universo: senso de aventura, o sentimento do companheirismo, o risco constante, o mundo fantástico, a chance ao improvável. O que chama a atenção nesta série é o fato de o grande Jodoroswky, autor de filmes incríveis, como A Montanha Sagrada (chancelado por John Lennon) e El Topo, e da enormemente cultuada série Incal, com Moebius, ter escolhido trabalhar, paralelamente à sua obra-prima, nos anos 80 e 90, com uma série de fantasia quase infanto-juvenil, elaborada no traço límpido (quase linha-clara) do desenhista Arno. "As aventuras de Alef-Thau" pode não conter as reviravoltas catastróficas, os desdobramentos metafísicos, a inflexão religiosa e as culturas intensamente alienígenas do Incal, mas certamente guardam seu valor. Para situar o leitor: "Alef-Thau" se passa um mundo ilusório (?) de fantasia que é na realidade um jogo (literalmente) entre os chamados imortais. O personagem principal e título da saga, uma figura élfica, começa como um aleijado sem braços, nem pernas e nem perspectivas, que vai ascendendo espiritualmente enquanto seu corpo se recompõe, membro a membro.

Se a história parece insólita, tenho certeza de que não soará tão estranha àqueles já familiares ao universo do Jodorowsky. Cineasta, quadrinista, mago, ator, mímico, dramaturgo, tarólogo. A tudo compete este homem. Suas obras são mergulhadas numa busca por transcendência, onde figuras que se tornaram signo de alteridade, como bruxos, aleijados, anões e assassinos, buscam sua própria forma de redenção mística. Cabalismo, sociedades secretas, hermetismo e bruxaria não são elementos estranhos à ordem cósmica estabelecida por Jodorowsky, e eles podem aparecer tanto no passado distante ou inexistente (caso da fantasia de Alef-Thau) quanto no futuro cyberpunk pós-apocalíptico (caso de Incal). Seu interesse pela moralidade e pelo limiar da sexualidade rendeu também outras obras clássicas, como Os Bórgias (com Manara) e La folle du sacré-couer (também com Moebius). Mas o que parece ser mais primordial na obra deste grande mestre é sem dúvida o aproveitamento de uma estética surrealista como foco de resistência: a uma tradição narrativa ordinativa, bestializante e ilusória; a uma ordem lógica racionalista do pensamento, francamente aprisionadora; a uma série de barreiras psicológicas e espirituais que impedem o desabrochar de um inconsciente livre, totalizante, produtor de um verdadeiro self.

Alef-Thau traz estes elementos de maneira leve, aventureira e contagiante, como se fosse O Senhor dos Anéis que tivesse tomado, digamos, um quarto de ácido. A série é ajudada pelo desenho luminoso e super colorido de Arno, grande ilustrador que, por sinal, faleceu em 1996 e veio a aparecer como personagem na continuidade da série (coisas de Jodô). Mesmo assim, Alef-Thau não é desprovida de enredamentos instigantes, lisérgicos, non-sense ou, em última instância, completamente incompreensíveis, tais como, apenas na edição que eu li: 1) uma personagem, Malkuth, que se suicida transformando-se em energia vital para vir a ser... a nova perna de Alef-Thau. 2) uma cidade habitada apenas por pessoas feias, defeituosas ou velhas, que foram expulsas do celestial Reino do Centro Maestro, lugar encantado que aceita apenas pessoas "perfeitas", pois que seu ideal máximo é a beleza. 3) uma personagem-imortal (Diamante) que morre e renasce como um bebê que simplesmente...cresce muito mais rápido que todo mundo e logo é uma adolescente madura que pode procriar com... Alef Thau. A lista poderia prosseguir em torno de viagens astrais e monstros gigantes. Não o faremos, mas resta pensar, em primeiro lugar, na fertilidade de produção de uma mente febril e absolutamente desvinculada de qualquer premissa clássica que é a de Jodoroswky. E, em segundo e último lugar, em quão longe podem ir as HQs e a ficção em geral para adolescentes, e em quão rasos estes produtos realmente são em suas versões mais populares (literatura de vampiros, filmes de super-herói, séries de zumbis... melhor parar por aqui) . (CIM)    

HQ em um quadro: de volta às Tartarugas Ninja, por Peter Laird e Jim Lawson

Leonardo anuncia a morte de Mestre Splinter (Peter Laird, Jim Lawson, 2003): as HQs das Tartarugas Ninja fizeram grande sucesso ao tentar parodiar o estilo e índole violentas de Frank Miller em meados dos anos 80, e até hoje são algum objeto de culto (especialmente as primeiras), com muita gente considerando-as algo "sombrias", "violentas", "underground", "sérias", etc. Mesmo assim, o jeitão pop de coisa inocente e feita pra crianças que as criações de Peter Laird e Kevin Eastman atingiram com a super popularidade do desenho animado clássico (dos anos 90) e dos filmes fez com que muita gente jamais se interessasse por estas obscuras HQs. Incluindo eu mesmo. Até agora. Não que eu tenha efetivamente corrido atrás dos gibis originais, supostamente itens de colecionador nos dias de hoje, mas o acaso e a sensacional arte do ilustrador Jim Lawson acabaram fazendo com que as TMNT topassem com os olhos daqui da Raio Laser num sebo bastante maltrapilho ("Beco"?) de Porto Alegre. A estante de quadrinho era extensa, mas a grande maioria das coisas eram HQs em formato americano de todos os tipos, coisas lançadas no Brasil, X-Men, super-heróis, coisas assim. Já quase em estado de desistência diante de tanto material inócuo e sem graça, eis que vem aos meus olhos um primeiro plano chapadão de uma tartaruga ninja ostentando terrível expressão de constrangimento, com as placas do peitoral arranhadas - excelente ilustração - e o logotipo diretaço escrito logo acima: "TMNT". Achei tudo aquilo muito cool e, devido ao estado zero bala da revista, gastei uns 4 contos nela e em mais duas outras edições para sacar de qual era. Tratava-se (informei-me depois) de uma edição da quarta fase da revista, que tem publicações irregulares, com o cânone bastante interrompido (chateando os fãs), quase sempre publicado pela editora criada pelos autores originais, a Mirage Publishing (há uma fase, hoje apócrifa, publicada pela Image). O mais legal é que, a despeito de ser uma edição americana de 2003, o texto da HQ é de ninguém menos que um dos criadores dos mutantes, o gente boa Peter Laird. Laird, surpreendentemente, mesmo décadas depois, ainda leva jeito com a coisa, foi o que percebi. De leitura rápida, cheia de imagens silenciosas e quadrinização voraz que nos faz atravessar as páginas com volúpia de coisa pop bem feita, a inconclusa história desta edição número 10 traz dois plots que começavam em edições anteriores e terminam em posteriores, à tradicional maneira americana (criada pela Marvel, especificamente). O quadro que ilustra este post é o último da história, mas ele é precedido por sinais premonitórios, com algumas sequências inteligentes, sensíveis e bem-feitas do cotidiano do Mestre Splinter: o velho rato alimenta seu gato, passarinhos, toma chá, etc, no que parece uma casa de campo onde ele pode dedicar-se aos afazeres da idade avançada. 

Há uma certa beleza de um senso-comum-zen nestas sequências, de quadrinização delicada, efeitos de câmera lenta, zoom-out, grandes primeiros-planos e recursos que, por básicos que sejam, muitos iniciantes e até quadrinistas experientes simplesmente não dominam. Splinter passa a sofrer de algum mal interno (um ataque cardíaco? Um AVC?), e lentamente vamos sendo informados de que o sensei das tartarugas está a perecer. Eu não cheguei a ler a edição número 11, então não sei se Splinter efetivamente morre. Eu sei que poderia descobrir isso baixando a próxima edição na Internet, mas, de alguma maneira, prefiro ficar com o tom de epitáfio que se carrega nesta história, e com a trajetória peculiar do volume que eu adquiri no sebo. Sei que estes quadrinhos seriados tendem inevitavelmente a se estragarem, vítimas de seu próprio modelo de novela, e prefiro, neste caso, criar algum tipo de mitologia pessoal.  Esta edição não traz apenas este plot de Splinter, mas também outros que parecem traduzir bem o estilo contemporâneo de Laird: são coisas que misturam aliens com ficção científica, nanorrobótica, terrorismo digital, coisas da cultura contemporânea, firmada de maneira madura, específica, detalhada, geeky, para adolescentes inteligentes. Claro que, coroando a pequena sorte de ter topado inadvertidamente com esta edição, fica o que me chamou a atenção originalmente: a arte de Lawson é de um detalhismo esplêndido, toda angulosa, aproveitando ao máximo os requadros dinâmicos, elegantemente plasmados nas páginas, num preto-e-branco cheio de expressões caricatas, personagens com ótimo design e um apurado senso sobre como se fazer quadrinhos de aventura sem que eles sejam simplesmente horrendos ou ridículos. As tartarugas em si, vale lembrar, pouco aparecem na história, porque passam a diegese toda sedadas, mas despertam justamente nas últimas páginas para trazer um teor dramático, espécie de falha trágica, ao final da edição. O anúncio consternado de Leonardo, porta-voz do grupo, é o suficiente para mim: não tenho intenção de ler mais coisas das TMNT, já que esta experiência basta por esta vida. (CIM)

HQ em um quadro: as maravilhas tecnológicas do mundo de Storm, por Don Lawrence e Saul Dunn

Storm, Carrots e Kiley fogem de Ghast dirigindo um vagão elétrico (Don Lawrence, Saul Dunn, 1978): Storm é uma HQ de ficção-científica estilo space opera hoje bastante esquecida no Brasil, mas que havia sido publicada pela Abril naquele fértil período do final dos anos 80 e começo dos 90, quando saíram tantas coisas interessantes por aqui. Hoje não é tão difícil encontrar essas edições nos sebos, e foi por aí que me aventurei, comprando a número 1 e buscando nesta HQ algo além de aventuras mirabolantes e chamuscadas por aura tão pulp, algo além de histórias de sabor fantástico, mas datadas e carregadas de pouca credibilidade (especialmente para fãs de hard sci-fi). Esta história, que conta o início das aventuras - da série "deep world", já que há uma outra série de Storm, em universos paralelos, que continua sendo publicada até hoje - foi publicada ainda em 1978 e conta, com especial destaque, com a arte de Don Lawrence, criador do personagem, de realismo hiper-detalhista, cores intoxicantes e texturas tridimensionais. Sendo Storm um astronauta do Séc. 21 que acaba viajando no tempo e parando em uma Terra pós-apocalíptica sucumbida a um mundo barbárico, os cenários de Lawrence são ricos em representar cidades antigas, indumentárias chinesas ou mongóis, além de rostos tesos, difíceis, com largo espectro de expressões, geralmente colocando-os em close-up, para ressaltar a vivacidade de seus personagens, que parecem saltar (e realmente eles estão o tempo todo pulando de um lado para o outro) para fora das páginas. E sendo Storm uma HQ britânica, não é difícil rastrear a influência de Lawrence em nomes como Bolland ou Gibbons, ou até mesmo em americanos como Alex Ross. Ao mesmo tempo, é visível em Lawrence a presença de artistas como Hal Foster, Alex Raymond ou Burne Hogarth. Apesar de ser composto por histórias aventurescas de fácil leitura, com pouco rigor de verossimilhaça (ainda na tradição Flash Gordon/Buck Rogers, ou seja, na mistura de fantasia, ficção científica e um tipo de ficção exploratória, típica do início do Séc. 20), Storm, a partir do visual exuberante, guarda algumas surpresas. Na medida em que acompanhamos a trajetória do personagem pela nova Terra barbárica na qual ele acabara de aportar, vamos também descobrindo, junto com ele, uma sociedade secreta, que foge do tirânico Ghast, e que ainda mantém segredos tecnológicos. Descobrimos que, no passado, os oceanos da Terra foram represados por um gigantesco muro (!!!), separando duas ordens sociais, e que uma delas domina a energia elétrica e opera uma tecnologia que se mistura a espécie de magia, dotando a aventura de um charme especial, space fantasy. Além das referências à história da própria humanidade (a muralha da China), Storm traz, na forma destas tecnologias, curiosas miscigenações culturais. Uma espécie de espelho-comunicador, por exemplo, se parece com um calendário maia, rodeado por signos do zodíaco. Uma geringonça que serve para abrir a porta de um elevador se parece com um fliperama, e por aí vamos nos imiscuindo a um mundo de rico detalhismo e criatividade visual, ao mesmo tempo elaborando exotismo primitivista e retrofuturismo. No quadro acima temos o melhor exemplo desta miscelânia de história, tecnologia e sci-fi pulp. Storm, o gigante Kiley e a ruiva Carrots (as belas mulheres de Lawrence nos remetem imediatamente a Conan), fugindo do perverso Ghast, entram numa rede de túneis subterrâneos que contêm trilhos para a passagem de uma fantástica invenção: um pequeno trem, que mais se parece um vagão de parque de diversões, elétrico! A invenção, que seria capaz de solucionar problemas de trânsito em vários países, funciona que é uma beleza, e tudo fica ainda mais charmoso quando vemos que é a ruiva quem pilota o dispositivo. Todo este incrementado visual e criativo layout de máquinas nos lembra um pouco alguns universos steam-punk. Porém, no caso aqui, um punk com eletricidade primitiva, de intensa imaginação sobre a tecnologia. A alegria de sociedades primitivas, porém, dura pouco, e nosso fantástico vagão sofre um choque brutal nas páginas seguintes ao ser confrontado com... morcegos-aranha! A anatomia do mundo animal nesta HQ, porém, é assunto para outro texto. (CIM)

HQ em um quadro: o despertar de Akira, por Katsuhiro Otomo



Takashi é executado por Neru, na frente de Akira (Katsuhiro Otomo, 1982): de acordo com Jost e Gaudreault (1989), no cinema, a temporalidade é dividida entre um tempo da história, diegético, e um tempo da narrativa, que determina a ordem, a duração e a frequência com que os eventos aparecem no decorrer desta mesma diegese (sendo a diegese o mundo proposto pela ficção - a "realidade" do filme). No caso da frequência com que o evento narrativo pode ocorrer no filme, existe um tipo interessante, repetido com maestria na edição número 16 da saga de Akira (na velha edição colorida da Globo), a obra máxima do mangá escrita por Katsuhiro Otomo nos anos 80. É chamada "narrativa repetitiva", com n narrativas para uma só história. O que isso quer dizer? Takashi morre, na diegese, apenas uma vez, mas sua morte nos é mostrada nada menos que seis vezes. Qual o propósito deste recurso narrativo?

O quadro acima mostra a brutal cena de assassinato de Takashi, uma das crianças-psíquicas, fundamentais para a série, pelo nefasto Neru. Até então a presença de Takashi vinha sendo crucial para o desenvolvimento da trama, que misteriosamente vai costurando os segredos envolvendo os paranormais, que determinam uma drástica e apocalíptica mudança no mundo do séc. 21. Mais do que isso, é o elo fundamental que une todas as crianças psíquicas, via paranormalidade, que deflaga o grande impacto na rede de afetos estabelecida entre eles. A morte de Takashi traz este impacto. Como um grande estremecimento, um terremoto na teia psíquica que liga o equilíbrio frágil entre as crianças, o evento súbito provoca ondas de tormento, volumes de pânico, tempestades de tortura! Nada seria como antes.

Akira, até então sonolento e entorpecido pelo recém-despertar da câmara criogênica, sente o pavor irreconciliável da perda do elo psíquico. Rompe-se um cordão umbilical entre os paranormais. Akira, efetivamente, desperta. O evento é acompanhado pela expressão doentia, de profunda desolação e desespero, das outras crianças psíquicas, Masaru e Kiyoko. O que se segue é uma edição quase inteiramente plasmada numa grande catástrofe visual, uma das mais impressionantes representações artísticas de uma hecatombe, lembrando bastante o clássico filme de Kaneto Shindo, Os filhos de hiroshima. Akira energiza-se numa redoma côncava de poder que vai crescendo quase até dominar a cidade inteira, levando populações ao extermínio, à tomada de Neo-Tóquio por tsunamis, à queda convalescente de prédios, tudo ilustrado em uma força dinâmica dificilmente equiparável em HQ, com grandes quadros duplos, em páginas que vão virando na velocidade do próprio impacto da hecatombe. Perdemos o fôlego, e uma história em quadrinhos se transforma numa epifania de quadros colossais, verdadeira arquitetura da destruição. No final da edição, vemos o inocente Akira brincando com uma pedra no chão, enquanto acompanhamos, silenciosamente (palavras para quê?), a chegada rasteira de ninguém menos que Tetsuo, ao mesmo tempo rival e amigo da criança psíquica: um encontro que inseminará o resto da saga. Ambos voam ao céu. Um clímax se estabelece.

A cena do ataque a Takashi é tão violenta, impactante e determinante para a continuidade da saga de Akira que ela precisa ser repetida seis vezes nesta mesma edição. Entre as páginas 15 e 19, acompanhamos Takashi morrer seguidamente, em vários ângulos e pontos-de-vista diferentes, criando um efeito dramático de dilatação temporal, como se aquele instante, aprisionado, precisasse ser detido para o resto da série, congelado como Akira, paralisado na arte de observação que é a história em quadrinhos. Portanto, seis narrativas da morte de Takashi e apenas uma história. É este o efeito da narrativa potente que é Akira, em que recursos elaborados de linguagem são conjugados em uma aventura absolutamente eletrizante, que não conseguimos parar de ler, capitulada por eventos tão drásticos quanto surpreendentes, de cinético dinamismo, mudando nossa visão a respeito de sequências visuais, seja no cinema ou nos quadrinhos. Abaixo, além da página original, do quadro acima, as outras 5 "mortes" de Takashi. (CIM)