Sabrina: desolação e paranoia made in USA
/por Marcos Maciel de Almeida
Tomei conhecimento do trabalho do norte-americano Nick Drnaso há alguns dias, por causa de uma matéria na revista New Yorker. A princípio achava que ele era mais um Chris Ware wannabe, mas fiquei bastante curioso para ler seu último álbum, a graphic novel Sabrina (Drawn and Quarterly, 2018). Impulsivo – eufemismo para consumista – como sou, encomendei o gibi, que devorei rapidamente. A compra valeu a pena. A leitura foi inquietante, para dizer o mínimo. Sabrina conta a história de uma garota que desapareceu. Seu namorado, desconsolado, vai morar com um amigo em Chicago, enquanto tenta superar o acontecimento. Outra personagem é a irmã de Sabrina, que teve de segurar – praticamente sozinha – a barra com o sumiço. À medida que os fatos se desenrolam, Nick aumenta o alcance da lupa que coloca sobre cada um dos protagonistas. Existe uma sensação de desconforto latente que só aumenta durante a – lenta – narrativa.
O amigo de Nick – Calvin –, por exemplo, é um militar que acabou de levar um fora da mulher, que foi embora com a filha do casal. Entendiado com sua profissão de especialista em cibersegurança, ele está tentado a ir morar perto da ex-mulher, não porque esteja desesperadamente apaixonado, mas porque a relação de dependência emocional que tinha desenvolvido foi bruscamente cortada. Ele acha que sente saudades da convivência com a filha, sem perceber que, na realidade, a ausência da família apenas realçou o vazio de sua existência.
O grande mérito de Drnaso é construir uma história tensa, sem uso de recursos gráficos violentos ou apelativos. Tudo é muito bonito esteticamente, mas a beleza é apenas superficial. Há uma pegada meio Todd Solondz – diretor de Bem vindo à Casa de Bonecas e Felicidade. É como se nas camadas mais profundas houvesse uma bomba prestes a estourar. Cada virar de páginas traz a expectativa de que uma merda muito grande está se aproximando. E enquanto essa tragédia não se revela há um acúmulo gradual da tensão, que pode beirar o insuportável.
E muito contribuem para suscitar estas sensações negativas as escolhas gráficas do autor. A diagramação em 3 x 4 quadros é repetitiva e consegue transmitir a monotonia da rotina dos personagens. Esse efeito claustrofóbico se torna ainda mais evidente quando Drnaso cria quadros dentro de quadros numa espécie de espiral insana. Essas imagens são como fractais espalhados por meio das páginas e passam a ideia de que os personagens estão perdidos dentro de si ou atônitos diante de sua incapacidade de enfrentar suas tragédias pessoais.
A marcha inexorável de páginas ora excessivamente verborrágicas ora simplesmente silenciosas parece relegar ao leitor a mera função de refém dos acontecimentos da HQ. É uma sutil metáfora para a onda de informações inúteis e vazias a que estamos sendo diariamente submetidos. E as únicas vítimas não são apenas as pessoas reais. Também os personagens de Sabrina são atingidos pela enorme quantidade de esgoto que espelha o inconsciente coletivo de nossa sociedade, vomitado a cada segundo pelas internets da vida.
A arte de Drnaso é um capítulo à parte. O autor é mestre em transmitir emoções fazendo uso de poucos traços. A escolha por uma paleta de cores frias e neutras evidencia o distanciamento entre criador e criatura, fazendo com que os personagens se assemelhem a ratos de laboratório. Apesar desse tratamento “cirúrgico”, é muito difícil não demonstrar empatia pela leva de pequenos seres que brotaram a partir da mente melancólica de Nick Drnaso. Outra escolha gráfica acertada foi pontuar a história com os boletins de saúde de Calvin, preenchidos junto à Aeronáutica. O progressivo colapso do militar é indicado pela presença de diversos cartões de autoavaliação mental, esparramados pelo gibi.
Alternativa que combinou muito com a HQ foi a opção pelo estilo “menos é mais”. Por meio de soluções simples, Drnaso impressiona ao alterar enquadramentos para mostrar fatos corriqueiros como ligações via skype e ao criar pesadelos apenas com a mudança da paleta de cores. Storytelling elevado à última potência. A comparação com Chris Ware é inevitável, já que o autor de Building Stories é amigo e influência assumida do autor. Apesar disso, Drnaso revela-se capaz de imprimir sua marca individual, criando uma experiência imersiva e hipnótica do quilate de Jimmy Corrigan, mas com identidade e CPF próprios.
Desvendar cada página do livro é quase um prazer sadomasoquista. Sádico porque é difícil resistir ao desejo de invadir a mente de personagens afligidos por tragédias pessoais tão humanas e comuns. É como se nos deleitássemos com o alento de saber que – felizmente – aquela desgraça não aconteceu conosco. A parte do masoquismo refere-se à grande possibilidade de o leitor ser emocionalmente afetado pela obra, dada a sensibilidade da narrativa.
Outro personagem que não escapa ileso da análise ácida de Drnaso é a internet. Seus auto-propalados próceres, como youtubbers, podcasters e celebridades instantâneas parecem ter se tornado avatares do saber e das verdades únicas. Esse último refúgio dos sabichões, alguns convenientemente protegidos pelo anonimato, facilitou a disseminação de ideias estapafúrdias e idiotas. Ademais disso, é triste perceber que a rede mundial se transformou num canal de auto-promoção, fértil em atos bárbaros e atrocidades que só servem para chamar a atenção das pessoas para mentes doentias. Assim, Drnaso mostra-se hábil em reproduzir o alarmante clima de paranoia e prostração que parece ter se instalado na sociedade norte-americana.
Ponto negativo? Sim a HQ peca pela construção de um clímax que nunca chega. Mas ei, a vida não é assim?