Plágio ou Homenagem? O vantajoso e tradicional “empréstimo” de personagens feito por Marvel e DC

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por Marcos Maciel de Almeida

Nada se cria e tudo se copia. Essa máxima é verdadeira também nos quadrinhos. Partindo-se da premissa de que tudo que é criado foi inspirado por uma referência anterior, pode-se afirmar que qualquer gibi que tenhamos nas mãos dificilmente será produto 100% original, já que é fruto das diversas influências absorvidas pelos autores. Agora, existem influências e influências. Algumas delas vão além da simples homenagem. Há histórias e personagens copiados – na cara dura – de outros que vieram antes. E nem mesmo as grandes editoras de quadrinhos norte-americanas, DC e Marvel, estão livres disso, muito pelo contrário.

Nas próximas linhas, veremos uma relação não exaustiva de personagens de ambas editoras que foram recriados na concorrência. O objetivo é analisar como tais personagens evoluíram e se, passados os anos, conseguiram se desvencilhar das versões originais, criando identidade própria. À primeira vista, pode-se dizer que a Marvel homenageou mais personagens DC que o contrário. Por serem mais icônicos, os personagens do grupo Time Warner sempre inspiraram –  e seguem inspirando – a criação de inúmeras versões em tudo quanto é editora, e a Marvel não escapou disso. Estou falando, claro, do Batman, mas principalmente, do Superman. Apesar disso, a DC também tem quota respeitável de personagens baseados naqueles oriundos da Casa das Ideias. Tornado Vermelho (criado em 1960), possivelmente inspirado no Visão (1940) e Monstro do Pântano (1972), bastante semelhante ao Homem-Coisa (1971), são apenas alguns exemplos, mas há outros casos.              

Cavaleiro da Lua e Sentinela – Primos pobres e primos ricos.

Todo mundo sabe que o Cavaleiro da Lua é o Batman da Marvel. Senão, vejamos. Milionário, playboy, combatente do crime, sem poderes, usuário de gadgets tecnológicos e por aí vai. Para não ficar muito na cara, Doug Moench e Don Perlin, seus criadores, lhe deram um uniforme branco (!) para despistar. Apesar disso, é evidente que o morcegão foi uma grande fonte inspiradora. Criado para ser um contraponto ao personagem título do gibi Werewolf by Night, o Cavaleiro da Lua ganhou vida própria e hoje pode ser considerado um personagem com voz independente na editora de Stan Lee. Embora sofra para emplacar um gibi mensal, o Cavaleiro tem público cativo e um lotezinho já quitado no Universo Marvel, afinal possui galeria de vilões interessante e elenco de apoio que, embora não seja nenhuma maravilha, não faz feio.

Cavaleiro da Lua: O primo do Batman que cresceu e apareceu.

Cavaleiro da Lua: O primo do Batman que cresceu e apareceu.

E fazer feio parece que foi a sina do personagem Sentinela, clara tentativa da Marvel de ter um Superman para chamar de seu. Lançado no esquema de retcon – inserção posterior de personagens e histórias por meio de alterações na cronologia – o Sentinela foi um dos grandes personagens tradicionais que nunca havíamos conhecido, porque havia sido apagado da memória dos habitantes da Terra 616, casa dos heróis Marvel. O grande problema do alter ego de Robert Reynolds (sim, mais um personagem com o nome formado por aliteração) é que se tratava de mais um sujeito ultrapoderoso e loiro no Universo Marvel. E para esse papel temos o Thor, que sempre deu bastante trabalho para seus escritores, que penavam para arranjar ameaças realmente efetivas para enfrentar o filho de Odin. Essa limitação narrativa fez com que Thor abandonasse os Vingadores pelo menos umas quinhentas vezes, para permitir que as histórias do grupo ainda tivessem alguma graça.

Passadas quase duas décadas desde sua criação em 2000, o Sentinela até agora não disse a que veio. Nunca se soube direito o que fazer com ele. Volta e meia saem minisséries que pretendem estabelecê-lo como um dos pilares da Marvel, sem sucesso. Para resumir: Sentinela é um dos maiores micos da história recente dos comics.

Sentinela: imagem bacana. Personagem fraco.

Sentinela: imagem bacana. Personagem fraco.

Esquadrão Supremo – A cópia mais bem sucedida

Não há culpados nem inocentes na Marvel e na DC quando o assunto é cópia. É difícil dizer quem começou com as “homenagens”. Se, por um lado, Namor foi criado em 1939 e já replicado em 1941, data de criação do Aquaman, o Arqueiro Verde (1941) teve seu duplo, Gavião Arqueiro, nascendo em 1964. Agora se for estritamente necessário definir um marco temporal, escolheria o ano de 1971, quando o descaramento nas “inspirações” atingiu nível inédito. Antes daquele ano, pode-se dizer que o termo cópia era exagerado, já que personagens como Namor/Aquaman e Arqueiro Verde/Gavião Arqueiro, embora parecidos, não são idênticos, mas apenas vagamente inspirados uns nos outros. Minha ideia, ao utilizar o termo “cópia”, é indicar personagens claramente baseados em outras versões. É evidente, nestes casos, a intenção dos autores em utilizar os personagens da outra editora com o menor número de mudanças possível. Inevitáveis, portanto, são apenas as alterações de nome e uniforme. A essência e características principais, entretanto, permanecem as mesmas.

Cena de Avengers # 85 (1971): Primeira aparição do Esquadrão Supremo

Cena de Avengers # 85 (1971): Primeira aparição do Esquadrão Supremo

Por este motivo, o ano de 1971 é paradigmático no nascimento das cópias. É quando nascem o Esquadrão Supremo e os Campeões de Angor. Interessante notar que a gênese de ambos supergrupos coincide em mês e ano (!). Avengers # 85 (fevereiro de 1971) mostra a primeira aparição do Esquadrão Supremo, com integrantes nitidamente baseados naqueles da Liga da Justiça. Já a contemporânea Justice League of America # 87 contém o surgimento dos Campeões de Angor, grupo formado por personagens inspirados em Thor, Feiticeira Escarlate, Mercúrio e Jaqueta Amarela, ou seja, os Vingadores.

A origem do Esquadrão Supremo é complicada. Eles não são os primeiros personagens da Marvel a copiar a grande superequipe da DC. Em Avengers # 69 (outubro de 1969) surgiu outro grupo, o Esquadrão Sinistro, com quatro personagens criados a partir de Superman, Batman, Lanterna Verde e Flash. A diferença na forma como ambos grupos foram representados é gritante. O Esquadrão Sinistro é explicitamente introduzido como equipe de supervilões, fato exemplificado pelo tipo de desenho e modo de falar escolhidos. Transparece, então, o aparente desejo do escritor Roy Thomas em mostrar personagens mais descartáveis, escolhidos apenas para tapar o buraco de uma história ou dar uma sacaneada nos heróis icônicos da DC. Entretanto, na primeira aparição do Esquadrão Supremo, o papo é bem diferente.

Cena de Justice League of America # 87 (1971): Primeira aparição dos Campeões de Angor

Cena de Justice League of America # 87 (1971): Primeira aparição dos Campeões de Angor

Roy Thomas deve ter percebido que tinha uma pepita nas mãos e resolveu fazer uma garimpagem mais profissional. Se a DC não tinha chiado com a aparição do Esquadrão Sinistro, porque não chupar a manga até o caroço e incluir novas cópias? Só que, desta vez, a abordagem deveria ser diferente, com personagens menos maniqueístas. Era preciso deixar ganchos para que a Liga da Justiça da Marvel pudesse ser aproveitada sempre que necessário, afinal quem não gostaria de ter para si personagens do quilate de Superman e companhia limitada disponíveis para uso? Assim, em Avengers # 85 surge o Esquadrão Supremo, que repetia a escalação dos personagens medalhões da DC, mas desta vez com uma abordagem de maior potencial. Na primeira aparição do supergrupo, tivemos o clássico conflito motivado por desentendimento entre grupos de heróis, para que os fãs babões pudessem saborear uma boa pancadaria. Entretanto, a confusão é rapidamente resolvida, talvez em razão da intenção de utilizar o Esquadrão no longo prazo. A análise da evolução do visual dos membros da equipe também é sintomática neste sentido. Gradualmente, os artistas passam a desenhá-los de modo mais heroico e menos sombrio.

Na segunda aparição do Esquadrão Supremo, em Avengers # 141-148 (1975-1976), o escritor Steve Englehart introduz novas camadas aos integrantes da equipe, que passam a questionar seu papel como heróis a serviço de uma megacorporação. Fica, então, o gancho para a história que seria habilmente costurada por Mark Gruenwald na minissérie em 12 partes chamada simplesmente de Esquadrão Supremo, de 1985. Na história, os heróis tentam construir uma utopia nos Estados Unidos, ainda que tenham de ignorar as liberdades e garantias individuais da população. Assim, o bando liderado por Hyperion – que originalmente vestia um fraldão por cima da calça (afinal, se o Superman usava cueca por cima do uniforme, qual o problema?) – decide arregaçar as mangas e resolver, na marra, os problemas da humanidade, como fome, guerra e criminalidade. Aos poucos, o voluntarismo adquire contornos autoritários quando os heróis passam a agir de forma messiânica e a excluir quaisquer vozes dissonantes que possam atrapalhar suas decisões. Não há espaço para o debate. Os mocinhos definiram como o mundo deve ser e eventuais opiniões contrárias não serão levadas em consideração, já que somente determinados seres – agraciados com poderes divinos – estariam capacitados para mostrar o caminho mais adequado para a humanidade.

Gruenwald mandou bem porque soube explorar o melhor da situação. O que poderia um escritor fazer se tivesse pegado emprestado os medalhões da concorrência? Aproveitar a experiência de forma completa, claro. Livre das amarras editoriais que impedem a utilização plena de personagens que devem respeitar determinadas condutas, Gruenwald conseguiu, dentro de suas limitações como escritor, imaginar como seria a vida em uma sociedade governada pelas boas intenções de super-heróis. Além disso, pensou nas consequências realistas – para amigos e familiares – de se viver ao lado de seres superpoderosos. Os parentes do Ogiva (personagem baseado no Nuclear), por exemplo, morrem de câncer provocado pela exposição constante à radiação emitida pelo herói. A Princesa do Poder (versão da Mulher Maravilha) descobre, amargamente, qual o preço de se casar com um homem pertencente a uma raça que, diferentemente dos seres feitos de barro, envelhece com o passar dos anos. Como diz Mark Waid, num dos prefácios da minissérie: “Em Esquadrão Supremo tudo poderia acontecer. Personagens familiares poderiam viver ou morrer como pessoas reais, com almas reais, e ninguém teria de se preocupar se isso afetaria o merchandising das toalhas de praia com a cara dos personagens.”

O Esquadrão Supremo inspirou a criação de pelo menos duas séries mensais e hoje seus integrantes trilham caminhos independentes daqueles de meras cópias de membros da Liga da Justiça. O grupo, atualmente, possui dinâmica própria e personagens inéditos, não mais sendo, portanto, simples agrupamento de clones de heróis da Liga. O próprio Nighthawk – batizado em português de Falcão Noturno –, personagem baseado no Batman e originalmente pertencente ao Esquadrão Sinistro, se tornou um herói importante no segundo escalão da Marvel, ao se regenerar e se juntar aos Defensores. Ao longo de seus quase 50 anos de existência, Kyle Richmond conseguiu criar o próprio nicho no Universo Marvel e está, definitivamente, longe da sombra do Homem-Morcego.

Esquadrão Supremo hoje. Grupo que amadureceu e exibe brilho próprio.

Esquadrão Supremo hoje. Grupo que amadureceu e exibe brilho próprio.

Campeões de Angor – Avante, Vingadores (da DC)

Após mais de 15 de ausência, desde sua primeira aparição em 1971, os Vingadores da DC, digo, os Campeões de Angor, voltam a aparecer, desta feita nas páginas de Justice League # 2 (junho de 1987). Últimos sobreviventes de uma Terra que pereceu ante o holocausto nuclear, Gaio (Jaqueta Amarela), Feiticeira Prateada (Feiticeira Escarlate) e Wandjina (Thor), tentam prevenir que o mundo da Liga da Justiça tenha o mesmo destino. Esta história serve de aperitivo para os eventos deflagrados em Justice League Europe # 15 (junho de 1990), em que os vilões oriundos do planeta dos Campeões de Angor chegam à Terra ameaçando geral. O grupo de malfeitores, chamados de Extremistas, são claramente réplicas de grandes vilões do Universo Marvel, como Magneto, Doutor Destino e Dormammu. No mundo dos Campeões de Angor, nem mesmo Walt Disney escapou da zoeira promovida pelos escritores Keith Giffen e Gerard Jones, que recriaram o empresário norte-americano como o desiludido Tio Mitch, criador de um parque diversões gerido por robôs que forçam a barra para garantir que todos os turistas fiquem irracionalmente felizes.

Justice League Europe # 15 (1990): Primeira aparição dos Extremistas

Justice League Europe # 15 (1990): Primeira aparição dos Extremistas

Embora Gaio e a Feiticeira Prateada tenham se juntado à Liga da Justiça Europa e os Extremistas sejam frequentemente utilizados no Universo DC, não se pode dizer que eles tenham tido o mesmo êxito que a maioria dos personagens recriados pela Marvel. A Casa das Ideias foi mais habilidosa em “criar” personagens menos descartáveis e com maior potencial de utilização. Infelizmente, os Campeões de Angor e os Extremistas parecem ainda umbilicalmente vinculados aos personagens matrizes e não mostraram, até o momento, indícios suficientes de que podem andar com as próprias pernas. Com o perdão do trocadilho, tais personagens ainda não vingaram.

Guarda Imperial de Shiar – Quando a cópia supera o original

Não é fato amplamente conhecido, mas a Guarda Imperial de Shiar foi inspirada na Legião dos Super-Heróis. O Gladiador é o Mon-El, Starbolt é o Solar, e por aí vai. Rápida análise da primeira aparição do supergrupo em X-Men # 107 (outubro de 1977) mostra que até Brainiac 5 ganhou sua versão marvética com o discreto Mentor. Forçoso reconhecer que a Guarda Imperial tornou-se parte indissolúvel do Universo Marvel e que sua esfera de influência há muito transbordou da seara dos mutantes, espraiando-se também para títulos de heróis mais convencionais como os Vingadores.

Para muitos leitores, incluindo este que vos fala, a grande história que envolveu a Guarda Imperial foi o desfecho da Saga da Fênix. Este grande clássico dos quadrinhos e ápice supremo da dobradinha Claremont/Byrne contou com a importante participação do grupo alienígena. E sim, meus caros, é duro admitir – especialmente para um hater da Legião dos Super-Heróis, como eu – que os Legionários deram um cacete nos X-men num dos momentos mais trágicos e gloriosos dos comics norteamericanos.

Claro que dizer que a GIS é superior à Legião é uma opinião estritamente pessoal, mas parece-me que o supergrupo da Marvel é mais arrojado e peculiar. O visual hiponga dos integrantes da GIS, cortesia de Dave Cockrum, é puro deleite e sofisticação. Saem os rostinhos de adolescentes playboyzinhos e entram as faces atormentadas de alienígenas cascudos. Sem falar que, talvez com a exceção do Gladiador, nunca houve efetiva esmiuçada das origens secretas dos membros da Guarda Imperial, o que poderia resultar na produção de histórias estupidamente interessantes.

Legião dos Super-Heróis (colunas ímpares) e GIS (colunas pares): semelhanças inegáveis

Legião dos Super-Heróis (colunas ímpares) e GIS (colunas pares): semelhanças inegáveis

Afinal de contas, copiar compensa?

Utilizar personagens de sucesso e bem estabelecidos da concorrência vale a pena. Em primeiro lugar, o empréstimo de personagens fomenta experimentos interessantes como interações de atores que nunca se encontrariam fora dos crossovers editoriais. Além disso, o fato de usar personagens prontos é conveniente, porque eventual falta de sucesso das histórias não trará maiores problemas, bastando relegar a cópia ao limbo. Se, ao contrário, houver repercussão positiva, tanto melhor, já que a editora que recriou o personagem conseguirá resultados minimamente satisfatórios com baixo investimento de tempo e dinheiro. Finalmente, a recriação de heróis pode ensejar a produção de momentos cômicos e ou peculiares, que podem até significar aperfeiçoamento em relação aos personagens originais. Se o Flash (Barry Allen) era policial antes de ganhar os poderes, sua versão no Esquadrão Supremo (Whizzer) era carteiro. Vai dizer que não faz mais sentido o último ter sido agraciado com o dom da velocidade?

Possíveis questionamentos judiciais relativos a direitos autorais tampouco preocupam. O plágio inter-editorial é recíproco e desestimula o ajuizamento de ações, já que a editora que processa num dia será processada no outro. Conforme visto, a prática do plágio é tão disseminada e descarada que Marvel e DC fazem vista grossa para novas ocorrências.

Copiar personagens é um jogo de ganha-ganha para todos os envolvidos. Ganha a editora que teve o personagem copiado, já que há reconhecimento tácito da importância e capacidade de influência daquele personagem. E ganha ainda mais a editora que plagiou, já que, com pequeno esforço, consegue reforçar seu panteão de heróis e vilões, no melhor estilo o que vier é lucro.

Cena de Avengers # 144 : Esquadrão Supremo vs Vingadores ou Liga vs Campeões de Angor?

Cena de Avengers # 144 : Esquadrão Supremo vs Vingadores ou Liga vs Campeões de Angor?