ENSAIOS LOVECRAFTIANOS
/por Ciro Inácio Marcondes
A coisa mais misericordiosa do mundo, ao meu ver, é a inabilidade da mente humana em correlacionar todos os seus conteúdos. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio a obscuros mares de infinidade, e não nos é possível viajar muito longe. As ciências, cada uma se esticando em sua própria direção, pouco nos afetaram até agora; mas algum dia o agrupamento deste conhecimento dissociado irá abrir visões tão aterrorizantes da realidade, e de nossa assustadora posição nela mesma, que iremos ou padecer da loucura oriunda da revelação, ou fugir da luz em direção à paz e segurança de uma nova era das trevas.
Assim, desta maneira intrigante e oracular, começa o conto/novela O Chamado de Cthulhu, escrito por Howard Phillips Lovecraft em 1926 e publicado na revista pulp Weird Tales em 1928. Famoso, esse parágrafo dá conta de muito do que se associa à literatura lovecraftiana, que se tornou base para o culto cada vez mais crescente ao gênero do terror, seja no cinema, nos quadrinhos, em games ou nos próprios contos e romances. O que há ali que já nos prenuncia uma ambientação psicológica típica da originalidade deste autor tão singular?
Fotinha clássica
Há em primeiro lugar o assombro diante da complexidade da realidade, que nos induz a pensar que enxergamos apenas pequenas frestas que nos permitem um olhar recortado e insuficiente do mundo (o que continua sendo verdade). Depois, há a suposição de que esta realidade, em suas configurações mais profundas, é perturbadora e alienante à mente humana. Um simples olhar para esta cósmica verdade seria o suficiente para fazer desabar a insanidade sobre nossa frágil constituição cognitiva. Em terceiro lugar, esse trecho apresenta uma bela amostra do estilo de escrita do autor: evasiva, abjeta e implacável, bem nutrida de adjetivos e advérbios devedores de uma indigesta racionalidade do começo do século 20.
Mesmo que pendam para o que um crítico literário mais acadêmico apontaria como grosseiro e até de mau gosto, não se pode negar que as letras de Lovecraft legam ao leitor um mal-estar e um incômodo dos quais não se sabe exatamente a origem. Sem nunca entregar o ouro, numa relação esquiva com as imagens literárias, a estilística de seu texto compartilha a cosmovisão de sua ficção: dá voltas, enrodilha, mostra-se incapaz de olhar de frente para o seu objeto (literário, representacional e até psicanalítico). Existe ali uma brilhante abordagem do não dito, do não declarável, do incomensurável – a ausência e o incognoscível como matéria-prima da razão – algo que anuncia certa filosofia pós-moderna, ainda mais agora que Lovecraft tem sido cada vez mais analisado nas ciências.
Capa da Weird Tales de 1928 que publicou, pela primeira vez, O Chamado de Cthulhu
Sou apenas um autor bissexto desse autor. Já li vários contos e também seu romance mais famoso, O Caso de Charles Dexter Ward, mas apenas recentemente, quando adquiri para o Kindle um volume com suas obras completas, é que me dei conta do caráter obsessivo de sua produção, que inclui também uma absurda quantidade de cartas – o que permitiu que sua biografia e também sua inegavelmente abjeta visão de mundo fossem bem documentadas. Lovecraft viveu como uma pessoa inflamada e rejeitada, nutrindo uma desconfiança paranoica de tudo o que fosse alteridade e diferença, o que pode ser comprovado em seus próprios textos, famosos pelo teor racista e xenofóbico. Não é incomum que especialistas afirmem que o horror metafísico ao desconhecido que dá brilho à sua literatura fosse um desdobramento do ódio (e medo) que sentia pelo diferente.
A ideia para este texto veio não só de uma leitura recente de O Chamado de Cthulhu, mas também porque lembrei que havia adquirido o título O Despertar de Cthulhu em Quadrinhos, da Editora Draco, de 2016. Trata-se de uma bela e elogiada edição em preto, branco e verde em que autores nacionais dão uma interpretação bem individual e brasileira ao imaginário lovecraftiano. Um pouco esnobada pelo grosso da recepção crítica de quadrinhos, a Draco vem dando conta de trazer continuidade à tradição de horror em HQ brasileira. É verdade que muitos lançamentos são irregulares, mas há outros (como o recente Demônios da Goetia), com narrativas sinistras e ultrajantes (de cagar nas calças mesmo) que dão moral para este trabalho.
O Despertar de Chulhu em Quadrinhos pertence à última categoria, e é um bom material para eu praticar um exercício pensado ao ler Lovecraft: que diferença faz quando suas ideias literárias são vertidas em imagens? Está claro, para mim, que muito de suas virtudes enquanto escritor estão amarradas à obsessão em querer circundar o indescritível: seres que não conseguimos conceber ou suportar a mera existência; formas e matéria plasmáticas que não se adéquam à automatização do olhar; e até “cidades-cadáver” labirínticas que não obedecem ao espaço euclideano.
Com o passar do tempo, estas abominações racionais foram se organizando na cultura: Cthulhu é um ser identificável. Suas criações estão em South Park, em bicho de pelúcia, em paródias diversas. Isso é ruim? Não sei, mas representa uma clara mudança de foco em relação àquilo que o autor previa para sua ideia de horror. Afinal, quando esse horror é visualizado em imagens gore e escrotérrimas, isso cria um imaginário para aquilo que, em princípio, considerava como origem do horror justamente a ausência de um imaginário para ele.
The Coon + Cthulhu
Voltarei ao quadrinho da Draco, mas gostaria de pontuar outros dois importantes elementos da literatura de Lovecraft que ajudam a pensar sua mudança de status quando vertidos para outras mídias.
1 – Tempo, espaço e matéria:
Lovecraft escreveu na aurora da Teoria da Relatividade e da Física Quântica, e muito da radical inovação que ele introduz na literatura de horror vem de sua sensibilidade para perceber mudanças de paradigma na ciência. A cisão provocada pelo fim da física clássica abriu portas para todo tipo de especulação não apenas sobre o futuro e o desenvolvimento da tecnologia, mas também a um alvorecer para certo fim da ontologia (Heidegger) ou mesmo da metafísica (Wittgenstein). Quando se revoluciona o conhecimento sobre a natureza da realidade, instantaneamente se revoluciona a filosofia. A ficção científica no século 20 em muito desabrocha do que se vislumbra a partir dessa nova ciência. Dimensões múltiplas, viagens no tempo, viagens espaciais, tudo isso se torna mais palpável com as inflexões da ciência moderna. Filosoficamente, fomos capazes de descentralizar a ideia de sujeito, de perder a localização do “eu” numa imprecisão quântica, e de nos aproximarmos de um holismo oriental no que diz respeito à constituição da matéria, da energia, do tempo, do espaço.
Lovecraft, conscientemente ou não, teve capacidade para sumarizar e alegorizar essa nova mentalidade científica, chamando o vácuo existencial no qual havíamos imergido de “horror cósmico”. Suas ideias sobre a sociedade, por outro lado, corroboravam o cientificismo tosco – evolucionista e eugenista – que levou às consequências que conhecemos. Se é difícil encontrar a origem do tipo de horror único que ele criou (não descartando seu sociologismo torpe), é possível analisar o material literário a partir desses elementos mesmos: tempo, espaço e matéria. Basta dar uma olhada nessa descrição que ele faz da cidade de R’lyeh, ainda em O Chamado de Cthulhu
Uma visão genérica de R'lyeh
Estes Grandes Antigos, continuou Castro, não eram compostos totalmente de carne e sangue. Eles tinham forma - afinal, não era o que esta imagem em formato de estrela provava? - mas essa forma não era feita de matéria. Quando as estrelas estavam corretas, Eles podiam mergulhar de mundo em mundo, atravessando os céus; mas quando as estrelas estavam erradas, Eles não podiam viver. Porém, embora Eles não vivessem mais, Eles jamais iriam realmente morrer. Todos Eles jazem em casas de pedra em Sua grande cidade de R´lyeh, preservada pelos feitiços do poderoso Cthulhu para uma gloriosa ressurreição, quando as estrelas e a Terra puderem mais uma vez estar prontas para Eles. R’lyeh, portanto, é uma cidade de pedra, lembrando uma arquitetura maia antiga, de dimensões colossais, encravada de hieróglifos. Porém, estas dimensões, ainda que perceptivelmente gigantescas, não podem ser medidas. Seus caminhos não podem ser trilhados em linha reta. Sua labiríntica estrutura não pode ser quantificada. Com certeza fica a impressão de que está localizada em outra dimensão do multiverso, mas não do jeito inocente a que nos habituamos a imaginar mundos paralelos (tipo na Star Trek clássica). Essa cidade realmente dá a impressão de se originar a partir de outras coordenadas quânticas, outras constantes universais, como se, por exemplo, para seus habitantes ancestrais, caminhar pelo tempo fosse como as referências que usamos para ir e voltar nas três dimensões a que estamos habituados.
Dimensões paralelas em Star Trek
Quando o velho Castro (um sinistro selvagem “contaminado” irreversivelmente pelo “chamado”) descreve a trajetória destes seres antigos, o faz de maneira que pareça que eles se deslocam no tempo e no espaço como se estes fosse mídias para seu próprio transporte, numa velocidade não-física, controlada pela mente. No momento em que o marinheiro Johansen descreve seu encontro com Cthulhu, fala de sua forma material como espécie vaporosa, plasmática, que mal pode ser percebida com nosso arsenal fenomenológico, e muito menos transformada em palavras. Mesmo que Lovecraft possivelmente nada soubesse das inovações científicas dos anos 20, ele teve impressionante habilidade em prospectar o cronotopo (como diria Bakhtin, referindo-se à maneira transversal - com pontes entre diferentes aspectos da história e cultura - que o tempo pode adquirir) de sua época. Diria que a suas noções de espaço, tempo e matéria estavam muito à frente do que a cultura da época podia processar, e só foi incorporada mais recentemente a eventos pop, tipo os filmes Interestelar e Homem-Aranha no Aranhaverso.
2 - A escrita esquiva, a estrutura epistolar
Como se não bastasse a desmaterialização das formas em seus escritos, além de uma obliteração de tempo e espaço, Lovecraft também adotava técnicas literárias bastante distintas. A mais notória delas se divide em duas circunstâncias: primeiro, um jeito esquivo de informar, como se o processo de circundar o tema - mas nunca abordando-o diretamente - revelasse uma metodologia cuja premissa é justamente nos fazer entender que circundar é mais importante do que centralizar. Forçando um pouco a barra, isso não está tão distante da metodologia de Jacques Derrida para fundamentar a ideia de rastro, que em princípio parece inapreensível, mas que ganha sentido a partir de algo esquivo como a própria literatura lovecraftiana. Vejamos: a apreensão dos seres e da realidade metafísica de seu universo é vaga, nebulosa, imprecisa, e parece se desfazer após as experiências de descrição destas realidades. Lovecraft trata seu mundo como indecidível. Ou seja, espécie de indeterminação (quântica?) afeita ao procedimento de Derrida. No caso deste, o rastro (por exemplo, o formato que ocorre quando passamos um galho na água, e que desaparece logo em seguida), como índice impreciso, é forma que fundamenta nossa abordagem de diversas realidades: histórica, política, filosófica. Um exemplo, de O Horror em Red Hook.
Para Malone, o sentido de mistério presente na existência era sempre presente. Na juventude ele sentira a beleza oculta e o êxtase das coisas e fora um poeta; mas a pobreza, o sofrimento e o exílio haviam voltado o seu olhar para direções mais sombrias, e ele se arrepiara com as amputações do mal no mundo à sua volta.
Lovecraft opta, portanto, diria que de maneira avant la lettre, por uma descrição da realidade que mistura ingredientes de ciência moderna com filosofia pós-moderna. Sua técnica literária, no entanto, pode ser pensada também a partir de uma tradição na história do romance: a abordagem epistolar. Quem gosta de literatura sabe que produzir a ficção por meio de cartas, ofícios, e-mails, etc., é uma constante que nunca se apaga. O método epistolar traz materialidade, documentalidade e forte projeção subjetiva aos personagens de um romance.
Os Sofrimentos do Jovem Werther (Goethe), As Viagens de Gulliver (Swift) e Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres (Clarice) são exemplos de livros que têm componentes epistolares.
Leitores de Lovecraft sabem do que estou falando. Suas histórias são narradas quase sempre de maneira indireta: alguém acha um ofício ou um documento relatando a perturbação mental de um personagem, o que leva a uma investigação sobre cartas, que levam a notas de jornal, relatórios, etc. Essa preocupação com a materialidade do registro, além de nos distanciar de uma abordagem direta dos temas, reforçando o estilo esquivo, faz valer a maneira indireta com que esse autor vai se aproximando dos atos da história. Frequentemente, estes achados são não-lineares, contando com a ativa participação do leitor para compor estes quebra-cabeças, dos quais sempre vão faltar inúmeras peças. Derridianamente falando, o sentido está nas peças que faltam, mas elas são rastro, e portanto o sentido nunca pode ser alcançado ou mesmo sequer existe.
Basta observar este exemplo, tirado de O Caso de Charles Dexter Ward: Desde aquele momento até o encerramento do curso, Ward passou todo o tempo debruçado sobre a cópia fotostática do código de Hutchinson e acumulando dados sobre Curwen no local. O código ainda se mostrava renitente, mas ele obteve tantos dados e tantos indícios em outras partes, que se predispôs a empreender uma viagem a Nova Londres e Nova York, a fim de consultar antigas cartas cuja presença estava indicada naqueles lugares.
O labirinto epistolar de Lovecraft (não se enganem), não é uma thread (pra usar um termo da moda) de videogame que você segue até zerar o jogo. Até porque esse jogo não pode ser zerado. O sentido (se é que há algum) está ali, pulverizado em alguns lugares instalados entre estas cartas, fotos e ofícios. Sua técnica literária, portanto, se fazia valer completamente para o engajamento na própria natureza esquiva da realidade que ele criava, que em última instância era a maneira como pensava sobre a nossa realidade mesmo. Carinha estranho.
O Despertar de Cthulhu em Quadrinhos
Depois de uma introdução tão longa, sobrou até pouco para falar sobre o quadrinho da Draco. A ideia é pensar da seguinte forma: como uma literatura avessa a um imaginário, ou seja, esquiva e que foge constantemente à precisão da representação que está criando, pode ser justamente representada numa arte imagética como os quadrinhos?
Providence, escrito por Alan Moore
Lovecraft foi adaptado em HQ diversas vezes, inclusive por mestres do horror como Richard Corben, Bernie Wrightson e Alan Moore. Porém, eu gostaria de salientar que as histórias do quadrinho da Draco são produções totalmente originais, com narrativas inéditas, apenas inspiradas no universo do autor de Providence, Rhode Island. Estes quadrinistas, portanto, tiveram um duplo trabalho: lidar com a pasmaceira metafísica e inidentificável de Lovecraft e também traduzi-la num texto com imagens - e ainda trazer tudo isso pra um contexto brasileiro verossímil.
A capa do quadrinho, editado por Raphael Fernandes, é uma ilustração dupla de João Pirolla. Um Cthulhu hiper detalhado e até barroco emerge de águas turvas, idolatrado por diminutos corpos de homens e mulheres nus, em estado macabro de êxtase. Sim, é um plano frontal, um tanto perturbador, que invoca o imaginário mais tradicional sobre o monstro. Porém, é claro que vivemos uma época em que a cultura lovecraftiana passou por vários estágios de transformação, e seria idiota não colocar um Cthulhu “clássico” na capa. O gibi precisa vender.
Essa capa dá o tom para o resto do quadrinho. Em geral, as abominações lovecraftianas são sim bem representadas. O que também está de acordo com a literatura do homem, porque, apesar do aspecto plasmático e “indecidível” destes seres, Lovecraft foi, ano após ano, detalhando sua fauna de seres, criando hierarquias e funções entre eles, além de fornecer várias tentativas de descrições. Muitos dos artistas envolvidos parecem conhecer essa mitologia a fundo, e incluíram não apenas ilustrações literais das abominações, mas também frases dos ritos a Cthulhu, criaturas específicas diferentes (Azathoth, Shub-Niggurath, Yog-Sothoth, etc.) e easter eggs diversos.
Possessão
Abominação
A questão é: no campo do imaginário, o gore está muito presente, e é bastante visceral. O horror acontece no abjeto. Porém, Lovecraft não é transformado simplesmente num gerador de criaturas esquisitas. Acho que a maioria dos contos procurou retratar bem o terror da “possessão” (o “abraço ao chamado”), o sentido da conversão ao culto, certa aleatoriedade surrealista e, é claro, a maldade crua que envolve toda essa mitologia. Em quase sua totalidade, estas histórias trabalham um drive narrativo que não apela somente ao grotesco dos desenhos, mas sim a uma estranheza que procura provocar o frio na espinha quase instantâneo que nos acomete quando entramos em contato com um ethos tão demoníaco. Gostaria de me deter, especialmente, em três histórias:
“O Salmo do Sangue Antigo” parte de uma premissa mais ou menos investigativa, à maneira do contexto epistolar explicado acima. Curiosamente, poucas destas histórias procuram o método literário investigativo lovecraftiano, conforme explicado acima. Quase todas se restringem a adaptar seu imaginário. Nesta, escrita e desenhada por Dudu Torres, num ambiente agroboy típico do interior do Brasil (até bem retratado), um cara tem um sonho perturbador com um amigo que se suicidou, o que o leva a uma busca por respostas abordando a mãe do falecido. É uma história bem dosada que sintetiza o sentido de todas as outras do livro: uma pessoa, levada por uma intuição sinistra, sai de seu “mundo comum” e atravessa um caminho sem volta rumo a paisagens de danação e desespero, talvez mais à maneira de Bosch do que de Lovecraft, chegando ao colapso e finalmente à integração. É uma porta de entrada. Abandonai toda esperança.
O Salmo do Sangue Antigo
A segunda, “Os Tambores de Azathoth”, apesar de não enquadrar Lovecraft num contexto brasileiro, é a mais inteligente do livro. Com roteiro do jornalista (e ex colaborador da MAD) Antonio Tadeu e desenhos do ilustrador de fantasia LuCAS Chewie, ela narra o inusitado encontro entre o velho mago Aleister Crowley e um inseguro físico Robert Oppenheimer, famoso por ter capitaneado o Projeto Manhattan, que levou ao desenvolvimento da bomba atômica. A especulação analítica de Lovecraft também aparece aqui, na medida em que sonhos e inquietudes de Oppenheimer servem de guia para os dois chegarem a uma comparação morfológica de desenhos do antigo ser Azathoth com a disposição macabra não apenas da nuvem atômica, como com a fusão dos corpos carbonizados pelo infernal calor. É uma grande sacada porque trilha a via indireta que o autor usava para erigir seu imaginário esquivo. E cria uma poderosa metáfora do mal real do holocausto atômico usando o mal fictício de Lovecraft.
Os Tambores de Azathoth
A terceira em destaque é justamente a última do livro, “O que Dorme”, escrita por Bárbara Garcia (olho nessa mina) e ilustrado com expressividade por Elias Aquino. Situada nos anos 80, em meio a uma pacata cidade montanhosa do interior, uma garota adepta do estilo pós-punk, depressiva e deslocada, acompanha uma onda de calor que vai consumindo os seus habitantes até os mais brutais estertores. Interessante como o interior do Brasil, que em outras narrativas aparece como estereótipo de ingenuidade, neste gibi é mostrado como escondendo um mal primordial, o que nos leva a um direto alinhamento com a influência do “campo agroboy e craqueiro” no resultado das eleições de 2018.
O que Dorme
Temos também abordagens interessantes nas outras histórias. No geral, a arte oscila - apesar de alguns resultados excelentes, como os desenhos “estilo BD” de Marcio de Castro em “Sob a Insana Luz” -, mas não compromete, e quase todos os roteiros têm um toque de macabro ou insólito que servem como recompensa do terror prometido. “A Língua da Fé”, roteirizada pelo editor Raphael Fernandes, mostra, de maneira crítica, que, como dizia Bob Dylan, “sometimes, satan comes as a man of peace”. Achei tosca, no entanto, a história “Clhithmaek’ tyivh”, que reproduz um velho e grosseiro estereótipo (amado inclusive por Lovecraft, vide sua visão completamente equivocada do vudu e outras religiões "pagãs") de sociedades indígenas como primitivas, ignorantes e portanto suscetíveis ao chamado do mal. Mau gosto, galera.
O Despertar de Cthulhu em Quadrinhos, além de trazer sangue novo à forte tradição brasileira nesse gênero, é uma boa amostra dos desdobramentos e metamorfoses que a cultura lovecraftiana sofreu desde que seu fundador morreu sem provar quase nada do gostinho da glória. Lovecraft, como sabemos, era uma figura atormentada em diversos aspectos. Porém, curiosamente, sua xenofobia e medo da alteridade o levaram à construção de um universo extremamente “impuro” no sentido de permitir liberdades para ser alterado e sofisticado por outros autores. É o que vemos aqui, e em tantos outros produtos (filmes como Evil Dead, board games como Eldritch Horror, RPGs como Call of Cthulhu) que aprimoram seu world building e diluem os rastros de seu tumultuado mito de origem.
PS: para quem quer se iniciar na literatura de Lovecraft, indico fortemente a respeitosíssima e linda edição Lovecraft - Medo Clássico Volume 1, que a editora Darkside lançou em 2017.
Compilação da Darkside