On a mountain range, I’m Dr. Strange: impressões sobre a arte de Steve Ditko

On a mountain range, I’m Dr. Strange: impressões sobre a arte de Steve Ditko

Em 1971, quando o revolucionário rockstar Marc Bolan lançou seu segundo disco sob a alcunha T.Rex – o imprescindível boogie pulsante de

Electric Warrior

–, um par de versos na primeira faixa “Mambo Sun” chamou a atenção dos fãs de quadrinhos: “Girl, you're good / And I've got wild knees - for you / On a mountain range / I'm Dr. Strange - for you”. A menção ao Doutor Estranho é completamente prosaica, é claro. Um subterfúgio para uma rima simpática. Mas não deixa de ser legal que um “cosmic dancer” como Bolan tenha se aproximado do “mestre das artes místicas” (ou, em outros casos, “mestre da magia negra”) para agitar um flerte descolado e chacoalhar nossos sentidos nesta histórica faixa de abertura.

E ele chegou a entrevistar Stan Lee em 1975!

Somente alguém muito alheio ao cânone visual e cultural do final dos 60’s e começo dos 70’s para não pensar que o glam rock – em todo o seu desbunde que une um psiquismo espacial/alienígena/psicodélico com diversos tipos de ambiguidade (no sexo, na filosofia, na moda) – tem realmente tudo a ver com o imaginário esotérico-kitsch (que parece baseado num clichê de teosofia) que Steve Ditko imprimiu nas histórias do Doutor Estranho.

Read More

FIQ parte 3 – Intérprete de uma história negra do Brasil: entrevista com Marcelo D'Salete

FIQ parte 3 – Intérprete de uma história negra do Brasil: entrevista com Marcelo D'Salete

Parte 3 de nossa série de

entrevistas com grandes personalidades presentes no FIQ 2018

. Desta vez, com ninguém menos que Marcelo D’Salete. Não conhece ainda? Hmmm... Ainda dá tempo de correr contra o prejuízo.

Nascido em São Paulo, Marcelo D’Salete é um dos nomes de maior destaque no cenário quadrinístico brasileiro atual. Com forte pegada autoral e intenso engajamento em temas de cunho racial, os quadrinhos de Marcelo têm se destacado por abordar temas complexos da historiografia nacional – como a escravidão – pela perspectiva dos povos oprimidos. Dentre seus trabalhos de maior reconhecimento, incluem-se

Cumbe

(Veneta, 2014) e

Angola Janga

(Veneta, 2017). Em 2018,

Cumbe

foi indicada ao Prêmio Eisner (premiação máxima dos quadrinhos norte-americanos) na categoria melhor publicação estrangeira nos EUA. Tomara que ganhe.

Read More

FIQ parte 2 – Entrevistas – Mulheres que arrebentam: Claudia Ahlering e Janaina de Luna

Mais alguns dos bate-papos que tivemos no FIQ 2018, desta vez só com mulheres que fazem a diferença no mundo dos quadrinhos. 

por Marcos Maciel de Almeida

Claudia Ahlering

Claudia Ahlering é desenhista de Ghetto Brother, escrita por seu compatriota alemão Julian Voloj. O quadrinho narra a trajetória de Benjy Melendez, líder de uma das maiores gangues do Bronx nos meados dos anos 70. A história de Benjy tem fortes conexões com aquela contada no melhor filme já feito pela humanidade, Warriors – Os Selvagens da Noite (1979), de Walter Hill. (MMA)

Raio Laser: Você mencionou em entrevistas anteriores que não teve muita participação na elaboração do roteiro de Ghetto Brother. Eu gostaria de saber um pouco de sua experiência como leitora dessa graphic novel. Em minha experiência particular, achei a história da revista surpreendente, ao misturar violência, religião e hip-hop. Gostaria de saber se você também se surpreendeu com o desenvolvimento da HQ. 

Claudia Ahlering: Não foi algo tão surpreendente o elemento religioso, porque minha visão sobre a história compreende uma multiplicidade de temas, ou seja, as gangues, o hip-hop e a identidade cultural judaica. Para o autor da revista, Julian Voloj, todos estes temas são muito importantes, especialmente porque ele é judeu. Inclusive, ele escreveu um novo quadrinho que também enfocará o aspecto religioso.

A questão religiosa é bastante preciosa para o povo alemão, e isso inclui temas como a ocupação do Bronx por imigrantes judeus.

Essa abordagem religiosa interessa muito mais para os alemães que a cultura das gangues. E esse também é meu caso. A questão da identidade cultural judaica é bastante cara para mim, em razão de sua proximidade com a minha cultura e isso não ocorre com a cultura de gangues, que já é algo mais distante. Apesar disso, achei toda a experiência bastante enriquecedora: contar uma história de gangues e poder puxar um fio inesperado ligado à questão religiosa. 

Raio Laser: Você foi criada na Alemanha. Qual a sua percepção sobre o fato de que jovens americanos tendam a ser mais violentos – e aí eu incluiria também a questão dos massacres em escolas –, que os jovens europeus, sobre os quais há menos relatos referentes a condutas agressivas? Baseada em sua criação como jovem europeia, como você vê essa questão?

Claudia Ahlering: Na Alemanha, as leis para aquisição de armas são muito mais rigorosas que nos Estados Unidos. Lá, as pessoas simplesmente não pensam em se armar. Elas ainda têm o trauma da Segunda Guerra. Há um sentimento do tipo: “Aquilo foi muito horrível. É melhor que não tenhamos armas”. A mentalidade geral é essa. As pessoas não acham que seja importante ter uma arma em casa para se proteger. Entretanto, isso está mudando um pouco, com a questão do terrorismo. Ainda assim, persiste a mentalidade de que vivemos num lugar no qual não precisamos andar armados. 

Raio Laser: Para mim, o grande poder de Ghetto Brother está relacionado à sua faceta multitemática. Na sua opinião, qual o aspecto mais impactante dessa HQ? 

Claudia Ahlering: O que mais me impressionou foi a questão da rivalidade entre as gangues de jovens. Nos lugares em que morei, tanto em Berlim, como em Hamburgo, que é minha cidade natal, essa questão da rivalidade juvenil é algo que ficou no passado, não é tão forte como foi em Nova York. Então, para mim, foi muito impactante, ao fazer essa história, tentar entender porque surgiam essas rivalidades. Eu tenho a impressão que o Julian escreveu de uma forma que fosse divertida e legal de ler, mas queria chamar a atenção para a questão dessa rivalidade e violência entre jovens. Ele queria fazer as pessoas pensarem, enquanto estivessem se divertindo. Era como se dissesse: “Olha, isso pode acontecer, mas não é legal”. 

Raio Laser: Sempre fui grande fã de filmes de gangues, como The Warriors (EUA, 1979) e The Wanderers (EUA, 1979). Acredito que, no Brasil e na América Latina, muitas pessoas também tenham fascínio por essa temática. De modo similar, na Itália há grande admiração pelo Velho Oeste. Nesse sentido, quais seriam as principais influências culturais midiáticas para a juventude alemã?

Claudia Ahlering: The Warriors foi influente na Alemanha. Em geral, os jovens alemães sofrem bastante influência da cultura norte-americana, já que no pós II Guerra Mundial nosso país recebeu muita ajuda financeira dos EUA. Ainda assim, persistem muitas subculturas que são tipicamente alemãs, tais como a ocupação cultural de moradias, os movimentos culturais de resistência e as lutas sociais dos anos 80. Para nós, o fenômeno da cultura de gangues é algo muito distante, percebido como de procedência norte-americana, não chegando a influenciar tanto nossa cultura. Os jovens alemães veem a questão do Bronx nos anos 70 com um misto de nostalgia e curiosidade, para saber mais sobre o passado, mas não é algo que chega a nos influenciar. 

Warriors, Os Selvagens da Noite (1979)

_________________________________________________________________________________

Janaina de Luna

Janaina de Luna é editora-chefe e proprietária da Mino Editora. Criada em 2014, a empresa ganhou destaque em razão da alta qualidade gráfica e artística de seus lançamentos. Indo na contramão do mercado na época de seu surgimento, a Mino apostou em publicações de autores nacionais em formato luxuoso, obtendo grande sucesso. Com um catálogo bastante variado, que passa por queridinhos dos comics mundiais como Jeff Lemire e autores de forte pegada autoral/independente como Seth, a editora conseguiu espaço cativo no coração dos fãs da nona arte no Brasil. (MMA)

Raio Laser: Acredita que as editoras de quadrinhos no Brasil compitam entre si por um público que é fixo ou cada uma teria o próprio espaço delimitado? O lançamento de uma editora influencia o da outra, tendo em consideração que os leitores têm orçamento limitado?

Janaina de Luna: Eu acho que sim. Não necessariamente existe uma competição direta, mas achar que não existe uma competição é meio ingenuidade, porque o dinheiro das pessoas é finito. Então as pessoas são obrigadas a fazer opções sim. Mas eu acho que, mais do que competir, as editoras no Brasil têm o papel de trazer mais gente para o quadrinho nacional. Então, na verdade, quando há mais editoras, eu acredito que isso ajude a Mino a vender mais, que é o oposto do que ocorreria num cenário com menos editoras. 

Raio Laser:  Como fazer para ampliar esse público restrito, que às vezes deixa de comprar Mino para comprar um título de outra editora? Como tentar angariar novos fãs para as HQs?

Janaina de Luna: Eu não fico pensando muito assim. Todos falam em estratégias para fazer com que as pessoas leiam mais quadrinhos e etc... Eu sempre fico pensando que o que eu realmente posso fazer – de verdade – é lançar alguns títulos. Nada é mais efetivo que... Claro. Tudo seria mais efetivo se houvesse uma política educacional melhor, uma renda melhor... Mas isso não está na minha mão. Mas das coisas que eu posso fazer, eu sempre penso que fazer quadrinhos melhores, fazer meu trabalho melhor é a única forma efetiva de conseguir trazer mais público para a editora. Não fico pensando muito no que eu vou fazer para que o leitor compre da minha editora. A gente pensa na Mino e a gente pensa em como fazer a Mino crescer cada vez mais. 

A Vida É Boa Se Você Não Fraquejar, de Seth

Raio Laser:  Pegando esse gancho: é muito comum ouvir dizer que quadrinho não dá dinheiro no Brasil. Quanto do retorno da Mino é financeiro e quanto é de satisfação pessoal?

Janaina de Luna: Quadrinho dá muito pouco dinheiro. Principalmente se você quiser fazer as coisas da maneira certa. Eu já tive outros empregos, em outros ramos, e, se eu contasse como é feito, as porcentagens com as quais nós trabalhamos, o jeito que o mercado se organiza, qualquer ex-parceiro ou colega meu antigo iria achar que eu estou maluca. Fazer livro é muito difícil, fazer quadrinho é mais difícil ainda.

No cenário político em que vivemos não parece que vá ficar mais fácil, pelo contrário. Toda a esperança que a gente teve nesse curto período de um governo mais voltado para o social – não vou nem dizer “de esquerda”, mas de “centro-esquerda”-, a gente está vendo se desmantelar de modo muito fácil e eu não consigo ver perspectivas de melhora. Mas isso não quer dizer que eu não vá continuar lutando.

Agora é muito pouco dinheiro que se ganha com quadrinhos. Mas isso não nos impede de remunerar de forma decente. Quando eu falo isso, eu quero dizer: dentro do apurado para os autores e todas as pessoas envolvidas. E eu acho que o autor de quadrinhos ganha muito muito pouco, porque as tiragens são muito pequenas e eu acho que o trabalho é muito grande. É que às vezes eu vejo esse discurso de que não há dinheiro como uma desculpa para não se remunerar autor e colaborador e etc. Existe algum dinheiro no quadrinho, mas com certeza quem está nessa por dinheiro está no lugar errado. É engraçado. A gente passa a vida falando de quadrinho, a gente fica o fim de semana em eventos de quadrinhos, a gente dorme falando em quadrinhos, eu sou casada com um quadrinista e nas férias a gente vai para eventos de quadrinhos a passeio. É aquilo. Você faz isso, porque não consegue fazer outra coisa. 

Raio Laser:  Mas você teria algum deadline do tipo: “se daqui a 5 anos a coisa não virar, aí vou partir para outra coisa” ou a paixão fala mais alto e você continuará independente de qualquer outro fator?

Janaina de Luna: Eu não tenho esse deadline, porque acho que isso é uma ilusão. Não acho que daqui a 4 anos a coisa vai virar. Eu não acho que o problema é que a Mino não virou. Eu acho que – realmente – do jeito que o mercado está organizado, não é uma estrutura que nasceu para dar lucro do jeito que a gente imagina, do jeito que a gente quer trabalhar. Não é um lucro condizente com o nível de trabalho e de especialização que a gente tem. Mas a gente faz a Mino por amor. A Mino é autossustentável. Ninguém mais precisa colocar dinheiro na Mino. Todos os autores da Mino são pagos e todas as contas são pagas, às vezes há alguns atrasos claro, mas enfim... No final está tudo certo. E a gente também tem outras fontes de renda que mantêm nosso padrão de vida. Mas não é um projeto ganhar dinheiro daqui a 3 anos. Não é nosso objetivo. A gente quer crescer e ganhar dinheiro à medida que a operação fique maior, mas não é uma coisa que a gente pense que “ainda não está dando dinheiro”. O mercado é assim. O mercado livreiro é difícil. Mas eu – que sou a dona da Mino – trabalho em outras frentes também, tenho outros projetos.

Então não é que eu espere que a Mino daqui a 3 anos esteja dando dinheiro. Eu não tenho esse tipo de esperança e nem de ilusão. E não é um objetivo também.

Gideon Falls, de Jeff Lemire e Andrea Sorrentino. Lançamento da Mino previsto para outubro/2018

Raio Laser:  Como você enxerga a Mino no futuro? Daqui a uns 10 anos por exemplo? Com mais publicações ou talvez publicando um autor com o qual você sempre sonhou, mas que não conseguiu em razão do custo do copyright? Como você enxerga o futuro ideal para a editora?

Janaina de Luna: Eu não consigo fazer um plano de 10 anos. Eu não consigo enxergar, porque eu já tive vários outros negócios e já trabalhei com várias outras coisas e acredito que tudo tenha começo, meio e fim. Não sei muito como a Mino vai ser. Eu queria que as coisas fossem mais fáceis no sentido de que houvesse mais incentivo e um modo de produção mais favorável. Isso é o que eu gostaria. Mas isso não depende muito do meu trabalho. A Mino está onde eu gostaria que ela estivesse agora. Não tem nenhum autor que eu gostaria muito de lançar, que eu não tenha lançado ainda. Quer dizer, com exceção do Gipi (Gian Alfonso Pacinotti, autor de A Terra dos Filhos (Veneta, 2018)) que, quando eu ia negociar, descobri no mesmo dia que já havia fechado com a Editora Veneta. Mas isso é uma felicidade, porque a Veneta está lançando e tudo bem. 

Eu tenho uma sorte incrível de estar com todo mundo com quem eu queria trabalhar eu estou – de alguma forma – trabalhando. E é uma felicidade quando vai surgindo gente nova.

Então daqui a 10 anos eu queria que a Mino não tivesse ficado para trás. É minha única preocupação. Quando eu falo “para trás” não é em termos de poder ou dinheiro. Não. Eu queria que nós fôssemos atuais como a Mino é hoje.

Hoje é uma editora que está antenada com o que está acontecendo no universo dos quadrinhos. Quando eu falo isso, não é só publicar coisa nova e moderna. É também fazer resgate. A Mino olha para o que está acontecendo com o quadrinho. E o meu desejo – se a Mino ainda existir daqui a 10 anos –  é que a gente tenha essa mesma vontade e esse mesmo olhar para o quadrinho nacional e mundial que a gente tem agora. 

Raio Laser:  A Mino é reconhecida como uma editora de elevada qualidade gráfica (impressão, capa, papel e etc). Você está plenamente satisfeita com os livros da Mino enquanto produto físico ou ainda sente falta de algo que poderia fazer e não faz em razão de medidas como redução de custos?

Os Morcegos-Cérebros de Vênus e Outras Histórias (Mino, 2017)

Janaina de Luna: Bem, quem me conhece sabe – em quinze minutos – que eu nunca vou estar satisfeita com nada... rs. Porque eu sou totalmente workaholic, louca e desesperada.. rs. Eu tenho orgulho do que eu faço, do trabalho que eu fiz, mas eu não estou nem perto de estar satisfeita. Eu comecei sem saber fazer quase nada e agora eu sei quase nada menos um pouquinho... rs. Então eu acho que ainda tem muito chão pela frente. Eu acho que estou só começando, então eu acho que todo livro que sai eu queria ter mudado alguma coisa... rs. Estou longe de estar satisfeita, mas estou orgulhosa. Você consegue entender que são duas coisas diferentes? Eu tenho orgulho. Acho que o trabalho é bom, mas estou longe de estar satisfeita. O dia em que estiver satisfeita, eu morro... rs. Aí eu desisto. Aí eu fecho a Mino e vou aprender a fazer outras coisas. 

Raio Laser: Qual o(a) principal dificuldade/obstáculo/desafio no mercado editorial brasileiro atualmente para editoras do porte da Mino?

Janaina de Luna: Tem dois grandes desafios particularmente difíceis. O primeiro é encontrar autores no Brasil com obras consistentes em quadrinhos mais extensos. Às vezes eu sinto falta disso sim. Mas eu entendo completamente que nosso mercado autoral é algo muito viciante. Mas eu acho que estou me surpreendendo bem nesses últimos tempos, quer dizer, nos últimos meses mesmo, sabe? Eu acho que tem um pessoal que está aí fazendo um material há poucos anos mais direcionado para o quadrinho curto. E editorialmente para a gente é muito difícil colocar coisas muito curtas. E por isso fica todo mundo brigando pelos mesmos autores.

Não porque não haja gente fazendo coisas incríveis, mas é difícil encontrar um Thiago Souto que faça um quadrinho de 200 páginas, sabe? É que demora um tempo para você construir um autor.

Não é do dia para a noite. Não é só o cara falar: “Eu vou começar a fazer quadrinhos hoje!”. O Thiago que neguinho aponta que é um cara novo, tá fazendo quadrinhos há sete anos. Então, demora. Mas eu sinto que nós estamos melhorando muito nesse aspecto. Tem um pessoal com um trabalho muito bom, mas eu quero que eles estejam prontos para fazer obras mais extensas.

O outro desafio que eu acho é a falta de crédito. A gente trabalha – e isso ninguém fala – num sistema muito maluco que é o seguinte: eu vou comprar os direitos e eles são pagos em dólar, o que é já um problema. E aí demora três meses para a gente fazer o livro e eu já tenho de pagar a gráfica. E aí o livro demora mais um mês para chegar na loja. E a loja depois que vende leva uns três meses para me pagar. Então entre o tempo que eu comecei a gastar para o tempo em que eu comecei a receber, lá se vão uns 7/8 meses. E você precisa ter dinheiro para financiar essa operação de 8 meses. E a gente não tem linha de crédito para publicação no governo. E aí e difícil, porque nossa margem de lucro é muito pequena. 

E eu falo isso, porque as pessoas às vezes se esquecem que esse esquema de editora é um negócio e que nós temos que nos sustentar. As pessoas pensam na paixão, no livro... Mas eu tenho que ter dinheiro para me sustentar. E a gente não tem uma linha de crédito que permita isso de uma forma mais saudável. A gente acaba tendo que pagar juros que às vezes estão embutidos nos prazos de gráfica e etc, que acabam corroendo a pequena margem de lucro que temos. Então, depois que as lojas me compram – e hoje é praticamente só a Amazon – demora 90 dias para pagar um livro que eu já paguei os direitos uns 4/5 meses antes. Já paguei o tradutor, já paguei tudo. Essa falta de fôlego financeiro não existe. No próprio BNDES, que poderia ajudar com isso, as linhas de crédito estão praticamente canceladas. E aí é difícil, porque nós somos pequenos. Esse tipo de problema – que ninguém fala – é um dos principais tipos de problema no mercado editorial. 

O Formigueiro (Mino, 2017)

Raio Laser:  É muito comum que os donos de editora digam que não existam muitos critérios para a montagem do catálogo. Fala-se muito que “o quadrinho deve ser bom”. A Mino também segue essa linha ou prefere privilegiar uma estratégia específica como, por exemplo, de divulgar autores independentes? Qual o critério utilizado na hora de escolher o catálogo da editora?

Janaina de Luna: Cara, eu entendo quando a pessoa fala “quadrinho bom”. Às vezes pode ser chato e bobo falar “quadrinho bom”. Eu acho lógico, porque... eu ia falar uma besteira. Eu ia falar que todo mundo quer lançar quadrinho bom, mas as pessoas querem lançar quadrinho que vende. Não tem muito mistério. A gente sabe que tem um pessoal aí que lança umas coisas que a gente fala: “Jesus!”, mas que vendem. Há casos de editoras que são pagas para lançar determinado material. A Mino não é paga para vender e isso já é um diferencial. 

Eu lanço o que eu gosto. E mais do que isso: eu já não estou ficando rica e se eu não lançar o que eu gosto, aí lascou! Rs. A Mino tem interesse em trabalhar o autor, então eu gosto de quadrinhos de alguém que esteja pensando a linguagem. E quando eu falo a linguagem, não é necessariamente a linguagem formal, dos cânones. Eu me refiro a ter alguma coisa a mais, alguma coisa importante, alguma coisa que precisa ser discutida. Eu quero lançar coisas que representem o melhor de um nicho, de um momento. Coisas que sejam como a Coleção Incendiária (Coletâneas da Mino dedicadas a temas e épocas específicos dos quadrinhos. Até o momento já saíram dois álbuns:

Os Morcegos-Cérebros de Vênus e Outras Histórias; e O que havia na caixa da Sam Dora?, ambos lançados em 2017), que registram o melhor que estava sendo feito naquela hora. Eu acho que O Formigueiro de Michael Deforge (lançado pela Mino em 2017) é uma das melhores coisas que foram feitas no quadrinho underground americano. Eu acho que o Seth (autor de A Vida É Boa, Se Você Não Fraquejar (Mino, 2018) e Wimbledon Green (A Bolha, 2014)) é um dos expoentes das HQs. Então, a gente tenta fazer um panorama do melhor que existe em várias... Quando eu quero lançar algo do Diego Gerlach, eu faço isso porque acho que ele é o melhor talvez nesse tipo de quadrinho que ele faz. O que a gente quer é ter um catálogo que seja o melhor. Shiko (autor de Lavagem (Mino, 2015) e Azul Indiferente do Céu (Mino, 2014)), para mim, é um dos melhores autores no que é feito nacionalmente no quadrinho de gênero. Porque a gente tem um Marcelo D’Salete (autor de Cumbe (Veneta, 2014) e Angola Janga (Veneta, 2017) e muita gente boa. Mas quem está fazendo quadrinho de gênero? Porque o Shiko faz quadrinho de gênero. A gente fez Lavagem, que é um terror. Estamos lançando dele Três Buracos, que é um bangue bangue no sertão. Enfim, são quadrinhos de gênero. E quem está fazendo quadrinho de gênero que seja tão melhor que o Shiko? Não tem. 

Então temos essa preocupação de fazer um retrato do melhor de cada coisa. Isso, porque ainda existe muito preconceito no quadrinho, contra super-herói, por exemplo. Tem gente que acha que super-herói é ruim e bom mesmo é – sei lá – só o quadrinho alternativo. E isso não se restringe apenas ao quadrinhos. Tipo: quem lê Pedro Franz (autor de Suburbia (Hunter Books, 2012)) acha que Jeff Lemire é uma porcaria, porque saiu na Image ou porque fez o Arqueiro Verde. E é aquela coisa: quem leu Pedro Franz nunca nem leu o Arqueiro Verde, e vice-versa. 

Eu sou - de verdade - apaixonada por quadrinhos. Então, para mim, eu me empolgo lendo a Coleção Incendiária e Jack Kirby. E também me empolgo lendo Jason (autor de Sshhhh! (Mino, 2017)). Eu acho que precisa ter essa mistura. É lógico. Isso sou eu como editora. Cada um escolhe o que quer ler. Então, estou trabalhando num projeto agora que envolve autores nacionais, como o Mike Deodato, e está ficando divertidíssimo. E tem gente que tem preconceito, porque o cara faz super-heróis.  Eu acho isso uma bobeira. Quando a gente resolveu trazer o Gideon Falls, da Image, perguntaram: “Mas, pô, você vai lançar Image?”. Eu falei: “Cara, mas a Image...? A Image é foda!”

A Image mudou muita coisa no mercado, tá ligado? Do mesmo jeito que a Fantagraphics é foda. Eu quero lançar o melhor da Fantagraphics, o melhor da Image... Se eu pudesse, eu pegava o melhor da DC, o melhor da Marvel, mas infelizmente... rs. É aquela coisa: eu vou ter a chance de lançar o Mignola e não vou lançar o Mignola? Mignola é o melhor no que ele faz. E o Richard Corben (autor de Ragemoor (Mino, 2018) e Espírito dos Mortos (2017))? Já temos dois e ainda vamos lançar mais um. Cara, eu quero lançar quadrinho de gênero. Para mim, o Corben faz parte do que se faz de melhor no quadrinho de gênero no mundo. Então é isso. Queremos fazer um panorama do que é bom no quadrinho mundial. 

Raio Laser:  Última pergunta: Em que momento você sente mais prazer em ser editora da Mino? É na hora que você vê o livro pronto? Ou é na hora que você está escolhendo qual será o próximo lançamento? O que te dá mais satisfação?

Janaina de Luna: Cara, o livro pronto para mim não dá prazer. Quer dizer, não é que não dá prazer, mas é que eu nem dou muita importância. Para mim, o livro pronto dá um desespero, pela obrigação de verificar se não há nenhum erro ali. Depois que o livro já está pronto, o meu trabalho já acabou. O que me dá mais prazer é trabalhar com os autores. É sentar com o Shiko para ficar a noite inteira discutindo sobre um personagem que pegou um rumo diferente. Por exemplo, no Três Buracos, a história ia ter um casal (hetero) e o Shiko mudou para que o casal fosse homoafetivo, com duas meninas. E a gente fica o dia inteiro discutindo por que isso, por que aquilo. Isso me dá prazer. Pensar: “Pô, vou lançar o Jason. Qual vai ser o formato?”. Isso me dá prazer. A parte criativa me dá prazer. O resto é só parte do trabalho. Depois que o livro foi para a gráfica, já não tem mais nenhuma importância.

Raio Laser:  Isso me lembra determinados integrantes da Raio Laser, que depois de receberem as compras de gibis, nem chegam abri-los e já estão pensando na próxima aquisição...

Janaina de Luna: A gente é doido né?...rs. 

Lavagem (Mino, 2015)

RELATO DE VIAGEM FIQ 2018 + ENTREVISTA COM DAVE MCKEAN!

por Marcos Maciel de Almeida

O FIQ 2018 foi bão demais, sô! Pelo menos foi o que deu para sentir após conversar com os participantes do evento. Organizadores, convidados, e expositores – principalmente eles – estavam com um sorriso estampado no rosto. Eu também não vou discordar. Foram cinco dias intensos, mas que valeram a pena. O clima de congraçamento estava disseminado e não se restringiu às paredes da Serraria Souza Pinto. Foram mais que comuns as esticadas ao Maletta – edifício tradicional no Centro de Belo Horizonte que congrega inúmeros botecos, sebos e restaurantes. Sempre equipados com suas indefectíveis mochilas recheadas de gibis, os participantes do FIQ embarcaram em altos papos noite adentro, sustentados por quantidades indecentes de cerveja e torresmo.

E a Raio Laser não ficou fora dessa, claro. Escalados por nosso chefe Ciro Inácio Marcondes, eu e meu melhor inimigo Márcio Jr mergulhamos em mais uma louca aventura. Tínhamos como compromisso cobrir o evento, tarefa na qual teríamos nos saído melhor se não fosse o cansaço e a ressaca. Se bem que o Márcio tem uma justificativa melhor que a minha. Ele era expositor na mesa 164, local em que, dentre outras maravilhas, vendia o quadrinho que escreveu: Cidade de Sangue, desenhado pelo mestre Julio Shimamoto e colorido pelo talentoso Tiago Holsi. O gibi é coisa fina. Capa dura, formato grande e precinho camarada. Mas bem, isso é papo para outra resenha. (Falando nisso, cadê minha cópia, Márcião?)

Mesa 164: Raiúkas + Tiago Holsi

Não vou entrar em detalhes sobre a programação do FIQ, disponível no site , mas não posso deixar de mencionar que foi muito bem sacada. Meus momentos favoritos? Palestra do Dave McKean, em que o capista de Sandman contou um pouco sobre sua trajetória, mostrando – para desespero dos céticos – que é um artista de mão cheia e não apenas nas HQs. McKean narrou sua experiência em outras mídias, como o cinema e a música. Irriquieto, o artista britânico confidenciou que não consegue parar de transitar por outras áreas, sempre com uma entrega descomunal e imersiva. Foi emocionante estar perto dessa estrela generosa e humilde que brilha com luz tão intensa. Melhor parte? Quando ele perguntou: “quem aqui faz quadrinhos?”. Metade do auditório levantou a mão. “Legal, mas eu acho que todo mundo aqui deveria estar fazendo quadrinhos...”. Silêncio.

Dave McKean fazendo o sonho dos fãs voar mais alto.

Outra palestra bacana foi a “Editando quadrinhos no Brasil”, com os responsáveis pelas editoras Veneta, Balão, Mino e Lote 42. Foi um baita aprendizado ver como esse povo aposta com criatividade e ousadia numa forma de arte que – como a maioria delas – é tão desprestigiada no Brasil. Parabéns, rapaziada.

Fina flor da editoração quadrinística brasileira

Oportunidade bacana no festival foi poder assistir animações – escolhidas pela curadoria do FIQ – no MIS Cine Santa Tereza. Pensa num cineminha acolhedor e confortável, com programação cultural impecável. E o melhor: de graça! Só no FIQ? Não, meu caro, o ano inteiro! Parece milagre, mas é verdade. Eis o Brasil que dá orgulho. Uma salva de palmas para os envolvidos. Qual filme assisti? “Só” deu para pegar o Tekkon Kinkreet, baseado no mangá Preto e Branco, do Taiyo Matsumoto. O “só” foi entre aspas, porque quem já viu essa belezura sabe do que estou falando. Se não viu, veja. Se já viu, espalhe a palavra.

MIS Cine Santa Tereza

Mas qual foi o momento mais hiper-mega-blaster-topzera do evento? Todos. O FIQ desse ano foi o verdadeiro lugar de gente feliz. Acho que devia ser algo na água do local. (Aliás, podiam disponibilizar mais bebedouros, hein?). O clima de alegria e cumplicidade era contagiante. Sabe aquele esquema de reencontrar a galera do Segundo Grau? Esqueça! O FIQ não tem nada a ver com isso. Aqui o pessoal está olhando para frente. A vibe é mais no estilo “juntos novamente pela primeira vez” ou “nunca te vi, sempre te amei”. E não falo isso apenas pelo aspecto artístico em si ou pela camaradagem artista/artista e artista/público. Todos os quadrinistas expositores com quem conversei estavam bastante satisfeitos com o resultado das vendas. Acho que o fato de não termos tido FIQ no ano passado e o medo de que o evento não rolasse esse ano por causa da greve dos caminhoneiros contribuíram para esse espírito do “vamos celebrar, porque o FIQ tá rolando mesmo galera!”. E o grande charme do evento é que ele se apoia exclusivamente nos quadrinhos. Claro que tem outros produtos correlatos, mas o carro chefe são mesmo os quadrinhos. Grandes, pequenos, caros, baratos, PB ou coloridos. Eles comandam a festa, e por isso não há necessidade de trazer algum ator norte-americano bombado ou que esteja bombando.

Mas bem, para que nosso chefe na Raio Laser não pense que foi prejuízo investir em nossos suntuosos hotéis e em nossas caríssimas diárias para cobrir o evento, fizemos esse relato vagabundo e algumas entrevistas. Cinco no total. Vou manter suspense sobre os próximos entrevistados, mas decidimos começar com pé na porta e soco na cara. Ninguém menos que Dave McKean numa entrevista chuchu beleza exclusiva para a Raio Laser

Entrevista DAVE MCKEAN – por Marcos Maciel de Almeida e Márcio Jr.

Nascido em 1963 em Maidenhead, Inglaterra, o desenhista/pintor/ilustrador/músico/cineasta/escritor Dave McKean tornou-se mundialmente famoso ao ilustrar as capas da maxissérie Sandman, escrita por Neil Gaiman, durante o final da década de 80 e meados dos anos 90. O trabalho do autor é rico em colagens, efeitos com objetos e fotografias. Seu estilo arrojado e de grande densidade artística faz a cabeça dos fãs e também dos não leitores de quadrinhos. O trabalho de McKean e Gaiman se cruzou diversas vezes, em obras como Violent Cases (1987), Sinal e Ruído (1992) e Mr. Punch (1994), todas lançadas no Brasil. Entre 1990 e 1996, Dave escreveu e desenhou o calhamaço Cages, que venceu o prêmio Harvey de Melhor Lançamento e Melhor Graphic Novel. Em 2016, McKean publica Black Dog, recentemente lançado no Brasil pela Editora Darkside.

Black Dog

Neste último trabalho, na qual interpreta – com bastante liberdade – a trajetória do soldado/artista plástico britânico John Nash, McKean mostra-se um artista no auge: cada um dos capítulos do livro é contado com um estilo artístico diferenciado, que parece reverenciar as várias fases da carreira do quadrinista.

Black Dog evidencia a maturidade de sua arte, pronta para continuar nos deixando de queixo caído pelas próximas décadas. Confira, abaixo, trechos de uma rápida – e concorrida – entrevista que ele gentilmente concedeu à Raio Laser (MMA):

Raio Laser: Onde você acha que estaria hoje caso a revista do Sandman nunca tivesse existido?

Dave McKean: Em algum outro lugar...(risos). Sim, eu acredito que Sandman tenha sido um momento de sorte. Havia um espaço, nos anos 80, na DC e na Marvel, em que nós podíamos tentar coisas e em que Neil podia escrever as histórias que ele queria. E eu podia brincar com as capas e fazer o que quer que me desse na telha. E ninguém questionava isso.

Durou apenas alguns anos, mas tivemos muito material interessante feito naquela época.

Mas eu ainda estaria fazendo o que estou fazendo agora. Estou escrevendo e desenhando não porque eu desenhei as capas do Sandman. Eu ainda estaria fazendo exatamente as mesmas coisas ainda que o Sandman não tivesse existido.

Raio Laser: Você trabalha com diversas mídias e tem uma ligação muito estreita com quadrinhos e música. Como essa ligação ocorre em seu trabalho? Você é quadrinista, músico, dono de gravadora... Em que medida pensa em seus quadrinhos como musicais e em sua música como imagética?

Black Dog

Dave McKean: Música e arte eram minhas duas paixões quando criança. E essa foi minha escolha. Eu tinha, profissionalmente, que optar pelo caminho da arte ou da música. Eu sentia isso. Então fui para a escola de artes, porque isso parecia a coisa certa para fazer, mas eu sempre senti falta da música. Então, tem sido fantástico poder fazer essas duas coisas se encontrarem em projetos como Black Dog. Meu quadrinhos favoritos soam como música. Eles não são preenchidos com muito texto. Eles são, preferencialmente, sem texto. O importante é que a narrativa e as imagens fluam como música. Elas têm essa liberdade.

E a música que eu escrevo tende a possuir um elemento narrativo. Eu não sou muito bom em escrever melodias que não tenham uma razão. Ela tem que – de alguma forma – estar contando uma história. Então, música e narrativa são muito importantes para mim. Por algum motivo, a narrativa é algo muito fora de moda no mundo das artes hoje em dia. Enquanto que, para mim, ela é um elemento crucial para nossa cultura. É como transmitimos para as novas gerações a maneira pela qual nos percebemos como seres humanos.

Raio Laser: Seu trabalho sempre teve um aspecto de bricolagem, de colagem de vários elementos. Em determinado instante, a presença da manipulação digital surge em sua obra. Como vê isso hoje? Haveria uma sensação de que alguma coisa ficou datada ou o trabalho anterior funciona como uma espécie de marca daquele tempo? Como enxerga o trabalho anterior em retrospecto?

Dave McKean: Bem, eu comecei tentando fazer imagens que fossem translúcidas e com aspecto onírico, mas utilizando meios físicos, como fotografia, múltiplas chapas fotográficas, colagem física de objetos. Eu consigo obter cerca de 20% daquilo que estava imaginando na prancha (de desenho). Mas então eu comprei um computador e li o manual do Photoshop. E foi como se alguém o tivesse escrito para mim! Era exatamente o que eu queria fazer. E eles conseguiram alcançar esse resultado da mesma maneira que eu teria feito. Então eu senti que o Photoshop tinha sido feito para mim. Um mês depois de começar a usar ferramentas digitais, eu comecei a obter de 50 a 70% – do que eu estava imaginando – no produto final. Eu adorei o controle e a manipulação que ele me deu sobre as imagens. Além disso, tinha o fato de que você podia testar coisas muito rapidamente, salvar as versões preferidas... Era como se estivesse brincado. Eu achei a experiência muito divertida. Mas o que acontece é que comecei a ver muitas outras pessoas utilizando ferramentas digitais. E eu também fiz muitos trabalhos usando Photoshop por muitos anos. Bem, eu tive prazer em brincar com essas ferramentas, mas eu sinto muita falta da humanidade presente numa imagem desenhada ou pintada em meio físico. Eu ainda uso Photoshop o tempo todo, mas é apenas para controlar a imagem no final do trabalho. E a imagem e a pintura são feitas por meio físico. E se, eventualmente, uma página ou parte específica da história requer uma experiência digital estranha ou algo do tipo, então eu uso (o Photoshop), mas é apenas uma ferramenta com muitos truques. Não é a coisa mais importante. Não é ele quem dá as cartas.

Raio Laser: Seu trabalho envolve diferentes formas de arte. Nos quadrinhos, como você enxerga seu trabalho? Quais seriam seus pares? Se fôssemos fazer um recorte da cena quadrinística mundial, em que lugar poderíamos encaixá-lo? Em outras palavras, qual seria sua turma?

Dave McKean: É difícil dizer, porque eu não sinto que faça parte de um grupo específico, embora haja muitas pessoas pelo mundo pelas quais eu sinta grande empatia. Mas por uma razão ou outra, eu não sinto como se fizesse parte daquele grupo. Por exemplo, meus artistas favoritos nos quadrinhos são italianos como Lorenzo Mattotti. Ele fazia parte de um grupo chamado Valvoline. Todos tinham mais ou menos a mesma idade, cresceram juntos e encorajavam uns aos outros. Eu não tenho um grupo como esse, mas eu sinto um grande carinho e empatia pelo Lorenzo Mattotti, pelo José Muñoz, Cyril Pedrosa... bem, você sabe. Muita gente. Mas eles estão em todos os cantos. E eu não posso dizer que nós realmente façamos parte de uma turma, porque somos muito diferentes. Mas essas são as pessoas com as quais eu sinto uma forte conexão.

Raio Laser: Seu trabalho é poderoso e está fortemente disseminado em várias mídias, como quadrinhos, cinema e música. Como gostaria de ser lembrado?

Dave McKean: (Gargalhadas...) Meu Deus! Na verdade, ficaria feliz em ser esquecido... (risos). Na verdade eu gostaria que alguns dos livros que estou fazendo agora fossem lembrados, porque eu sinto que eles são realmente sobre alguma coisa. São sobre temas interessantes e eu espero que durem um pouco de tempo. Estou feliz que alguns dos trabalhos que fiz 20 ou 30 anos atrás tenham lugar na História das HQs. Eu acho isso muito bacana. Mas não é necessariamente – eu espero – o tipo de material que as pessoas estarão olhando daqui a 100 anos. Eu espero que eu ainda não tenha produzido meus melhores trabalhos. Espero que o melhor ainda esteja por vir.

Notas sobre os quadrinhos documentais

Bom saber que a velha Raio ainda atrai bons articulistas. Por exemplo, apresentamos agora este Lucas Reis, crítico de cinema e quadrinhos em plena ebulição, que nos trouxe este ótimo artigo de introdução aos quadrinhos documentais. (CIM)

Lucas Reis é graduando em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e, desde o início de sua trajetória acadêmica, pensa inter-relações entre cinema e quadrinhos, especialmente na área de educação. Atualmente produz críticas cinematográficas para as revistas Janela e Ganga Bruta.

Por Lucas Reis

Durante a década de 1960, houve a ascensão dos quadrinhos underground nos Estados Unidos. Em uma época de florescimento da contracultura, a política e a arte do país sofreram abalos, e produções que antes eram relegadas a um pequeno público passaram a ter mais visibilidade. O movimento hippie - que questionava ações militares dos Estados Unidos e defendia um modo de vida mais próximo da natureza e distante do padrão burguês - crescia, especialmente entre os jovens. Um festival como Woodstock conduzia uma multidão para shows de rock e um consumo desenfreado de drogas e filmes, como Bonnie e Clyde - Uma Rajada de Balas (Arthur Penn, 1967), que narra o romance de um casal de criminosos durante a Grande Depressão, e Sem Destino (Dennis Hopper, 1969), sobre dois traficantes que cortavam as estradas do país em suas motocicletas, faziam um enorme sucesso de público que se identificavam mais com aqueles personagens do que em filmes já datados, como A Noviça Rebelde (Robert Wise, 1965) ou Alfie (Lewis Gilbert, 1966), mas que ainda concorriam nas grandes premiações do cinema como o Oscar e o Globo de Ouro.

Sem Destino: dispensa apresentações

As mudanças agudas no consumo dos produtos culturais nos Estados Unidos também impactou as histórias em quadrinhos. Em uma década que os valores dominantes foram intensamente questionados, autores como Robert Crumb, Gilbert Shelton e Harvey Pekar foram importantes para disseminar narrativas distantes do mundo de fantasia dos super-heróis que tomavam conta dos quadrinhos mainstream. Muitos leitores se interessavam menos por quadrinhos fantasiosos de vigilantes mascarados e mais por histórias marcadas pela rebeldia e por subverter a lógica das narrativas tradicionais e dos aparelhos estatais, especialmente o american way of life, que passava a ser questionado por grupos que não se encantavam por um padrão de vida ditado pelo governo. Até então se vendia a ideia de que, com trabalho árduo e determinação, qualquer pessoa, independente do seu passado, teria condições de uma vida confortável no futuro. 

Shelton: no caminho entre a contracultura e a autobiografia em quadrinhos

Sacco: pioneiro no jornalismo em quadrinhos

Uma característica comum dos quadrinhos underground

era a autorreferencialidade, ou seja, os autores como próprios personagens de suas obras assumindo um tom autorreflexivo ou biográfico. Aqui no Brasil, por exemplo, Angeli assumiu essas influências e costumeiramente se colocava como personagem de suas próprias histórias. Inclusive, em um arco famoso, o autor “adentrou” sua narrativa para matar a personagem Rê Bordosa, que fazia muito sucesso na época. Nos Estados Unidos, Joe Sacco utilizou da influência dos autores underground para produzir seus trabalhos. O livro O Derrotista, publicado no Brasil, que compila alguns de seus trabalhos entre 1988 a 1992 para a revista Yahoo, carrega esses traços e a metanarrativa permeia todas as histórias. Ainda não são os trabalhos que deixaram o autor mais conhecido, ao fazer grandes panoramas sobre regiões em guerra e se utilizando da linguagem dos quadrinhos, como no clássico Notas Sobre Gaza. Em O Derrotista, estamos diante de um estudante de jornalismo e suas desventuras para comer um bom bife e que comenta cheio de deboche sua categoria de “maior autor de história em quadrinhos do mundo”, mesmo que ninguém saiba disso. Em 1993, contudo, Sacco lança o primeiro volume de um trabalho que muda o seu patamar como autor de histórias em quadrinhos: Palestina - uma nação ocupada, em que trabalhou de 1993 a 1995 e foi compilada em livro em 1996. Nessa história, o autor faz uma investigação profunda dos habitantes da Palestina através de entrevistas com diversas pessoas de diferentes classes sociais e posições de poder que estavam naquele território em conflito.

Há uma veia jornalística no trabalho de Joe Sacco que vai além da sua formação acadêmica. O autor se fixa nos territórios que são retratados em suas narrativas, faz diversas entrevistas que são documentadas e - várias vezes - inseridas nas histórias, faz observações detalhadas e busca sempre analisar dois lados das situações em que encontra. E não há imparcialidade nos quadrinhos de Joe Sacco, ele assume uma visão do contexto que está inserido. Mesmo que, para o autor, seja importante a documentação e a exposição dos fatos, não há nem mesmo o desejo de ser imparcial, pois a própria condição de se colocar nas histórias é assumir um ponto de vista pessoal para os acontecimentos. Há de se entender, entretanto, que o autor não faz parte do mundo que retrata. A sua condição de forasteiro, especialmente com um passaporte dos Estados Unidos - maior potência bélica do mundo - lhe permite transitar livremente entre as nações retratadas em suas histórias, sem maiores riscos.

Em entrevista para o jornal Estado de São Paulo, em 2010, Joe Sacco declarou que a sua formação em jornalismo foi importante para o seu trabalho nas histórias em quadrinhos e que pensa na sua obra como jornalismo em quadrinhos:

"Quando estava no colégio, eu associava palestinos com terrorismo porque toda a vez que ouvia falar neles tinha a ver com bombas ou ameaças. Então, fui estudar jornalismo e, quando comecei a entender o que acontecia no Oriente Médio, me dei conta: os americanos sempre se colocaram como os grandes expoentes do jornalismo, mas nunca me contaram direito o que está acontecendo. Eu me senti traído pela minha própria profissão. Então, nos anos 1980, quis tirar essa história a limpo… Não estava pensando em criar uma nova… forma de arte ou seja o que for. Não foi uma decisão consciente, foi meio orgânico. Pensei: vou viver essas experiências, falar com pessoas, anotar e colocar isso junto. É claro, eu tinha o background jornalístico e isso teve impacto no formato que a coisa tomou, mas só depois comecei a pensar mais claramente no que estava fazendo. Foi na história da Bósnia (Gorazde) que comecei a pensar conscientemente em jornalismo em quadrinhos". (SACCO, 2010)

Sacco: "os americanos sempre se colocaram como os grandes expoentes do jornalismo, mas nunca me contaram direito o que está acontecendo"

Além de Joe Sacco, há outros autores que chamaram a atenção por trabalhos dedicados a experiências pessoais traduzidas para a linguagem dos quadrinhos, entre o final do século 20 e início do século 21. A iraniana Marjane Satrapi ficou bastante famosa com Persepolis,publicada entre 2000 e 2003 na França e adaptada para o cinema em 2007 pela própria autora. Satrapi concebeu seu trabalho para narrar aos seus amigos franceses sua história pessoal. Diferente dos trabalhos de Joe Sacco, aqui não há uma investigação, entrevistas, busca por fontes ou algo parecido. Por sua vez, há uma mergulho pela memória da própria autora para expor desde seus primeiros anos de vida até a vida adulta e seus caminhos entre Oriente Médio e Europa. Familiares, amigos, ex-namorados e outras pessoas que atravessaram o caminho da autora tornam-se personagens. De certa forma, este quadrinho também reflete o contexto de um espaço geográfico em conflito. Satrapi vivenciou a revolução islâmica no Irã e esteve inserida em conflitos militares na região, mas a forma de lidar com o contexto de guerra difere do adotado por Sacco. 

Existem semelhanças e diferenças entre os trabalhos dos autores citados aqui. Entretanto, há uma proposta teórica que abarca todas essas histórias como jornalismo em quadrinhos. Contudo, por mais que essa definição possa se aplicar ao trabalho de Joe Sacco, distancia-se da proposta de Marjane Satrapi. Devido a isso, atualmente há uma discussão pautada na ideia de esses quadrinhos serem considerados documentais, por ser mais certeira ao englobar uma maior produção dessa forma narrativa. Em artigo publicado na revista Nona Arte, “O Quadrinho Documental e a Tradução da Cidade”, o pesquisador Felipe Muanis faz um panorama de quadrinhos com características documentais: "Todas essas histórias fogem da linguagem habitual do quadrinho fantástico e se aproximam de um caráter mais realista e documental. A maioria é em preto e branco, tem enquadramentos muitas vezes simples, pouco espetaculares e centram suas narrativas na relação de contato entre a cidade e o seu autor, que sempre aparece retratado tomando parte da ação e vivenciando o relato". (MUANIS, 2013)

Se tais características existem nos trabalhos de Sacco e Satrapi, também há inegáveis diferenças. Tomando emprestado as ideias de Walter Benjamin no ensaio "O Narrador - Considerações a obra de Nikolai Leskov", é possível pensar na distinção de Joe Sacco e Marjane Satrapi: "A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. “Quem viaja tem muito o que contar” diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário e o outro pelo marinheiro viajante". (BENJAMIN, 1994)  

Satrapi e sua visão pessoal da documentação em quadrinhos Sacco, como o marinheiro viajante, e Satrapi, como a camponesa sedentária, são analogias que se explicitam na obra dos autores e traduzem suas aproximações com os documentários, pois usam de suas próprias figuras como autores/personagens para construir a narrativa. Se nenhum deles alcança o real, uma vez que são obras ficcionais, eles traduzem suas experiências pessoais por meio de estratégias adquiridas do cinema, do jornalismo, da literatura e das próprias histórias em quadrinhos. Há, contudo, autores em que essas classificações ficam um pouco mais embaçadas. Maus, por exemplo, de Art Spielgeman, publicado entre 1980 e 1991, é a história do pai do autor: um judeu que foi preso em um campo de concentração nazista durante a segunda guerra mundial, narrada pelo próprio Art Spielgeman. Assim, como Satrapi, o autor faz um intenso mergulho em suas memórias. Ao mesmo tempo, está lidando com seu pai, um sujeito distante em última instância, no sentido em que o autor não narra sobre a própria vida. O respeitado prêmio Pulitzer, outorgado a trabalhos de excelência em jornalismo e literatura, concedeu a Maus um prêmio especial por não definir se era uma ficção ou jornalismo. Mesmo assim, é comum enquadrar Maus como jornalismo em quadrinhos. De qualquer forma, a escolha do Pulitzer por uma premiação especial, ao invés de uma definição sobre em qual gênero Maus se encaixaria, expõe a dificuldade de definição para as histórias em quadrinhos compostas pelos autores inseridos nas narrativas.

Maus: inclassificável

A divisão por gêneros fundamenta-se, sobretudo, para estabelecer uma relação de maior proximidade com o consumidor. Tanto um livro policial como um filme musical, por exemplo, se constituem por certas características estruturais que estabelecem um pacto com o apreciador da obra. Ao saber o gênero, o leitor/espectador pressupõe aspectos marcantes do que irá consumir. Nas histórias em quadrinhos é o mesmo, com a exceção de que a subvalorização das narrativas gráficas como produção relevante para se estabelecer nas livrarias faz com que pouco exista de reflexões acerca da constituição genérica das obras. Em outras palavras, há, apenas, uma prateleira para histórias em quadrinhos em cada livraria e autores e gêneros diferentes entre si dividem o espaço sem qualquer diferenciação. Dessa forma, é possível ver as edições de histórias de Robert Crumb, por exemplo, ao lado de Héctor Germán Oesterheld, autor argentino de ficção científica, pois tudo faria parte de um grande gênero: histórias em quadrinhos.

A intenção de questionar a ideia de jornalismo em quadrinhos e pensar em quadrinhos documentais como uma definição mais precisa da produção atual das narrativas gráficas, sendo o jornalismo em quadrinhos uma subdivisão do gênero, está contextualizada com o crescimento das HQs no mercado editorial brasileiro. Recentemente, foram publicados dois livros que remetem a essa questão, pois têm, como protagonistas, os próprios autores: Meu Amigo Dahmer e Não Era Você Que Eu Esperava. A primeira trata da adolescência de Jeff Dahmer, que viria a se tornar um dos maiores assassinos em série dos Estados Unidos, e sua amizade com Derf Backderf, o autor da história. Já na segunda acompanha-se o autor, Fabien Toulmé, e a necessidade de lidar com a sua filha recém-nascida que foi diagnosticada com síndrome de down. A semelhança entre as duas está na forma como os autores/personagens remexem em seu passado para compor a narrativa. Há diferenças entretanto: enquanto Toulmé fica absorto em suas memórias para resgatar todo o início de relação com sua filha recém-nascida, Backderf construiu um panorama da vida de Jeff Dahmer, a partir de diversas entrevistas, para compor o retrato mais fiel possível da adolescência do serial killer. Talvez por Dahmer ser um personagem conhecido do grande público, o autor tenha sentido a necessidade de entrevistar diversas pessoas para a constituição do personagem. De qualquer forma, Meu Amigo Dahmer não se funda no registro do “entrevistismo”. Pelo contrário, regressa ao passado de Backderf, que muitas vezes utiliza a primeira pessoa e conversa diretamente com o leitor. Já Toulmé não sofre com esse problema e não destaca qualquer auxílio para compor sua história.

Não era você que eu esperava funciona como se o autor resgatasse o seu diário e dividisse com o público. 

Autores como Spielgeman, Sacco e Satrapi não são mais sucessos esporádicos. Diversos quadrinistas novos que inscrevem suas narrativas na chave dos quadrinhos documentais têm suas obras lançadas no mercado editorial brasileiro. E, paralelo a isso, cada vez mais editoras e lojas especializadas em histórias em quadrinhos surgem no Brasil, graças à demanda de consumo do público leitor ávido por essas histórias. Sendo assim, é natural, importante inclusive, que novos questionamentos sobre as obras sejam produzidos. Mesmo que ainda seja difícil definir o que são quadrinhos documentais, pois ideias e conceitos sobre essa classificação de gênero ainda estão surgindo, a intenção aqui é dar visibilidade para um debate que deve se amplificar à medida que os quadrinhos se permearem como produtos de destaque nos espaços destinados à venda de livros no Brasil. E, gradativamente, gerar mais reflexões sobre as histórias em quadrinhos no Brasil e suas características estéticas, políticas, econômicas e sociais. 

Especial Editora Draco: quatro resenhas + entrevista

Diversidade de temas e de autores. Esta é a grande aposta da Draco para sacudir o já dinâmico mercado do quadrinho nacional. E é em publicações da editora em gêneros como terror, humor e ficção científica, dentre outros, que a nova geração de quadrinistas brasileiros tem recebido a chance de dar vazão às suas criações. Neste novo post da Raio, resenhamos quatro obras recém lançadas pela editora, todas pertencentes – por coincidência –ao gênero terror. É clichê dizer que publicações que contêm muitos autores – como foi o caso dos gibis analisados – costumam pecar pela irregularidade. Será que também foi o caso dessa vez? Antes disso, confira uma rápida entrevista que fizemos com o editor/escritor/proprietário/faz tudo da Draco, o irrequieto Raphael Fernandes. (MMA)

por Marcos Maciel de Almeida, Lima Neto e Ciro I. Marcondes

Entrevista com Raphael Fernandes (vulgo editor/escritor/proprietário/faz tudo da Draco):

Raio Laser: Defina - para os que ainda não estão familiarizados com o trabalho da Draco - quais seriam os principais objetivos da editora dentro do mercado editorial brasileiro de livros e quadrinhos.

A Editora Draco é especializada em quadrinhos e literatura de gênero, ou seja, nossas publicações são focadas em terror, fantasia, ficção científica, policial, humor, etc. Recentemente, passamos a publicar também obras de referência de não-ficção e quadrinhos jornalísticos. Nosso principal objetivo é trabalhar apenas com obras originais, portanto, não temos interesse em publicar projetos de outros países que não tenham surgido na nossa redação. Aqui você vai encontrar obras feitas especialmente para você e sempre buscando fazer títulos que agradem aos leitores que gostem de cultura pop.

Raio Laser: Grande parte do acervo da Draco é formada por coletâneas. Qual seria o objetivo da opção por este formato? Permitir a participação de número maior de autores? Qual o método utilizado para seleção dos novos talentos? Qual tem sido a receptividade do público para este material? (Foi mal. A pergunta ficou longa pra cacete).

As coletâneas são a forma que encontramos para ter publicações, durante todo o ano, dos principais autores da casa e, ao mesmo tempo, encontrar e revelar novos talentos. Nós conseguimos manter todo nosso time produzindo e melhorando cada vez mais, ao mesmo tempo que o leitor tem sempre novidades para ler. Seria a nossa versão dos comics mensais e das publicações semanais japonesas. Queremos que o público acompanhe nossos talentos e nossas ideias durante o ano todo.

Após desenvolver o tema e a estrutura geral de uma coletânea, abrimos para que novos colaboradores possam enviar seus roteiros, portfólios e projetos para fazer parte da publicação. Nós avaliamos todas as inscrições e selecionamos todos que tiverem potencial, depois juntamos com os autores da casa e buscamos criar times cada vez melhores. Também existem os critérios internos da própria coletânea, que pode exigir alguns tipos de traço específicos e de estilos de escrita. Histórias de um espectro semelhante podem acabar sendo rejeitadas muito mais por baterem com temas já selecionados. Se você tem vontade de ser parte do time de dragões da Draco, as coletâneas são a melhor porta de entrada. Se já foi rejeitado, pode melhorar e mandar novas inscrições.

O público gosta bastante das coletâneas, pois sempre haverá uma ou mais histórias que agradem ao seu gosto. Buscamos sempre compor as coletâneas com um grande leque de estilos e formas de contar histórias. Sempre tivemos uma boa receptividade do público e isso incentiva a produzirmos cada vez mais.

Raio Laser: É quase consenso que o momento atual do quadrinho brasileiro é ímpar. Como você vê o futuro desta cena e qual o papel que a Draco desempenhará nele? Acredita que o modelo atual, com inúmeras editoras pequenas trabalhando em parceria com gigantes do mercado do varejo virtual, seja sustentável?

Foram vários os fatores que nos colocaram no momento atual, sempre cito alguns: Quarto Mundo, Bá e Moon ganhando Eisner, sucesso das CCXPs, a confraternização do FIQ, a profissionalização de editores e roteiristas e, acima de tudo, a popularização dos meios de produção (gráficas com tiragens pequenas, financiamento coletivo, publicações pela internet e divulgação através das redes sociais). Tudo isso somado ao fato de que nós fomos mão-de-obra para quadrinhos do mundo inteiro e chegou o momento de colocarmos nossa vontade de contar histórias pra fora e publicar aqui.

A Draco tem como objetivo principal ser uma editora referência na publicação de histórias originais com autores locais. Cada vez mais estamos desenvolvendo um jeito Draco de contar histórias em quadrinhos e acredito que a resposta de público e crítica seja resultado dessa persistência, dedicação e carinho. Nós realmente acreditamos que podemos fazer um trabalho que vai agradar cada vez mais o público leitor que gosta de séries de TV, cinema, literatura fantástica, música e tal.

Sendo bem sincero, as editores pequenas não têm muita opção quando se trata de distribuir seu material. Afinal, para entrar em uma grande livraria é preciso ter toda uma estrutura. Porém, nós temos trabalhado em quase todas as frentes: estamos nas principais redes de livrarias do país, nas comic shops, fazemos feiras de quadrinhos e literatura por todo Brasil, venda direta em nosso site e, claro, também estamos em todos os grandes varejistas online (sim, até nas Casas Bahia e no Wallmart). E, para não dizer que não estamos nas bancas, nós estamos nas principais bancas de São Paulo através da distribuição feita pelo Worney.

Temos que estar onde o público frequenta e buscar cada vez mais profissionalizar a estrutura como um todo. É uma tarefa árdua, exige muita paciência e muito investimento, mas que aos poucos tem mostrado resultados gritantes. Nós começamos bem modestos e hoje já temos um legado que podemos nos orgulhar de ter realizado.

Resenhas padrão Raio 

Demônios da Goetia

– Raphael Fernandes (Org.) (Draco, 2017): A marca da influência do poder demoníaco nos desejos, tentações e fraquezas humanas pode ser lida como uma metáfora para sentimentos profanos e indesejáveis ou como manifestação real de forças que desconhecemos. Como diz o magista Vinicius Pereira na introdução deste surpreendente

Demônios da Goetia: “Eles existem, mesmo que só na sua cabeça. A mente se prepara, desde as preliminares, para lidar com o demônio. Se ele não tinha consciência objetiva, passa a ter no momento em que você começa a acreditar”.

Essa luxuosa publicação, em papel couché, alta gramatura e cores vermelhas salpicando perturbador preto e branco, tem como proposta se inserir nessa sutil ambiguidade: literalmente ou figurativamente, a sedução propiciada pelo mal existe e afeta diretamente as ações humanas degeneradas. A coletânea, editada por Raphael Fernandes, traz oito histórias altamente perturbadoras carregadas de gore em situações perversas, moralmente repulsivas. São contos a respeito de pactos com os chamados 72 demônios da Goetia, baseados em um grimório com instruções para praticar a arte do Rei Salomão (um tipo de demonologia).

Esta edição é uma das apostas mais sofisticadas da editora, e a tradição brazuca de horror metafísico com presenças de criaturas sobrenaturais repugnantes (de Shima e Colin a Mozart Couto) está devidamente representada neste bem curado compêndio profano. Os rituais de invocação são tão minuciosamente detalhados que rola até um frio na espinha ao tentar imaginar como os autores chegaram a essas informações.

Dentre as coisas sortidas que encontramos por aqui há, por exemplo, a história de abertura, onde um jovem é condenado a olhar para a própria morte em loop, reiteradamente, pela eternidade. O texto bruto e perturbador é de Raphael Fernandes, e a arte de Daniel Canedo, pintada no que parece ser um guache macabro, lembra o grande Jon J. Muth. Os artistas da edição, aliás, expressivos, em geral conseguem obedecer à ordem de equilibrar preto e branco, grafismos perturbadores e o uso pontual da cor vermelha. Uma das melhores histórias é “O Mestre da Arte” (de Caio H. Amaro), ilustrada de maneira prosaica (lembra Fábio Moon) pela brasiliense Flávia Lima. Aqui, um conjurador experiente elabora tramoias arriscadas com demônios cada vez mais poderosos para conseguir salvar a vida do namorado. É surpreendente e desolador.

Outros notáveis destaques estão no conto – esotérico, umbral, hipnótico – de Juscelino Neco, que se destaca especialmente pelo traço vigoroso, mas limpo, de sua arte. Também achei complexa e estupefante a história YHVH, que, mesmo com a arte um tanto amadora de Lucas Chewie, tem um roteiro muito original, capaz de problematizar profundamente a ordem de anjos (extremamente alienígenas) e demônios na esfera humana. Por fim, a barroca O Jogo, com roteiro de Antonio Tadeu e a arte obscura de Ioannis Fiore, estabelece uma espécie de Noite na Taverna com os filhos do cramunhão tentando determinar qual deles executou façanha mais maligna no coração da humanidade através dos séculos. Como é de praxe nesta edição e no próprio gênero (vide os twist ends da EC), temos um final desconfortável e até filosófico.

Demônios da Goetia é um lançamento significativo nas HQs nacionais, ainda que habite as margens, no quadrinho de gênero. A natureza do mal é examinada com propriedade e diversidade de abordagens. Os artistas variam, mas em geral estão em coesão com o conteúdo das histórias. E as histórias, estas inspiram pesadelos. E isso é o maior mérito que uma obra de horror pode almejar. (CIM)

Devorados – Erick S. Cardoso, Cirilo S. Lemos e Márcio R. Gotland (Draco, 2017): Quais são os ingredientes típicos presentes nos gibis da editora Bonelli, como Dylan Dog, Tex, Mágico Vento e etc, que vem fazendo a cabeça da juventude há tanto tempo? Em primeiro lugar, embora pertençam a um universo próprio e amplo, as histórias saem em edições fechadas, então não tem aquele esquema de ter que estar sempre atrás da continuação. Por esse motivo, cada história tem começo, meio e fim, o que desencoraja roteiros com muita embromação, já que, de uma forma ou de outra, terá de haver algum tipo de desfecho. Outra característica comum é a utilização de desenhistas mais completos, capazes de retratar cenários diversos e grandiosos, cenas de ação e grande variedade de personagens. Artistas com poucos recursos (não que isso seja um mal em si) tendem, portanto, a ser rechaçados na indústria italiana. E o que isso tem a ver com Devorados? Tudo. O gibi brazuca seguiu – conscientemente ou não – essa cartilha e se deu bem.

Devorados narra a história de Duran Draconian, membro de uma família outrora respeitada, mas agora decadente. Buscando reviver os longínquos dias de glória do clã, ele aceita participar do mortífero desafio de montagem das Viperas, répteis alados altamente perigosos. A provação envolve a domesticação do animal, que só será conseguida em caso de empatia instantânea entre cavaleiro e montaria, no melhor estilo Avatar. Caso o dragão não vá com a sua cara, o preço a ser pago será a própria vida. Sem dar spoilers, gostaria de alertar para o final da história, que de forma inesperada e chocante, explica o título desta interessante HQ.

É promissor perceber que Devorados é uma aventura num universo já pré-estabelecido, com dinâmicas e personagens próprios. Fiquei curioso para ler novas histórias de Duran Draconian. Espero que esse lançamento seja apenas a ponta de lança de uma série de novos títulos passados naquela realidade. Fica a expectativa de que esta estreia tenha sido apenas um tira-gosto antes da chegada de um prato de macarronada preparado pela trindade Cardoso, Lemos e Gotland. (MMA)

A Teia Escarlate (Série Tempos de Sangue) – Eduardo Kasse, Raphael Fernandes, Clayton InLoco e Daniel Canedo: Quando era mais jovem, absolutamente amava os romances das crônicas vampirescas de Anne Rice e o RPG Vampiro: a Máscara. Este material tinha uma visão sobre os mitos dos vampiros que demonstrava absoluta devoção à tradição literária do gênero e ao mesmo tempo os trazia com elegância para a (então) contemporaneidade. Os vampiros podem estar fora de moda (hoje, tudo é zumbi), mas no meu coração ainda reside aquele apelo fatal e romântico, que une beleza e morte, dos mitos que aprendemos a amar.

A Teia Escarlate, formado por trechos em quadrinhos escritos por Raphael Fernandes e por pequenos contos complementares do escritor Eduardo Kasse, faz parte de um conjunto de romances (uma pentalogia) que efetiva um universo expandido em que vampiros à moda de Anne Rice atravessam os séculos em fases diferentes da humanidade, cometendo atrocidades, manipulando a ordem mundial e se refestelando com seus prazeres hedonistas.

Em princípio seria uma ótima pedida para mim, fã do gênero, mas lendo estes contos e quadrinhos percebi que esta abordagem de fato não envelheceu tão bem. A nobreza aristocrática deste tipo de vampiros, somada ao apelo brutal da morte e do sangue, acabaram se tornando um tanto quanto cafonas. A Teia Escarlate conta justamente a trajetória de uma imortal romana, filha de uma deusa, que vai consignando seus desejos malévolos em épocas distintas, acompanhada por coadjuvantes que interferem em sua vontade primordial. Confesso que Fernandes está menos inspirado aqui do que em Demônios da Goetia. As artes de InLoco e Canedo (também melhor em Demônios...) não chegam a incomodar, mas para mim não se tornaram exatamente ativos para o gibi. E os contos de Kasse, com o perdão da crítica, me pareceram um tanto grosseiros, com imagens literárias que misturam kitsch e gore, além de serem narrados numa prosa simplista demais. O apelo nostálgico é legal, mas Anne Rice só tem uma mesmo. (CIM)

Despacho – Fernando Barone e Samuel Sajo (Org.) (Draco, 2017): Em algum momento entre os anos de 1988 e 1992, recordo de ter me familiarizado com o termo “despacho”. Eu e mais alguns amigos de escola criamos o costume de desbravar o cerrado fechado que circundava nossa escola. Hoje em dia tudo virou cidade, mas há 30 anos era só aventura áspera e espinhosa. Algumas centenas de metros mato adentro havia uma encruzilhada de trilhas e foi lá que vi meu primeiro ritual de “macumba”: uma farofa, velas, uma garrafa de 51, charutos e um resto de comida que deve ter servido de almoço para os saruês do local. Havia um misto de medo e excitação. Como alunos de uma escola católica, aquilo não era só profano, era quase diabólico. Outras visitas ao local diluíram o medo inicial e a intimidade até permitiu que o medo desaguasse em desrespeitosas goladas de vinho anônimo e baforadas de charutos fedorentos. O medo e o posterior desrespeito são frutos de uma ignorância de duas cabeças: a falta de conhecimento típica da juventude e o pertencimento do grupo de alunos a um círculo social que excluía e demonizava elementos culturais de matrizes africanas. Tudo muito anos 80, lógico.

Quando me caiu nas mãos o volume de Despacho, da editora Draco, imaginei que eu reencontraria algo do medo e da profanação que marcou esse meu primeiro contato com o ritual. Sabia que o que estava sendo apresentado era mais variado que isso, que buscava resgatar um terror brasileiro marcado por causos e maldições e que teve nos anos 70 seu momento mais criativo. O título até me pareceu ofensivo, já que não estávamos mais em 1988 e a cultura afro-brasileira não sofre mais do mesmo obscurantismo de 30 anos atrás (embora continue padecendo de outras formas de exclusão), mas imaginei que esse anacronismo pudesse ser uma abordagem irônica que se abrisse a uma atualização desse discurso.

Apesar da bela arte de capa, o que encontrei no miolo da revista foi decepcionante. Um amontoado de “sacadas” mal aproveitadas narradas com uma arte confusa e embrulhadas em um senso comum preguiçoso que se esconde sob rótulo de trash. O medo e a profanação estão lá, mas devido a problemas editoriais, esse medo não se sustenta e o terror resultante emerge da percepção do potencial desperdiçado. Já a profanação que aparece nas páginas esbarra num discurso obscurantista digno da doutrina de minha antiga escola.

Por estes problemas de edição, fica difícil se entreter com a interessante premissa de O Diabo Que Te Carregue, uma das duas profanações do Sítio do Pica Pau Amarelo que fazem parte da antologia. O trabalho de Victor Freundt, que escreve e desenha a história, esbarra em uma confusão visual que atola toda a leitura, que é deixada ainda mais lamacenta graças ao texto carregado de um sotaque “caipira” de difícil leitura. A experiência lembra uma viagem de 5 quilômetros em uma estrada de terra para a fazenda que leva 5 horas de duração. A outra referência aos personagens de Monteiro Lobato busca uma roupagem moderna, mas também padece de uma arte confusa assinada pelo organizador do volume, Samuel Sajo, e roteiro de Airton Marinho. Em Brutalizados no Sítio, um grupo de “aberrações” sequestra e estupra um “pai de família” numa história que causa náuseas mais pela utilização infeliz de clichês sobre a transsexualidade do que por sua ousadia estética. Da mesma forma, em Segredos, com roteiro de Sajo e arte de Rafael “Abel” Vasconcelos, encontramos um confuso sincretismo entre igreja católica e cultos africanos que termina por atrelar uma imagem de desequilíbrio e psicopatia às religiões afro-brasileiras. De forma mais clara essa balança vai pender para o lado judaico-cristão em Dízimo de Sangue, história do personagem O Pastor de Raphael Fernandes e Juliano Kaapora, um Constantine cristão que combate as forças demoníacas... não preciso descrever mais que isso.

O restante da HQ esbarra em narrativas mal contadas, didatismos ofensivos, descaracterizações, cortes abruptos e diagramações confusas. No geral, este despacho não vinga e o que resta é um sentimento de frustração. A HQ desperdiça bons ingredientes: com destaque para a arte bela e carregada de Victor Freundt, mas que carece de um editor para desatar o nó da diagramação; o estilo fumetti promissor mas ainda burocrático de Abel; e a inegável potência da arte de Sajo que mostra um grande potencial expressivo, mas é completamente perdido na impressão tosca e diagramação confusa.

No mais, Despacho é apenas mais um olhar confuso e imaturo sobre um assunto tão rico quanto a cultura nacional e suas vertentes afro-descendentes e perpetua uma perspectiva tendenciosa de uma classe de pessoas que enxerga rituais de outras religiões como uma brincadeira diletante, não muito distante dos meninos que “chutavam macumba” no intervalo da aula. (LN)

Rapidinhas Raio Laser #10

por Ciro I. Marcondes, Marcos Maciel de Almeida e Pedro Brandt

"Um traidor entre nós!" Será que ele está na Raio Laser? Será a Raio Laser um antro de traidores mancomunados para defenestrar o quadrinho nacional, escrevendo resenhas de mau gosto e esculachando o herói diário que é nosso cartunista independente, que finaliza suas histórias com o nanquim do próprio sangue? Haverá uma resolução para acabar com estes traidores e encerrar a Raio Laser? Será o traidor o dissimulado, de humor com gosto duvidoso, Marcos Maciel de Almeida? Será o irremediavelmente sardônico Pedro Brandt? Será o gangsterzão Lima Neto? Será o onipresente Márcio Jr. com seu "touch of evil"? Ou será o amargo e desiludido Ciro Inácio Marcondes? Bem, a crítica é sempre uma institucionalização dos traidores (como já previa a revista NME), uma corporação de patifes, escroques e pessoas de caráter questionável. O bom crítico deve afundar a faca nas costas e trair com a mais assertiva convicção. Estamos aí, estamos vivenciando nossa diária sexta-feira da maldade. Sem recalque, sem camaradismo youtubeiro. 

Seguem mais facadas em coisas interessantes de editoras como Veneta, Mino e Avec. Além de trabalhos independentes feitos do esgotamento quase total do quadrinista brasileiro. (CIM)

PS: essas resenhas tão totalmente de boa, na verdade!

Todas as Rapidinhas Raio Laser

Rapidinhas Catarse

Wasteland Scumfucks – Terra do Demônio

- Yuri Moraes (Veneta, 2017): Em 2012 escrevi uma resenha bem sacolejada do gibi Garoto Mickey, romance gráfico de Yuri Moraes publicado pela dobro. Considerei que o cara tinha talento, mas o quadrinho era muito autoindulgente e até um tanto paranoico com sua possível recepção crítica. Pois bem, anos depois, Yuri volta com algo conceitualmente muito mais impactante e manda um dos quadrinhos brasileiros mais originais dos últimos tempos. É importante frisar que precisamos esperar e dar chance para os autores amadurecerem. Vamos lembrar que Chaplin fez uns 50 curtas antes de dirigir seu primeiro longa-metragem (que é O Garoto, de 1921. Not that anyone cares). 

Produzir um romance gráfico é um sacrifício que muitos autores corajosos se arvoram ainda no começo da carreira. Muitas vezes os resultados são desastrosos, mas acho que a rodagem que esse esforço produz não é em vão. Tem gente que defende que se deve esperar o momento certo (ou seja: mais amadurecido) para se arriscar neste gênero, mas eu apoio estes kamikazes. Nada enternece a experiência melhor do que a própria experiência. Yuri Morais sofisticou suas ideias. As dores de crescimento são visíveis, mas estão cicatrizadas. 

Digo tudo isso para comentar a porraloquice bem-vinda que é Wasteland Scumfucks – Terra do Demônio. Yuri é um cara que visivelmente manja de um bando de coisas – de mangá shonen ao proto-punk americano dos anos 70 –, e essas influências aparecem muito bem mapeadas neste quadrinho grindcore que seria uma espécie de mundo em que Hora de Aventura tivesse sido criado pelo Lovecraft. 

O plot é escroto e delirante: GG (inspirado no doentio ícone da iconoclastia G.G. Allin), escravo numa prisão-ditadura, com ajuda de um cientista arrogante e um robô com aspirações de liberdade, consegue escapar e se juntar a outros personagens tão pitorescos quanto para entrar na chamada “Terra do Demônio”. Este lugar, meio Mordor, meio Terra de Ooo, meio (dãrhl) Oz, é um celeiro de atrocidades: canibalismo, parricídio, etc. Lembra um pouco aquele episódio de Rick and Morty em que eles vão parar num reino “fofo” onde o rei era um estuprador de banheiro. Yuri apela no non-sense, nos diálogos agressivos num nível de humor negro que eu geralmente aprecio e na pesada (porém divertida) escatologia.

A arte está mais simples e estilizada do que em Garoto Mickey, com um funcional colorido chapado em preto e vermelho, dando a entender o esquematismo do gibi. Terra do Demônio tinha tudo para virar uma HQ cultuada. Tem todos os elementos: referências maneiras sem clichês, diálogos cortantes e memoráveis, humor de primeiro nível e uma dose cavalar de politicamente incorreto. Uma pena que todo o lobby dos quadrinhos hoje seja para coisas edulcorantes e que se pretendem profundas e edificantes dentro dos padrões morais atuais, mas que são visivelmente superficiais. Assim, como Diego Sanchez, Yuri Moraes é mais um que sai da nossa “treta de 2012” fortalecido. (CIM)

Contos do Cão Negro – Volumes I e II – Cesar Alcázar e Fred Rubim (Editora Avec, 2016/7): Quando recebi meus exemplares de A Canção do Cão Negro, tive quase certeza de que se tratava de material gringo. Afinal, não é tão comum nestas bandas encontrar, num mesmo pacote, publicações bem impressas, edição caprichada, paleta de cores de extremo bom gosto e identidade visual bem definida. Mas sim, Contos do Cão Negro está entre nós e é nacional. Para quem não leu, a grande referência aqui é o nada doce bárbaro de Robert E. Howard, que certamente foi leitura de cabeceira dos autores. Não que Cão Negro se resuma a isso, mas é uma influência inegável. 

O roteiro de Cesar Alcázar é competente para mostrar as aventuras do protagonista Anrath, em que pese os bizarros nomes escolhidos para batizar as cidades e personagens da HQ, tais como Grainne, Limerick e Clontarf (!). Entretanto, o gibi se sobressai mesmo é pela qualidade do desenhista/arte-finalista/colorista Fred Rubim. Dono de um belo traço, altamente estiloso e rústico – bastante apropriado para o tom sombrio do gibi –, Fred tem como principais virtudes o talento para desenhar locações e cenas de impacto. As sequências de ação, no entanto, carecem de maior sofisticação, já que, por vezes, percebe-se que o artista não deu muita bola para elas. 

Embora às vezes conte com diálogos com pouca fluidez, Cão Negro tem uma história de fundo envolvente, que desperta no leitor a curiosidade de chegar ao desfecho. E as expectativas são recompensadas, especialmente pelo fato de os autores engrossarem o caldo com a participação de entidade/divindade inspirada nos mitos de Cthulhu, sempre muito bem vindos. 

Infelizmente há uma queda sensível na qualidade da arte entre o primeiro e o segundo volume. Tem-se a forte impressão de que este último foi feito de forma mais apressada e com menor planejamento, já que há grande quantidade de imagens que estão mais para rascunho que para arte-final. Mas tudo bem, nada que o lançamento de um terceiro volume não possa redimir. (MMA)

Market Garden - Bruno Seelig (Editora Mino, 2017): Bruno Seelig é um nome para se prestar atenção. E caso você ainda não faça isso, visite agora mesmo o site do quadrinista gaúcho e entenda o porquê. As ilustrações de Seelig são daquele tipo carregadas de informação, com referências e citações diversas – cinema, quadrinhos, TV, rock, design gráfico - enfim, um apanhado geral de cultura pop fácil de descrever, mas que alcança um resultado além da simples junção das partes que formam essa mistureba, sendo tudo muito bem sacado e retrabalhado no traço do autor, dono de uma personalidade imediatamente reconhecível. Se Seelig fosse apenas ilustrador seria o suficiente para ser fã do cara e ficar babando com seus desenhos. Mas o filho-da-mãe ainda é um baita de um narrador, daqueles que dá gosto de ler as HQs.

Ele domina, como poucos jovens autores nessas plagas, a arte de contar visualmente uma história. O timing de sua narrativa é absurdamente bem-executado, ou seja, o tempo dos acontecimentos, os momentos de fala e os de silêncio (para causar diferentes sensações) e como eles são apresentados ao leitor (com closes, planos, contraplanos e angulações de câmera diversos) é eficiente e adequando, nada parece apressado ou devagar demais. Como num bom filme. Bruno Seelig tem o olhar apurado de um montador e a sensibilidade conceitual de um diretor.

Seu traquejo como roteirista e criador de diálogos acompanha seu talento com as outras categorias.

Market Garden, propositalmente ou não, mira na tão em voga nostalgia dos anos 80, ainda que a história se passe na década de 90. A HQ tem como protagonistas cinco amigos entrando na adolescência e vivendo os dilemas típicos da idade: aceitação, escola, garotas, amizade, morar com os pais, futuro profissional, etc. e tal. Poderia ser mais um quadrinho (ou filme ou série ou animação) com essa premissa. Mas entre a linha tênue entre o clichê a uma representação credível e divertida, a obra está mais pro lado de cá (onde estão também Stranger Things e Apenas Um Show).

Na seara dos quadrinhos, séries como Locas, do californiano Jaime Hernandez, ou Xampu, do paulistano Roger Cruz, habitam universos semelhantes, mas com um diferencial: trazem consigo uma inegável marca autoral e um relato bastante fidedigno de uma época. E, nelas, a visão particular desses autores, suas dores e alegrias, somam como um ingrediente que faz toda a diferença no resultado. Em comparação – injusta, talvez – a HQ de Seelig pode soar menos espontânea. Seus rapazes são hipsters que não existiam naquela época. Do grupo de cinco, apenas três – pelo menos até aqui – têm personalidades marcantes, mais trabalhadas. E suas sensibilidades não parecem brasileiras, mas importadas, como personagens que conhecemos em filmes na TV (aberta, pré-cabo), não durante o ensino médio ou numa vizinhança de uma metrópole brasileira. A HQ, aliás, poderia se passar nos EUA. São detalhes perceptíveis, mas que não chegam a tirar o brilho do conjunto. Seria Market Garden apenas um cartão de visitas do autor para chegar aos comics – ou ir além dos quadrinhos, para depois abandoná-los, como fez seu conterrâneo Rafael Grampá? Tomara que não. Com um pouco mais de pretensão e ousadia, Bruno Seelig tem tudo para se tornar um dos grandes autores de sua geração. (PB

Salto – Rapha Pinheiro (Editora Avec, 2017): Aqui mais um exemplo de romance gráfico lançado ainda no início da carreira do autor. Rapha Pinheiro estudou em Angoulême em 2016 e este Salto é o resultado de sua residência. Trata-se de uma exótica fábula com pretensos elementos steampunk situando-nos numa sociedade de povos do fogo (digo: literalmente feitos de fogo) que se acotovelam dentro de uma cidade movida a vapor, dentro de uma grande caverna. Eles se refugiaram lá por conta de uma colossal chuva no lado de fora que os traumatizou para sempre. A fábula em si, com intenção filosófica remetendo diretamente à alegoria de Platão, é bem sacada e vale o esforço de leitura graças a essa ambientação criativa. Há um planejamento no design (social, tecnológico e arquitetônico) deste mundo que abre bem as portas para boas histórias. O problema é que Rapha Pinheiro se rende a convencionalismos um tanto quanto irritantes para o seu conto moral. 

O layout das páginas e as sequências narrativas são decepcionantes, autoevidentes. Tudo ocorre de acordo com o que se espera. Os personagens, situados num conflito de classes (marcado criativamente pela cor das chamas), se reduzem a tipos e a um maniqueísmo insuficiente para debater questões atuais. Arquétipos desgastados não são mais que estereótipos. Por fim, a arte definitivamente não atrai. É esquemática, pouco detalhada e com acabamento (arte final) ruim. O colorido digital, então, coroa o gosto duvidoso das escolhas estéticas deste gibi. Acho que o autor tem imaginação o suficiente para superar estes entraves num próximo trabalho. Desta vez, não deu. (CIM)

Necromorfus – Osso do Rei

(RQT Comics/Korja dos Quadrinhos, 2017): O Marcos Maciel de Almeida já bajulou bastante o trabalho do Magenta King por aqui, mas eu acho que nunca é demais ressaltar a qualidade e as escolhas de um bom artista. Desta vez este personalíssimo ilustrador trabalha um roteiro (muito massa e original) de Gabriel Arrais para liberar sua arte (aquela coisa vistosa com influências diversas, de Geof Darrow a Tim Sale e gekigá) na forma de nanquim, aquarela e retículas. É isso que compõe o primeiro volume da série Necromorfus, que pretende reunir elementos de terror, violência tarantinesca, aventuras “adultas” à la Hugo Pratt, Vampiro: a Máscara, fumetti, etc. É um bom “gumbo” para gibis que querem alcançar o nível de excelência “Vertigo” para horror metafísico em quadrinhos.

É uma história curta, que basicamente apresenta o conceito do personagem: Douglas, um imortal que adquiriu este dom com 16 anos e desde então foi progressivamente perdendo a humanidade. Ele é capaz de tocar em matéria morta e assumir a forma e as memórias da pessoa ou animal em que encostou. E detalhe: Douglas revive também a hora da morte destas pessoas, tornando o personagem oco e sombrio. Outros elementos surgem no nó investigativo que decorre das ações de perseguidores e perseguidos pelo necromorfo: uma femme fatale que chama a sua atenção, um “psiquiatra de clientes muitos especiais”, a impressionante descrição do reencarnar na matéria bruta que é a psiquê de um urso. Há uma atraente aura de Dylan Dog neste gibi.

Necromorfus estreia bem, com decente capacidade de refletir sobre o que nos faz humanos e onde perdemos nossa humanidade. Além disso, tem acabamento de produto pop e boas leituras de suas referências. Pra um primeiro volume curtinho basta. Não dá pra ir mais longe que isso. Vamos ver se sustenta maior fôlego em outras edições. O volume 2, conforme está anunciado, terá arte de Abel. (CIM)

Reparos – Brão Barbosa (Independente, 2017): Eis uma HQ incensada pela crítica especializada, mas que não me pegou. A história de Eunice, a garota fascinada pelo ofício de consertar coisas, é bem intencionada, mas não deixa muitas saudades. De início, Reparos sinaliza que mostrará a evolução da paixão de Eunice pelo amigo Júnior, mas, aos poucos, a história passa a girar em torno da aproximação – quase filial – da protagonista com Ravid, senhor idoso, mestre na arte de reparar aparelhos quebrados. O crescimento da confiança e do afeto entre a garota sonhadora e o velho - aparentemente carrancudo, mas na verdade generoso - é bonito de se ver, mas não chega a emocionar. 

A arte de Brão, excessivamente cartunesca, também não ajuda muito. As sequências sem balões, por exemplo, são muito confusas e revelam que o autor ainda tem um longo a caminho a percorrer para conseguir dominar as sutilezas da arte sequencial, já que suas habilidades de storyteller, por enquanto, deixam a desejar.  O gibi anterior de Brão, Feliz Aniversário, Minha Amada, também fez uso do recurso – muito bem-vindo por sinal – de alterar a direção da narrativa para um caminho inesperado, mas em Reparos a escolha resultou num final menos redondo. (MMA)

Esquadrão Vitória – Giorgio Galli, Clóvis Brasil e Marcello Renoir (Gico HQ, 2017): O imortal Jack Kirby teria completado 100 anos em 2017. Muitas homenagens foram feitas confirmando o que já vínhamos percebendo nos últimos anos: a “Kirby renaissence”. Considerado ultrapassado nos anos 90 (ficou um certo tempo sem ser publicado aqui), o rei dos quadrinhos tornou-se referência de como ser responsa, perene, invocado e inquebrantável no mundo dos comics americanos. Sua persistência em adquirir garantias para a profissão, seu jeito austero de trabalhar, sua produção em escala cosmológica, tudo isso tornou Kirby “cool” como ele nunca havia sido antes. Pessoas que não gostam de super-heróis dão o braço a torcer. Todo tipo de ilustrador se ajoelha para a sua delirante e imaginativa obra. Kirby se tornou ícone, “ideia”, o Muhammed Ali dos quadrinhos. Kirby tornou-se como um dos titãs que ajudou a criar. Talvez não fosse necessário um culto de personalidade tão sectário. Mas, bem, como se sabe, Kirby é Kirby...

Daí a simpatia imediata por esta paródia/homenagem Esquadrão Vitória, que emula o estilo de Kirby/Lee (apesar de a edição ser dedicada apenas a Kirby) com uma equipe de “vingadores” inspirada em símbolos nacionais (e nacionalistas). O gibi é bem feliz em procurar mimetizar cada aspecto de um produto Marvel dos anos 60/70, com sessão de cartas “excelsior”, Kirby crackles e diversos outros easter eggs. Capa, cores, empaginação, diálogos, detalhes editoriais, tudo foi marejado no apelo nostálgico que os super-heróis da era de prata da Marvel inspiram nos adultos de hoje. 

O que achei mais bem sacado foi a transferência do contexto político-militar dos comics dos anos 60 para um da mesma época, só que brasileiro: nossos heróis servem ao governo (uns são militares), e atendem a deveres patrióticos. Ahá (xeroque rolmes), há uma interessante leitura social do Brasil por trás da aparente amenidade da história envolvendo o vilão “Suga-Mentes”. De quebra, ainda vemos o líder Coronel Alado (aka paródia do Capitão América inspirada no Capitão Aza) libertar seus sentimentos mais arraigados e hipócritas ao assumir a fantasia de onipotência com seus colegas Sucuri, Mãe-De-Santo, etc. Em algum lugar em Valhalla, no planeta de Beyonder ou até nas infinitas terras da DC, Kirby deve ter curtido essa revistinha. (CIM)

Porco Pirata

- João Azeitona (Editora Mino, 2017): Se eu acompanharia uma série de Porco Pirata? Com certeza! O que o roteirista e ilustrador João Azeitona, autor do álbum lançado pela Mino, mostra nessa primeira edição é um personagem carismático conduzindo uma trama de aventura com direito a algumas surpresas e reviravoltas. Tipinho canalha, como um típico pirata, o obstinado personagem-título irá até as últimas consequências – batalhas, traições, armadilhas – para desfazer o feitiço que o transformou em um suíno. Nada muito original, mas divertido e promissor. Acompanharia a série também para testemunhar, com o passar das edições, o amadurecimento do trabalho de Azeitona. Fácil perceber que o cara é talentoso (com um preto e branco expressivo) e está em pleno desenvolvimento. Por ora, sua narrativa é um pouco dura e ele explora bem menos do que poderia as possibilidades de construção de página, resultando em várias redundâncias e desperdícios visuais. Outra coisa que joga contra é o fato dos balões de fala serem quadrados ou retangulares com letreiramento feito no computador. Balões desenhados (e, se possível – por favor! – letras feitas à mão) dariam muito mais vivacidade às cenas e contribuiriam sobremaneira ao ritmo de leitura. Vale ressaltar que a HQ em questão está mais para a série cinematográfica Piratas do Caribe, com situações um tanto quanto previsíveis e o foco na ação (neste primeiro número, principalmente em terra firme) do que para antigos filmes ou romances de pirataria. Quem procura quadrinhos com essa pegada mais “clássica” não deve deixar de ler as sensacionais BDs Os Passageiros do Vento, de François Bourgeon, e Barba Ruiva, de Jean-Michel Charlier e Victor Hubinon. (PB)

Balas Contadas – Hiram Miller (Independente, 2017): Hiram Miller é um quadrinista em formação. Em Balas Contadas, ficam evidentes as boas intenções em contar uma boa história de faroeste. Infelizmente, dadas suas limitações como argumentista e desenhista, o gibi não empolga e fica a sensação de que, mesmo após o autor apertar o gatilho, as balas seguem presas no cano do revólver.  A HQ narra um conto do “Bando Ébrio”, grupo de bandoleiros que parte em busca de um tesouro escondido. Entretanto, o que poderia ser uma aventura interessante, às voltas com seres sobrenaturais e grandes bebedeiras, revela-se um passeio tão desagradável quanto uma ida ao trem fantasma daquele parque de diversões à beira da falência: por mais que você queira achar graça, fica torcendo mesmo é para que tudo acabe o quanto antes.  Dentre os vários problemas encontrados, o que se sobressai é a falta de carisma dos personagens. É muito difícil para o leitor estabelecer empatia com qualquer um deles. O misterioso maquinista do trem que nunca para, Txotxo (!), por exemplo, não passa de um brutamontes retardado. Outro desafio é conseguir ignorar a – baixa – qualidade dos desenhos. As ilustrações são tão sofríveis que cheguei a sentir saudades de Rob Liefeld.  Mas não deixe minhas palavras te desanimarem, Hiram. Siga tentando. Um dia seus disparos acertarão o alvo. (MMA)

Pile Up – Bruno Soares (Independente, 2017): Morte, vida, ressurreição, alumbramento, o milagre da existência. Parece muita profundidade temática pra um gibi (mudo) de estreia sobre dois botânicos espaciais, não é? Pois é exatamente o que esse jovem Bruno Soares realizou como trabalho de conclusão de curso na graphic Pile Up. De tirar o fôlego, inspirada em Arzach de Moebius mas sem parecer nada derivativo (o traço lembra mesmo é o do espanhol Julio Ribera), este quadrinho extrai toda a potência das narrativas de qualidade universal que as HQs sem palavras podem fornecer.  As imagens são desenhadas em quadros grandes com beleza profética (lembra Druillet em alguns momentos; LEO em outros), fazendo associações simbólicas entre os temas giratórios e simétricos sem que uma boa história deixe de ser contada. Eu realmente adoro quando a ficção científica assume sua condição metafísica (herança de 2001), que outros planetas sejam índice para a origem da vida e seu local na existência. Soares consegue atingir este subconsciente que reúne ancestralidade e futuro distante num livro elegante, sofisticado como narrativa, imperativo como inconsciente óptico. Significa dizer que é preciso ficar de olho neste autor? Bem, não preciso explicar o óbvio ululante. (CIM)