Notas sobre os quadrinhos documentais

Bom saber que a velha Raio ainda atrai bons articulistas. Por exemplo, apresentamos agora este Lucas Reis, crítico de cinema e quadrinhos em plena ebulição, que nos trouxe este ótimo artigo de introdução aos quadrinhos documentais. (CIM)

Lucas Reis é graduando em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e, desde o início de sua trajetória acadêmica, pensa inter-relações entre cinema e quadrinhos, especialmente na área de educação. Atualmente produz críticas cinematográficas para as revistas Janela e Ganga Bruta.

Por Lucas Reis

Durante a década de 1960, houve a ascensão dos quadrinhos underground nos Estados Unidos. Em uma época de florescimento da contracultura, a política e a arte do país sofreram abalos, e produções que antes eram relegadas a um pequeno público passaram a ter mais visibilidade. O movimento hippie - que questionava ações militares dos Estados Unidos e defendia um modo de vida mais próximo da natureza e distante do padrão burguês - crescia, especialmente entre os jovens. Um festival como Woodstock conduzia uma multidão para shows de rock e um consumo desenfreado de drogas e filmes, como Bonnie e Clyde - Uma Rajada de Balas (Arthur Penn, 1967), que narra o romance de um casal de criminosos durante a Grande Depressão, e Sem Destino (Dennis Hopper, 1969), sobre dois traficantes que cortavam as estradas do país em suas motocicletas, faziam um enorme sucesso de público que se identificavam mais com aqueles personagens do que em filmes já datados, como A Noviça Rebelde (Robert Wise, 1965) ou Alfie (Lewis Gilbert, 1966), mas que ainda concorriam nas grandes premiações do cinema como o Oscar e o Globo de Ouro.

Sem Destino: dispensa apresentações

As mudanças agudas no consumo dos produtos culturais nos Estados Unidos também impactou as histórias em quadrinhos. Em uma década que os valores dominantes foram intensamente questionados, autores como Robert Crumb, Gilbert Shelton e Harvey Pekar foram importantes para disseminar narrativas distantes do mundo de fantasia dos super-heróis que tomavam conta dos quadrinhos mainstream. Muitos leitores se interessavam menos por quadrinhos fantasiosos de vigilantes mascarados e mais por histórias marcadas pela rebeldia e por subverter a lógica das narrativas tradicionais e dos aparelhos estatais, especialmente o american way of life, que passava a ser questionado por grupos que não se encantavam por um padrão de vida ditado pelo governo. Até então se vendia a ideia de que, com trabalho árduo e determinação, qualquer pessoa, independente do seu passado, teria condições de uma vida confortável no futuro. 

Shelton: no caminho entre a contracultura e a autobiografia em quadrinhos

Sacco: pioneiro no jornalismo em quadrinhos

Uma característica comum dos quadrinhos underground

era a autorreferencialidade, ou seja, os autores como próprios personagens de suas obras assumindo um tom autorreflexivo ou biográfico. Aqui no Brasil, por exemplo, Angeli assumiu essas influências e costumeiramente se colocava como personagem de suas próprias histórias. Inclusive, em um arco famoso, o autor “adentrou” sua narrativa para matar a personagem Rê Bordosa, que fazia muito sucesso na época. Nos Estados Unidos, Joe Sacco utilizou da influência dos autores underground para produzir seus trabalhos. O livro O Derrotista, publicado no Brasil, que compila alguns de seus trabalhos entre 1988 a 1992 para a revista Yahoo, carrega esses traços e a metanarrativa permeia todas as histórias. Ainda não são os trabalhos que deixaram o autor mais conhecido, ao fazer grandes panoramas sobre regiões em guerra e se utilizando da linguagem dos quadrinhos, como no clássico Notas Sobre Gaza. Em O Derrotista, estamos diante de um estudante de jornalismo e suas desventuras para comer um bom bife e que comenta cheio de deboche sua categoria de “maior autor de história em quadrinhos do mundo”, mesmo que ninguém saiba disso. Em 1993, contudo, Sacco lança o primeiro volume de um trabalho que muda o seu patamar como autor de histórias em quadrinhos: Palestina - uma nação ocupada, em que trabalhou de 1993 a 1995 e foi compilada em livro em 1996. Nessa história, o autor faz uma investigação profunda dos habitantes da Palestina através de entrevistas com diversas pessoas de diferentes classes sociais e posições de poder que estavam naquele território em conflito.

Há uma veia jornalística no trabalho de Joe Sacco que vai além da sua formação acadêmica. O autor se fixa nos territórios que são retratados em suas narrativas, faz diversas entrevistas que são documentadas e - várias vezes - inseridas nas histórias, faz observações detalhadas e busca sempre analisar dois lados das situações em que encontra. E não há imparcialidade nos quadrinhos de Joe Sacco, ele assume uma visão do contexto que está inserido. Mesmo que, para o autor, seja importante a documentação e a exposição dos fatos, não há nem mesmo o desejo de ser imparcial, pois a própria condição de se colocar nas histórias é assumir um ponto de vista pessoal para os acontecimentos. Há de se entender, entretanto, que o autor não faz parte do mundo que retrata. A sua condição de forasteiro, especialmente com um passaporte dos Estados Unidos - maior potência bélica do mundo - lhe permite transitar livremente entre as nações retratadas em suas histórias, sem maiores riscos.

Em entrevista para o jornal Estado de São Paulo, em 2010, Joe Sacco declarou que a sua formação em jornalismo foi importante para o seu trabalho nas histórias em quadrinhos e que pensa na sua obra como jornalismo em quadrinhos:

"Quando estava no colégio, eu associava palestinos com terrorismo porque toda a vez que ouvia falar neles tinha a ver com bombas ou ameaças. Então, fui estudar jornalismo e, quando comecei a entender o que acontecia no Oriente Médio, me dei conta: os americanos sempre se colocaram como os grandes expoentes do jornalismo, mas nunca me contaram direito o que está acontecendo. Eu me senti traído pela minha própria profissão. Então, nos anos 1980, quis tirar essa história a limpo… Não estava pensando em criar uma nova… forma de arte ou seja o que for. Não foi uma decisão consciente, foi meio orgânico. Pensei: vou viver essas experiências, falar com pessoas, anotar e colocar isso junto. É claro, eu tinha o background jornalístico e isso teve impacto no formato que a coisa tomou, mas só depois comecei a pensar mais claramente no que estava fazendo. Foi na história da Bósnia (Gorazde) que comecei a pensar conscientemente em jornalismo em quadrinhos". (SACCO, 2010)

Sacco: "os americanos sempre se colocaram como os grandes expoentes do jornalismo, mas nunca me contaram direito o que está acontecendo"

Além de Joe Sacco, há outros autores que chamaram a atenção por trabalhos dedicados a experiências pessoais traduzidas para a linguagem dos quadrinhos, entre o final do século 20 e início do século 21. A iraniana Marjane Satrapi ficou bastante famosa com Persepolis,publicada entre 2000 e 2003 na França e adaptada para o cinema em 2007 pela própria autora. Satrapi concebeu seu trabalho para narrar aos seus amigos franceses sua história pessoal. Diferente dos trabalhos de Joe Sacco, aqui não há uma investigação, entrevistas, busca por fontes ou algo parecido. Por sua vez, há uma mergulho pela memória da própria autora para expor desde seus primeiros anos de vida até a vida adulta e seus caminhos entre Oriente Médio e Europa. Familiares, amigos, ex-namorados e outras pessoas que atravessaram o caminho da autora tornam-se personagens. De certa forma, este quadrinho também reflete o contexto de um espaço geográfico em conflito. Satrapi vivenciou a revolução islâmica no Irã e esteve inserida em conflitos militares na região, mas a forma de lidar com o contexto de guerra difere do adotado por Sacco. 

Existem semelhanças e diferenças entre os trabalhos dos autores citados aqui. Entretanto, há uma proposta teórica que abarca todas essas histórias como jornalismo em quadrinhos. Contudo, por mais que essa definição possa se aplicar ao trabalho de Joe Sacco, distancia-se da proposta de Marjane Satrapi. Devido a isso, atualmente há uma discussão pautada na ideia de esses quadrinhos serem considerados documentais, por ser mais certeira ao englobar uma maior produção dessa forma narrativa. Em artigo publicado na revista Nona Arte, “O Quadrinho Documental e a Tradução da Cidade”, o pesquisador Felipe Muanis faz um panorama de quadrinhos com características documentais: "Todas essas histórias fogem da linguagem habitual do quadrinho fantástico e se aproximam de um caráter mais realista e documental. A maioria é em preto e branco, tem enquadramentos muitas vezes simples, pouco espetaculares e centram suas narrativas na relação de contato entre a cidade e o seu autor, que sempre aparece retratado tomando parte da ação e vivenciando o relato". (MUANIS, 2013)

Se tais características existem nos trabalhos de Sacco e Satrapi, também há inegáveis diferenças. Tomando emprestado as ideias de Walter Benjamin no ensaio "O Narrador - Considerações a obra de Nikolai Leskov", é possível pensar na distinção de Joe Sacco e Marjane Satrapi: "A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. “Quem viaja tem muito o que contar” diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário e o outro pelo marinheiro viajante". (BENJAMIN, 1994)  

Satrapi e sua visão pessoal da documentação em quadrinhos Sacco, como o marinheiro viajante, e Satrapi, como a camponesa sedentária, são analogias que se explicitam na obra dos autores e traduzem suas aproximações com os documentários, pois usam de suas próprias figuras como autores/personagens para construir a narrativa. Se nenhum deles alcança o real, uma vez que são obras ficcionais, eles traduzem suas experiências pessoais por meio de estratégias adquiridas do cinema, do jornalismo, da literatura e das próprias histórias em quadrinhos. Há, contudo, autores em que essas classificações ficam um pouco mais embaçadas. Maus, por exemplo, de Art Spielgeman, publicado entre 1980 e 1991, é a história do pai do autor: um judeu que foi preso em um campo de concentração nazista durante a segunda guerra mundial, narrada pelo próprio Art Spielgeman. Assim, como Satrapi, o autor faz um intenso mergulho em suas memórias. Ao mesmo tempo, está lidando com seu pai, um sujeito distante em última instância, no sentido em que o autor não narra sobre a própria vida. O respeitado prêmio Pulitzer, outorgado a trabalhos de excelência em jornalismo e literatura, concedeu a Maus um prêmio especial por não definir se era uma ficção ou jornalismo. Mesmo assim, é comum enquadrar Maus como jornalismo em quadrinhos. De qualquer forma, a escolha do Pulitzer por uma premiação especial, ao invés de uma definição sobre em qual gênero Maus se encaixaria, expõe a dificuldade de definição para as histórias em quadrinhos compostas pelos autores inseridos nas narrativas.

Maus: inclassificável

A divisão por gêneros fundamenta-se, sobretudo, para estabelecer uma relação de maior proximidade com o consumidor. Tanto um livro policial como um filme musical, por exemplo, se constituem por certas características estruturais que estabelecem um pacto com o apreciador da obra. Ao saber o gênero, o leitor/espectador pressupõe aspectos marcantes do que irá consumir. Nas histórias em quadrinhos é o mesmo, com a exceção de que a subvalorização das narrativas gráficas como produção relevante para se estabelecer nas livrarias faz com que pouco exista de reflexões acerca da constituição genérica das obras. Em outras palavras, há, apenas, uma prateleira para histórias em quadrinhos em cada livraria e autores e gêneros diferentes entre si dividem o espaço sem qualquer diferenciação. Dessa forma, é possível ver as edições de histórias de Robert Crumb, por exemplo, ao lado de Héctor Germán Oesterheld, autor argentino de ficção científica, pois tudo faria parte de um grande gênero: histórias em quadrinhos.

A intenção de questionar a ideia de jornalismo em quadrinhos e pensar em quadrinhos documentais como uma definição mais precisa da produção atual das narrativas gráficas, sendo o jornalismo em quadrinhos uma subdivisão do gênero, está contextualizada com o crescimento das HQs no mercado editorial brasileiro. Recentemente, foram publicados dois livros que remetem a essa questão, pois têm, como protagonistas, os próprios autores: Meu Amigo Dahmer e Não Era Você Que Eu Esperava. A primeira trata da adolescência de Jeff Dahmer, que viria a se tornar um dos maiores assassinos em série dos Estados Unidos, e sua amizade com Derf Backderf, o autor da história. Já na segunda acompanha-se o autor, Fabien Toulmé, e a necessidade de lidar com a sua filha recém-nascida que foi diagnosticada com síndrome de down. A semelhança entre as duas está na forma como os autores/personagens remexem em seu passado para compor a narrativa. Há diferenças entretanto: enquanto Toulmé fica absorto em suas memórias para resgatar todo o início de relação com sua filha recém-nascida, Backderf construiu um panorama da vida de Jeff Dahmer, a partir de diversas entrevistas, para compor o retrato mais fiel possível da adolescência do serial killer. Talvez por Dahmer ser um personagem conhecido do grande público, o autor tenha sentido a necessidade de entrevistar diversas pessoas para a constituição do personagem. De qualquer forma, Meu Amigo Dahmer não se funda no registro do “entrevistismo”. Pelo contrário, regressa ao passado de Backderf, que muitas vezes utiliza a primeira pessoa e conversa diretamente com o leitor. Já Toulmé não sofre com esse problema e não destaca qualquer auxílio para compor sua história.

Não era você que eu esperava funciona como se o autor resgatasse o seu diário e dividisse com o público. 

Autores como Spielgeman, Sacco e Satrapi não são mais sucessos esporádicos. Diversos quadrinistas novos que inscrevem suas narrativas na chave dos quadrinhos documentais têm suas obras lançadas no mercado editorial brasileiro. E, paralelo a isso, cada vez mais editoras e lojas especializadas em histórias em quadrinhos surgem no Brasil, graças à demanda de consumo do público leitor ávido por essas histórias. Sendo assim, é natural, importante inclusive, que novos questionamentos sobre as obras sejam produzidos. Mesmo que ainda seja difícil definir o que são quadrinhos documentais, pois ideias e conceitos sobre essa classificação de gênero ainda estão surgindo, a intenção aqui é dar visibilidade para um debate que deve se amplificar à medida que os quadrinhos se permearem como produtos de destaque nos espaços destinados à venda de livros no Brasil. E, gradativamente, gerar mais reflexões sobre as histórias em quadrinhos no Brasil e suas características estéticas, políticas, econômicas e sociais. 

Valsa com Bashir: experiência, memória e guerra





















Maus
Dando continuidade à nossa série de gentis colaborações, RAIO LASER apresenta um texto muito especial. "Valsa com Bashir: experiência, memória e guerra" é um artigo do professor e pesquisador Pablo Gonçalo, publicado originalmente na revista portuguesa Doc Online, especializada em visões sobre o gênero do documentário. Pablo atualmente desenvolve tese de doutorado pela UFRJ e é um dos mais promissores pesquisadores brasileiros no campo do documentário cinematográfico. Ele produziu este texto pensando nas relações ambíguas entre uma certa invenção da memória e a constituição deste mesmo processo na elaboração dos fatos pelo evidenciamento da narrativa. Para isso, ele costurou uma relação necessária e midiática com extensa análise sobre não apenas o filme de animação Valsa com Bashir, o genial quase-doc israelense de Ari Folman, como também sua adaptação em quadrinhos (pelo mesmo Folman, com o ilustrador David Polonsky) e uma necessária ponte com o aspecto pós-memorialístico do clássico Maus, de Art Spiegelman. Boa leitura! (CIM)

Valsa com Bashir: experiência, memória e guerra

por Pablo Gonçalo

1.

Um documentário. Uma animação. Uma história em quadrinho. Uma narrativa autobiográfica. A história contada em Valsa com Bashir utiliza-se de diversos instrumentos e recursos para reconstruir e recuperar a memória do massacre de Sabra e Chatila durante a invasão do Líbano por Israel, em 1982. Mais do que um retrato de um importante acontecimento histórico, uma investigação ou uma narrativa expositiva, o autor Ariel Folman optou por expressar seu ponto de vista e sua própria experiência nesse acontecimento.

Ao apostar numa linguagem que mescla gêneros e cruza fronteiras, Valsa com Bashir oferece ao espectador uma imersão sui generis na experiência de uma guerra. Seja pelo filme, seja pela história em quadrinho, que acompanhou o lançamento do filme, a relação entre imagem e memória obtém uma força peculiar nessa história. Como se fossem indissociáveis, ambas brotam e ressurgem simultaneamente por meio da teia narrativa. Este artigo possui o objetivo de investigar como se alinham tais combinações entre experiência, narrativa autobiográfica, imagem e memória nos diversos suportes de expressão de Valsa com Bashir.


Na época da invasão do Líbano Ari Folman tinha dezenove anos e era um simples soldado lutando pelo lado de Israel. Não por acaso, Valsa com Bashir narra a guerra a partir da perspectiva desse soldado e de seus colegas de batalhão que, de certa forma, compartilharam da mesma experiência. Narra, todavia, com um detalhe: o ponto de partida da história é justamente um bloqueio de memória. Ariel Folman não se lembra da existência do massacre e tampouco possui reminiscências de certos episódios da guerra. Sob tal ótica, o autor estaria impossibilitado de narrar, já que toda narrativa pressupõe a reconstituição de fatos e sensações a partir da memória, da seleção e da expressão detalhada de certos acontecimentos. Numa boa solução narrativa, Folman considera seu lapso de memória como um ponto de partida para transforma-lo no mote, no tema da história e no objetivo de superação do autor-personagem. Dessa forma, Valsa com Bashir não é estritamente um relato autobiográfico, mas também uma investigação, uma procura pela tessitura de um fato histórico, uma experiência individual que evidencia a invenção da memória como uma construção psicológica e social.

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Assim como Marcel Proust faz no seu Em busca do tempo perdido, há uma estratégia que torna a narrativa um instrumento quase imprescindível para rememorar o que foi vivido. Mais do que lembrar, Proust almeja adentrar na esfera cosmológica, expressiva e simbólica da lembrança. Como se fosse um detetive dos acontecimentos e fatos vividos por ele mesmo. Dessa forma, com tal estratégia, ele embaralha acontecimentos vividos com acontecimentos lembrados e acaba por elevar ambos a uma nova potência expressiva: "Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois" (Walter Benjamin).
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Tal estratégia também encontra-se como um elemento estruturante da narrativa de Valsa com Bashir. Ao apostar numa estética da imersão, Ariel Folman compartilha sua memória, sua experiência e sua investigação narrativa. Dessa forma, ele induz o leitor-espectador a perceber aquelas memórias como se também fossem suas. Ao final do filme, ao terminarmos de ler o quadrinho, temos a sensação de encontrarmos uma memória involuntária (e uma imagem poética). Sensações similares às procuradas por Ari Folman.

Por outro lado, as escolhas pela animação e pela história em quadrinho não parecem casuais. Ambas propiciam, latentemente, uma reflexão sobre o papel da imagem de guerra num contexto hipermidiático e contemporâneo. Talvez por isso esse filme não teria o mesmo vigor imagético, estético e simbólico se utilizasse uma imagem tradicional de representação da "verdade". Primeiramente, o autor busca enaltecer nosso olhar para, ao final da sua narrativa, nos devolver a força dramática da imagem fotográfica. 

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Um trecho do filme Valsa com Bashir:

HQ em um quadro: primeira visão da suástica nazista, por Art Spiegelman





















"Foi a primeira vez que vi, com meus próprios olhos, a suástica" (Art Spiegelman, 1986): Por motivos de uma demanda de sala de aula (disciplina: "Literatura e Narrativas Modernas"), precisei reler MAUS, a obra máxima de Spiegelman, e este é sempre um ato de redescoberta, como diz Calvino: "Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira". O que me chamou atenção nesta releitura, especificamente para esta seção, entretanto, não foram os inúmeros requadros formidáveis desta HQ. Spiegelman obviamente elabora a trajetória de seu pai no holocausto (e a sua própria, na tentativa de compreender o pai no "presente") com alto grau de metalinguagem, várias camadas interessantes de narração e enunciação, fronteiras difusas e intrigantes entre a memória, a ficção e o documental - enfim, tudo aquilo que torna esta obra uma expressão máxima dos quadrinhos. 

Conforme eu dizia, desta vez um quadro mais sóbrio me chamou a atenção, exatamente porque se tratava de uma releitura. Como eu já sabia o que se passaria na visão brutal e realista do holocausto contada por Vladek Spiegelman, o requadro aberto na página 34 da edição da Cia.das Letras (que traz os dois volumes juntos) irrompeu-se sobre minha leitura monótona como um calafrio que chega sem aviso, antecipando o horror em flashfoward. Vladek está indo de trem à Tchecoslováquia para procurar tratamento psiquiátrico para sua jovem esposa Anja. Ao passar por uma cidadezinha, seu discurso quase técnico e referencial também nos pega de surpresa ao narrar, no requadro panorâmico que fecha a página, as seguintes legendas: "Era o começo de 1938, antes do guerra. No meio da cidade, tinha bandeira nazista. Foi a primeira vez que vi, com meus próprios olhos, a suástica".

Spiegelman (o filho) dá um certo ar cinematográfico ao quadro, posicionando-o como um plano subjetivo, tentando situar-nos também dentro do vagão, vendo a bandeira nazista tremulando fora da janela junto com os outros "ratos" judeus. O impacto é grande porque a suástica nazista é um símbolo que se tornou referência da gramática do século 20, e agrega uma torrente de significados para a compreensão do homem contemporâneo. Porém, o espanto que esse requadro carrega é de estranhamento e vaticínio. Vladek jamais vira o símbolo nazista ("como pode?", é a reação precipitada, meio irracional), e ele seria sua ruína, conforme as outras 262 páginas da história nos informarão. (CIM)

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Roubei e menti, mas descobri as graphic novels!



Aloha! Hoje estreamos nossa seção de colaborações externas a partir de um texto absolutamente simpático - uma crônica infame e autocrítica - de Leonardo Messias, que, além de ser amigo de longa data dos escribas da RAIO LASER, é também um nômade em escala global, tendo já morado em todos os continentes (menos África?) e acumulado experiências como produtor cultural, homem de mídias, professor de línguas, DJ, beatnick, filósofo eventual, desbravador de todos mundos. Sua crônica - do ponto de vista de fora desse mundo geek dos quadrinhos - nos ajuda a revalorizar o potencial cultural que nós (quadrinhófilos) temos em mãos. Caso você aí também queira colaborar com a RAIO LASER, aperta naquele botão ali em cima escrito "Contato", belezinha? (CIM)

por Leonardo Messias

Outro dia, enquanto passeava por Sydney, onde moro, a minha namorada me fez uma pergunta inesperada.

“Qual foi a coisa mais valiosa que você já roubou?”. Surpreso com o fato de alguém me botar contra a parede, indagando sobre meu passado enquanto me acusando de cleptômano, saí pela tangente, tropeçando pra mudar de assunto da melhor maneira possível, sem soar muitos alarmes. No entanto, o incidente grudou que nem chiclete na sola do sapato, e passei o resto da tarde a pensar sobre aquilo em segredo. 


A resposta na cabeça, clara como água: X-Men número 2!
E ainda esse "garras e traição" na legenda hein?
No dia seguinte, passando uma noite mal dormida, acordei sobressaltado com a resposta na cabeça, assim, clara como água:  “X-Men número 2"! Eu devia ter uns 9 ou 10 anos de idade e tinha ido passar a tarde no apartamento do meu amigo Felipe, brincando debaixo do bloco e tentando não ser assaltado pelos pivetes da quadra. Felipe, assim como eu, colecionava quadrinhos da Marvel e, muito comum para meninos daquela idade, mantínhamos uma certa competitividade com relação a quem conseguiria completar a coleção de X-Men primeiro.

Não me recordo por qual razão, mas perto da hora de ir embora, eu me vi sozinho no quarto dele, na frente do armário em que ele guardava todos os seus gibis. Dei uma bisbilhotada lá dentro e vi a X-Men número 2, brilhando como Eldorado, com a capa um pouco rasgada mas grudada com um durex que realçava seu aspecto cintilante.

Suando frio, com coração batendo forte e provido de uma irracionalidade incontrolável, peguei a revista e enfiei no meu short, segurando a barriga pra dentro pra não dar bandeira. Minutos depois, minha mãe chegou, me despedi do Felipe e voltei pra casa. Agora, pra completar a minha coleção, só faltava a X-Men número 3!

No geral, foi uma sensação muito estranha. Tinha chegado mais perto de ser o garoto mais feliz do bairro, mas tinha aquele peso no fundo do estômago. Sem entender direito, estava experimentando um dos primeiros sentimentos de culpa, questionando a minha moral e a minha fidelidade ao amigo.

Mas ei!, eu tinha um vício, e esse vício tinha me levado pro topo do mundo, com uns 300 exemplares pra cima de quadrinhos da Marvel, contando com quase todos os números de X-Men e Wolverine – que eram os meus preferidos – e coisas menos impressionantes e louváveis como X-Men e Homem-Aranha 2099, Hulk, entre outros.

A minha coleção continuou crescendo durante uns anos, e o pobre do Felipe não sabe – e continuará assim se não ler esse texto – que fim levou a sua X-Men número 2.  

Essa descoberta me dá raiva, na verdade.
Lá pros 14 anos, coincidindo com a chegada maciça de seios nas meninas da escola, além de uma recém estabelecida paixão por beque, pinga e rock, o meu até então passatempo predileto foi guardado na parte de trás de um armário, e ali ficou juntando poeira durante muitos anos. 

No fundo, achava que um dia meus quadrinhos seriam valiosíssimos e que, se não fosse visto pela sociedade em geral como um gênio visionário por haver guardado durante décadas aquele ouro em papel desenhado, ao menos seria recompensado com uma bela soma, em espécie, regalada por algum colecionador aficionado, sabido das coisas e ávido por raridades. 

Anos se passaram. Em 2000, fui morar no exterior, de onde voltava a cada dois anos, sempre para me deparar com as caixas de quadrinhos que, de acordo com os ímpetos organizacionais da minha mãe, vagavam à áreas cada vez mais obscuras e esquecidas da casa.

Sempre achava que pegaria alguns gibis pra dar uma folheada pra matar a saudade “daquele tempo”, mas a vontade brochava assim que os encontrava rodeados por pilhas de livros velhos, baratas mortas e cocô de rato conectados por teias de aranha tão cheias de poeira que suas moradoras tinham se mudado pra outros buracos mais ajeitados. 

Na segunda metade de 2010 voltei para o Brasil pra passar alguns meses na minha cidade natal, revendo amigos e família. Dessa vez os quadrinhos estavam numa caixa maior e mais nova, numa parte mais acessível da garagem. Vítima daquela nostalgia intermitente, abri a caixa e os reorganizei todos, folheando alguns que pareciam mais interessantes. No entanto, para minha surpresa, não havia nada ali que me provocasse qualquer emoção. Como algo tão imprescindível e indissociável de um período da minha vida não podia me comunicar mais nada? Eu havia roubado um amigo por causa daqueles gibis!

Tomado por uma súbita necessidade de lavagem psico-sentimental, resolvi vendê-los. Peguei o carro, fui no sebo e tentei vender a minha coleção inteira. Pensava em conseguir uns 500 contos mas, realisticamente, estava disposto a aceitar uns 100 se aquilo significasse não ter de ouvir a minha mãe reclamando mais uma vez do espaço que “aquela tralha” tava tomando na casa.

A gente num guarda mais esses gibi não. Isso aí num vali nada. Ninguém compra” disse o atendente, olhando desinteressadamente pra pilha encostada no balcão. Caralho... como que aquele pulha, mastigando aquele palito de dente velho e umedecido, podia ter a cara de me dizer uma porra dessas daquele jeito? 

Liguei pro meu broder expert em quadrinhos. O que ouvi vindo do outro lado da linha simplesmente confirmava o que aquele sem vida ignorante do balcão tinha cuspido na minha cara. Que merda! Como que pode?

Enfim... derrotado, voltei pra casa e resolvi deixar queto, considerando doar ou até mesmo botar fogo naquela parada, como ritual de passagem para uma nova fase da vida.

"Bróder expert em quadrinhos"
Semanas depois, fui à casa do meu broder expert em quadrinhos, tomar uma cerveja. Amigo das antigas, ele também colecionava. A diferença é que ele nunca parou de comprar quadrinhos. Seu apartamento – já pequeno, por sinal - é literalmente tomado pelos malditos. A primeira prova foi mover a pilha que estava no sofá pra que conseguisse me sentar. Depois tive de fazer um reconhecimento logisticamente complexo dos espaços restantes pra encontrar um lugar vazio pra poder encostar o meu copo de cerveja. Gibitesco aquele inferno.

“Gibis, não” ele retrucou. “Essas são graphic novels”. Tipo livro, mas com gráfico... livro gráfico. Entrando nesse mérito, discutimos o valor da arte e conteúdo geralmente maduro que as graphic novels tem que os gibis tradicionais, como mídia com história própria e com um público-alvo geralmente diverso, ignoram.

Fiquei intrigado. Obviamente sabia da existência de “quadrinhos” diferentes, conhecia o termo graphic novels, as tinha visto em prateleiras de lojas e casas de amigos, mas havia sempre ignorado o que realmente significavam ou por falta de grana ou preguiça ou desinteresse. Por sua recomendação, peguei emprestado Persépolis, de Marjane Satrapi, e Maus, de Art Spiegelman.

Noite após noite, li alguns capítulos de um ou de outro. Quando terminei de lê-los, caiu a ficha... “Cacete, obras de arte...”.  E que arte, diga-se de passagem.

São obras com linguagem própria. Ié?
São obras com uma linguagem própria, que transpõem de maneira extremamente eficaz emoções e ideias de grande ordem. Levam à reflexão e deixam uma marca singular na cabeça de quem as lê. Estranhamente, engajam o visual do cinema com o literário, abrindo o mundo numa bem-vinda mas dinâmica estática que confere à ‘plateia’ a possibilidade de parar, fechá-las e reabri-las horas, dias ou semanas depois para dar continuidade àquele prazer. Um storyboard aberto ao público.

Essa descoberta me dá raiva, na verdade. Nutrido da minha catarse, tinha acabado de me livrar daquele vício colecionista e estava pronto pra partir pra outra. Agora voltei à estaca zero. Bem, mas nem tanto... dando um breve fast-forward para a minha vida novamente fora do Brazza, tenho uma humilde mas potente coleção de seis títulos, e tudo indica que ela continuará a crescer em valor, pouco a pouco. Esse valor, no entanto, parece honesto, maduro, duradouro e, segundo o meu palpite de gênio visionário, não vai acabar nas caixas poeirentas da casa dos meus pais, para a eterna felicidade da minha mãe.