FIQ parte 3 – Intérprete de uma história negra do Brasil: entrevista com Marcelo D'Salete
/Por Márcio Jr e Marcos Maciel de Almeida
Parte 3 de nossa série de entrevistas com grandes personalidades presentes no FIQ 2018. Desta vez, com ninguém menos que Marcelo D’Salete. Não conhece ainda? Hmmm... Ainda dá tempo de correr contra o prejuízo.
Nascido em São Paulo, Marcelo D’Salete é um dos nomes de maior destaque no cenário quadrinístico brasileiro atual. Com forte pegada autoral e intenso engajamento em temas de cunho racial, os quadrinhos de Marcelo têm se destacado por abordar temas complexos da historiografia nacional – como a escravidão – pela perspectiva dos povos oprimidos. Dentre seus trabalhos de maior reconhecimento, incluem-se Cumbe (Veneta, 2014) e Angola Janga (Veneta, 2017). Em 2018, Cumbe foi indicada ao Prêmio Eisner (premiação máxima dos quadrinhos norte-americanos) na categoria melhor publicação estrangeira nos EUA. Tomara que ganhe. (MMA)
Raio Laser: Este é um grande momento do seu trabalho. Mas é aquele negócio: para fazer sucesso da noite para o dia leva pelo menos uns 15 anos... rs. Poderia traçar uma trajetória resumida de sua carreira?
Marcelo D’Salete: Eu comecei publicando quadrinhos, fazendo alguma coisa, no final dos anos 90 e começo de 2000. Meus primeiros trabalhos foram publicados na Quadreca (publicação acadêmica, surgida em 1977, sobre histórias em quadrinhos, publicada pela Editora-Laboratório Com-Arte, selo da Editora da Universidade de São Paulo) e na Front (publicação de quadrinhos contendo material exclusivamente nacional, lançada em 2001 pela Editora Via Lettera). Publiquei nuns 5 números da Front, de 2002 a 2006, e depois parti para fazer meus trabalhos solo. Primeiro veio Noite Luz (Via Lettera, 2008), depois Encruzilhada (Leya, 2011), Cumbe e Angola Janga. Nos primeiros trabalhos foi bem difícil, na verdade, de achar o público certo. Meus dois primeiros trabalhos eram para um público pertencente a uma galera que gostava muito de quadrinhos, que acabava conhecendo ali e tal. Tinha um retorno positivo de crítica, mas não financeiro. Depois, com meus dois trabalhos mais recentes, foi bem diferente. São quadrinhos que alcançaram um público para além do público leitor de quadrinhos – pessoas interessadas em outras áreas – e o público interessado especificamente em quadrinhos.
Raio Laser: Por que se expressar em quadrinhos?
Marcelo D’Salete: Cara, é uma mídia, um meio, que eu aprecio, que eu gosto demais, como leitor, não é? Tem a ver com a minha formação. Os quadrinhos fizeram parte da minha formação e são a mídia que eu escolhi – de certo modo – por que juntava duas coisas que eu gosto muito, que são desenho e narrativa. É criar histórias, não é? E, a partir disso, eu vi que havia ali coisas que eu não estava vendo – mas que apareciam em outras mídias, que apareciam na literatura, que apareciam na música, um pouco no cinema –, que era falar um pouco de cultura e história negra. E isso é uma coisa que eu não via nos quadrinhos. Então eu achei que era hora de focar o trabalho nessa área.
Raio Laser: Essa questão é muito forte no seu trabalho. É o que te motiva? Você está usando os quadrinhos como um meio para discutir e para pensar uma visão de mundo, uma reflexão sobre a sociedade, sobre a História do Brasil. Como é isso?
Marcelo D’Salete: Isso está muito ligado à minha formação. Eu acho que são vários caminhos ali que se bifurcam, que se misturam, mas não vejo isso como coisas muito separadas, sabe? Na verdade é uma confluência de fatores que acaba gerando um trabalho nessa linha.
Então, meu interesse é de contar boas histórias, de uma forma que eu gosto muito, que é privilegiando – de certo modo – a questão da imagem conduzindo boa parte da narrativa, o movimento com ação. Tudo isso fazendo referência a toda uma vivência fundamentada em grupos de discussão em torno do movimento negro, enfim, em toda uma galera que eu acho que está por trás deste trabalho.
Tudo que eu vivenciei nesses outros movimentos, de militância mesmo – além de outros grupos –, influencia de alguma forma isso que eu trago para esses quadrinhos, que acabam sendo a mistura de todas essas experiências. Mas focando fazer isso, trazer isso, de uma forma que seja interessante em quadrinhos, não é? Por que uma literatura sobre isso existe de fato, embora nem sempre reconhecida por grande parte da mídia. Eu acho que, de certo modo, esse novo veículo, utilizando os quadrinhos, é algo que acaba chamando a atenção para esse tipo de narrativa.
Raio Laser: Você falou de uma questão sua de uma militância. Você pensa seu quadrinho como uma espécie de militância? Quando você está trabalhando, existe um pensamento no sentido de que essa militância não se torne apenas panfletária?
Marcelo D’Salete: Olha, pensei bastante sobre isso no momento de execução de algumas histórias, como o Cumbe e o Angola Janga. Essa é minha trajetória. De forma alguma eu tiro isso da minha história pessoal. Mas ao mesmo tempo eu sabia que existem vários modos de você trazer isso para a narrativa. A minha intenção foi trazer isso do modo mais complexo que fosse possível, fazendo ali vários lados sobre o mesmo tema e sobre a história do Brasil.
Eu acho que meu trabalho foca um pouco em falar de uma perspectiva negra e periférica sobre a história do Brasil, mas não é um trabalho apenas com foco – de certo modo – numa história negra. Eu estou falando de uma história que ela é (a história) do Brasil.
E sem entender isso a gente não entende muito do que é – de fato – a história do Brasil. E essa história é feita a partir dessa presença negra, enfim, nas grandes capitais e estados, como Minas Gerais mesmo. Enfim, são histórias que merecem virar narrativas, para que sejam lembradas, para que possam servir como um outro ponto de referência para pensar na cultura e na identidade desse povo.
Raio Laser: O Marcelo Quintanilha, sempre que pode, menciona o seu trabalho. Ele, por exemplo, divulgou bastante o Cumbe na Europa. Isso me fez atentar para o fato de que a sua trajetória e a dele são muito similares. Ambos começaram de modo independente e foram – de certo modo – comendo pelas beiradas e, gradualmente, ganhando espaço e reconhecimento. Além disso, você tem como tema principal do seu trabalho a questão do negro, enquanto que o Quintanilha fala bastante dessa temática de visões sobre o Brasil, especialmente a questão identitária focando em regiões específicas do Brasil como Bahia, Rio de Janeiro e etc. Como você compararia a carreira de ambos e o fato de estarem – simultaneamente – alcançando reconhecimento (não sei se financeiro), mas definitivamente artístico?
Marcelo D’Salete: Não sei nem se dá para comparar. O Quintanilha tem uma trajetória já longa dentro dos quadrinhos. Eu aprendi muito fazendo quadrinhos vendo o trabalho do Quintanilha. Isso foi na década de 90 e eu tinha contato com a produção dele daquela época. Depois pude participar de alguns eventos junto com ele. Sempre foi um papo muito bom. Aprendi muito com ele, que é um artista excelente. O que eu acho que tem uma coisa interessante no trabalho do Quintanilha é que ele consegue fazer essa reflexão, em forma de narrativas, muito profunda sobre uma experiência brasileira. Tanto ele, quanto o André Diniz. Essa coisa de trazer elementos para a gente pensar a sociabilidade. Pensar em algo que é muito próximo da nossa realidade e trazer isso para o formato das histórias em quadrinhos.
Eu acho que isso está sendo reconhecido lá fora. Não é à toa que o trabalho (Tungstênio) dele ganhou em Angoulême e agora a gente tem o filme. Não é à toa que o trabalho do André Diniz está sendo publicado no leste europeu. São trabalhos que falam muito profundamente – que têm uma reflexão muito profunda, muito interessante – em termos de narrativas no formato das histórias em quadrinhos e são sobre o nosso local. Eu acho que tem gente lá fora que está interessada nisso. Interessada em conhecer essas histórias que utilizam o formato de uma forma inteligente, de uma forma interessante. Então, sobre o Quintanilha, o que eu posso dizer é que eu aprendi muito com ele. É um artista que eu admiro até hoje, que tem um traço inigualável nas HQs brasileiras atuais – e até em nível mundial, facilmente falando. E ele, além de ter um desenho incrível, tem um poder de narrativa – de síntese, de poder lidar com diálogos – muito afiado.
Tungstênio, de Marcelo Quintanilha
Raio Laser: Quais são suas influências nos quadrinhos?
Marcelo D’Salete: Cara, passa por muito quadrinista brasileiro, como o Quintanilha, como o Flávio Colin. Passa por Alberto Breccia, José Muñoz, artistas que trabalham muito bem com preto e branco, não é? Miguelanxo Prado também é um artista que eu lia muito na década de 90, apesar de só ter sido publicado um aqui naquela época, né? Aquele Mundo Cão (Abril, 1991), fora algumas coisas avulsas. Acho que esses foram trabalhos interessantes. Também admiro o Peter Kuper, que tem uma narrativa incrível, além de ter essa coisa da narrativa muda, trazendo uma história muito complexa, como por exemplo em O Sistema (Abril, 1998), utilizando só símbolos, só imagens, com muitas marcas. Foi uma coisa que me influenciou muito para fazer meus trabalhos mais contemporâneos, como o Noite Luz e o Encruzilhada. Eu quis trazer essa visualidade de São Paulo, a partir de pichação, grafite, marcas. E que isso fizesse parte da narrativa, dos personagens e dos ambientes. Ou seja, fazer coisas interessantes ali para poder contar essas histórias.
Gosto muito da narrativa de vários mangakás, como o Taiyo Matsumoto. Eu acho que ele é um dos principais quadrinistas vivos hoje. Com certeza. Tanto o Preto & Branco (Conrad, 2001) – posteriormente relançado como Tekkon Kinkreet (Devir, 2018) –, como outros vários quadrinhos dele que eu pude ter contato, são incríveis. Tem um quadrinho dele chamado Ping Pong (inédito no Brasil), que ele fala sobre esse esporte, ilustrando as partidas, as disputas, lá no Japão durante um pequeno campeonato. Você vai lendo aquilo e é tão bem feito narrativamente/visualmente que parece uma luta de samurais, sabe? É uma coisa incrível, absurda. E contando algo que você nunca imagina em quadrinhos. E ele consegue fazer isso, não é? Ele tem um domínio muito grande da narrativa. E então são esses caras, o Taiyo, o Katsuhiro Otomo...
Ping Pong de Taiyo Matsumoto
Mais recentemente gosto muito também do Hideo Yamamoto, o cara que fez Ichi The Killer (inédito no Brasil) e Homunculus (Panini, 2008-2014). Acho experiências incríveis de quadrinhos também. Porque, para mim, é muito importante trazer essa experiência de quadrinhos de uma forma visualmente instigante/interessante.
Não é mentira dizer que – no meu caso – os trabalhos mais impactantes de quadrinhos foram aquelas narrativas mudas, que muitas vezes eu lia uma, duas, três vezes para poder ficar decifrando.
E é uma coisa que eu adoro, quando um quadrinho me pede para ler duas vezes e você vê que foi tão instigante a primeira leitura que você quer fazer de novo para poder pegar todos os detalhes que estão ali. Eu acho que um bom trabalho faz isso. Pede que o leitor o veja uma segunda vez, de tão complexo que ele é.
Raio Laser: Seu dia a dia atualmente está completamente vinculado à produção de quadrinhos?
Marcelo D’Salete: Não, não... Quadrinhos é algo importante na minha vida atualmente. Até financeiramente falando, não é? É uma boa parte da minha renda, mas eu também vivo de meu salário como professor. Então minha rotina se divide um pouco entre a sala de aula e os quadrinhos.
Raio Laser: Já tem alguma nova obra em gestação aí?
Marcelo D’Salete: Ixe!!!! Tenho várias...rs. Preciso descansar. Mas to pensando aí... Antigamente eu tinha poucas ideias e muita vontade. Agora estou com várias ideias e pouco tempo para conseguir executar todas. Mas tenho aí uns três projetos engavetados, com pelo menos o esboço geral. Estou pegando cada um deles, pesquisando o tema, desenvolvendo aos poucos. Mais para a frente vai ter coisa nova aí.