Rapidinhas Raio Laser #08

A "Rapidinhas" (antiga "Quicky") é uma das seções mais queridas da Raio Laser. Como procedemos para fazer este aparentemente aleatório apanhado de publicações, zines, graphic novels e o que mais vier (nacionais) ser transformado numa fornada fresquinha de resenhas ao gosto (ou nem tanto) do freguês? Bem, a ideia é frequentar muitas feiras de publicações, treinar o olho para coisas interessantes e, principalmente, comprar este material. É muito importante frisar que, para se conhecer com intimidade a cena indie nacional, é preciso se tornar consumidor dela. Às vezes forçamos a barra (esse "Menina Infinito" de 2008 tá prestes a prescrever aqui, mas caiu no nosso colo!), mas faz parte da iconoclastia da Raio. Dito isso, seguem também os links para as outras sete Rapidinhas (para rememorar) (CIM):

Raio Laser's Comics' Quicky #01

Raio Laser's Comics' Quicky #02

Raio Laser's Comics' Quicky #03

Rapidinhas Raio Laser #04

Rapidinhas Raio Laser #05

Rapidinhas Raio Laser #06

Rapidinhas Raio Laser #07

E nosso endereço, caso você queira enviar seu material e aparecer aqui:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070

por Marcos Maciel de Almeida, Ciro I. Marcondes e Pedro Brandt

Menina Infinito – Fábio Lyra (Desiderata, 2008, 117 p.): Bebendo forte na bica (eu disse bica) de Daniel Clowes, Fábio Lyra produziu uma HQ memorável, construindo um universo particular em que habitam exemplares autênticos da fauna das grandes cidades. Centrado nas histórias de Mônica (não confundir com a dentuça) e sua turma, o gibi mostra, de forma bastante afiada, o cotidiano de jovens que alçaram temas como liberdade e música a um patamar prioritário em suas vidas. É aquele tipo de gente que se permite viver sem arroz, feijão e grana do aluguel, desde que sobre algum para gastar com bandas, vinis e agitos roqueiros. E no dia a dia dessa galera não falta, é claro, paquera e pegação. Essa habilidade em retratar – de modo bastante natural – diversos aspectos da juventude certamente não escapou ao olhar atento dos editores da Maurício de Sousa Produções. Não foi à toa, portanto, que Fábio foi escolhido para fazer uma história com a turma do Rolo, na revista MSP50.

Menina Infinito tem 3 histórias e 120 páginas de bons personagens, diálogos redondos e “causos” bizarramente reais. Tem também...ah, deixa pra lá. Nem sei porque estou dando esse cartaz para o Fábio Lyra. Esse espaço do Rapidinhas é destinado a publicações independentes, indisponíveis nas prateleiras das grandes lojas e livrarias virtuais. E este não é definitivamente o caso aqui, já que Menina Infinito foi lançada pela Editora Desiderata, posteriormente comprada pela Ediouro. E, além do mais, Fábio Lyra não precisa da minha promoção, afinal já está pronto para dominar o mundo.  PS: uma parte deste quadrinho teve uma outra leitura aqui na Raio Laser. (MMA)

Billy Jackson – Cau Gomez e Victor Mascarenhas (RV Cultura e Arte, 2013, 56 p.): Capaz de refletir sobre a cultura do consumo cultural e do star system americano, além de criar engajamento emocional com seu personagem principal, este Billy Jackson é um achado. O trabalho de ilustração desta HQ de Salvador (saiu em 2013 e é algo que resgatei do encalhe aqui), nas mãos do veterano Cau Gomez (em giz), é por si só deslumbrante: expressões, olhos, movimentos e caracterizações são lúgubres, assombradas, talvez inspiradas ainda no videoclipe de “Thriller”. Com a ajuda de Cau Gomez, fica mais fácil de se deixar impressionar pela história, tragicômica, de um menino negro, pobre e abandonado pela vida que encontra na personificação em tempo integral de Michael Jackson um tipo exagerado e delirante de sublimação das sucessivas humilhações de sua existência. Auxiliando toda essa mistura de expressionismo com neorrealismo está uma história consistente elaborada pelo escritor Victor Mascarenhas.

Billy Jackson procura entender os processos dos párias e dos outsiders em um mundo conflitivo que exclui e odeia a diferença. Como aqui a realidade é a perifa de Salvador, o humor rapidamente pende para o horror e a HQ junta bem a ambição artística com o alarde social. Porém, como tudo relacionado à indústria cultural, ficamos sem poder concluir se Michael foi a salvação ou a danação do protagonista. Billy Jackson ecoa os efeitos colaterais do capitalismo global na periferia do mundo (tipo Neymar ser um herói na China), em toda a sua ambiguidade. É um gibi de leitura rápida, em formato grande, que privilegia os arroubos da arte. Talvez o tema merecesse uma graphic mais volumosa e um pouco menos caricatural, mas foi uma tacada certeira de qualquer forma. (CIM)

Terry & Loo – O que contam os astros – Eduardo Calazans (Incoerente Coletivo, 2017, 64 p.): Coletânea de tirinhas produzidas por Eduardo Calazans, integrante do Incoerente Coletivo, grupo de jovens autores do Distrito Federal. Terry é a Terra, nosso planeta, e Loo é seu satélite, a Lua. Nas conversas entre os corpos celestes – que ganham feições bastante simpáticas no traço eficiente de Calazans – orbitam temas como relacionamentos, questões existenciais, ecologia, carreira profissional e, claro, astronomia – com citações de cultura pop aqui e ali. A intenção, como deixa claro o roteirista/desenhista no editorial, é “contar histórias que tocassem mais pessoas de uma forma mais ampla, mas reflexiva. E, acima de tudo, que meu primo de 7 anos pudesse ler e se interessar”. Algumas tirinhas não destoariam do que se publica em um jornal diário. Outras estão mais para o rodapé de livros escolares de ciência. Ainda que, no geral, as gags sejam um tanto previsíveis – e, sabemos, a surpresa ou como lidamos com o desfecho de algo previsivelmente previsível é determinante para o sucesso ou o fracasso de uma tirinha –, o material reunido aqui sugere que a produção de Terry & Loo está em evolução e demostra que, no conjunto, o autor tem fôlego para a realização contínua. Fica, no final das contas, aquela curiosidade de “o que virá depois?”. (PB)

É Doce Morrer no Mar – Animma de Mattos (Independente, 2016, 35 p.): É doce morrer no mar? Tenho minhas dúvidas, depois de quase ter afogado na praia alguns anos atrás. Se bem que, se fosse num gibi da Animma de Mattos, acho que o passamento seria mais agradável. Digo isso, porque o gibi dela, uma viagem onírica sobre a garota que se sente mais em casa no mar que em terra firme, transpira sutileza. Diferentemente de narrativas cartesianas, É doce morrer no mar é experiência sensorial, materializada pela leveza da aquarela monocromática – mas nunca monótona – do azul. Escolha editorial bastante apropriada, porque a autora soube brincar com os vários tons da cor da melancolia para fazer o leitor mergulhar na imensidão de matizes azulados presentes no oceano. Outro acerto foi o fluxo letárgico da narrativa, em ritmo hipnótico, como naqueles – infelizmente raros – dias que ficamos assistindo à maré bater preguiçosamente na praia.

A protagonista da história, dividida entre dois mundos, procura, sem muito sucesso, entender o vagalhão de emoções que ronda sua mente. E as inquietações da personagem parecem transpor as páginas do gibi, chegando a questionar os limites da linguagem escrita e falada. Esta limitação fica evidente diante das dificuldades da personagem no momento em que tenta transmitir sensações por meio de palavras que ainda não existem, e talvez nunca venham a existir. Embora merecesse tratamento gráfico mais caprichado, a HQ de Animma cativa pela delicadeza e surrealismo. (MMA)

Entardecer dos Mortos – Tiago Holsi (Céleblo Comics, 2015, 92 p.): Quem me apresentou aos quadrinhos do Tiago Holsi foi ninguém menos que a lenda viva do centro-oeste, Márcio Jr. O que não tenho certeza é se ele sabia que odeio narrativas de zumbi em geral. Provavelmente tudo que se tem para dizer a partir da mitologia zumbi foi dito em A Noite dos Mortos-Vivos. O resto é só reciclagem enfadonha. Mas vejam esse quadrinista goiano Tiago Holsi: ele escreve uma história de zumbis graciosa e otimista, como se este tema fosse apadrinhado pela Disney ou um filme dirigido por Stanley Donen. Tinha tudo para ser um produto derivativo e palha. Porém, Entardecer dos Mortos felizmente oferece mais que isso: é quadrinho de aventura e humor infanto-juvenil fazendo piadas mórbidas (mas bem light), bastante decente. Poderia ser um musical. E Tiago não está muito interessado em obedecer a quaisquer dogmas do gênero zumbi, o que conta a seu favor. Quer apenas usá-los como pessoas normais com detalhes “arrepiantes”, sempre dentro de uma ingenuidade que chega a tornar o quadrinho um pouco insosso. Lembra a “Turma do Arrepio”.

Porém, devo dizer que achei o protagonista Romeu Homero (dã) extremamente simpático e não me surpreenderia se Entardecer dos Mortos se tornasse uma animação estilo “Mágico de Oz encontra Tim Burton” nas mãos de algum mago das telas brasileiro. Tiago Holsi vai na esteira de outros quadrinistas brasileiros com traço afiado, mas de roteiros esquecíveis, como Gustavo Duarte e Guilherme de Sousa. Mas também ainda acho que Holsi guarda, encalacrado no seu inconsciente, um humor negro mais cabulosão que pode fazê-lo dar passos pra frente em sua evolução enquanto quadrinista. Entardecer é muito bem acabado, bem resolvido, tem potencial comercial e atinge várias idades. Não são poucos méritos (especialmente pra um produto de zumbi!), mas a gente sempre quer mais. (CIM)

Verônica – João B. Godoi (Independente, 2017, 18 p.): Quem nunca teve uma paixão virtual? Tecnicamente nunca tive, já que no meu tempo de solteiro não existia esse esquema de Tinder, Facebook e etc. Se bem que, confesso, tive algumas aventuras – em sua maioria grandes roubadas - via Disque-Amizade, espécie de chat room dos anos 80. Este serviço nada mais era que uma linha telefônica cruzada, para a qual as pessoas ligavam por motivos variados, mas principalmente zoação e pegação. Bem, seja por meio telefônico ou por fibra ótica, o fato é que essa ferramenta para conhecer pessoas sempre envolveu certo mistério e risco, especialmente porque nunca sabíamos – até hoje não sabemos com certeza – quem está do outro lado da linha. Este é o mote do gibi Verônica, de João B. Godoi.

A revista conta a história de Naldo – um estudante de letras louco para viver uma nova aventura – e seus grandes amigos, Pedro e Maya. Naldo tem uma paixão platônica por Maya, talvez mais por falta de opções que por nutrir um sentimento genuíno. Até que, num belo dia, Naldo conhece, via Tinder, Verônica, que rapidamente se torna sua namorada virtual. E o que poderia ser motivo de alegria vira transtorno quando a garota do título enrola Naldo para evitar o contato presencial. E aí reside o grande enigma. Quem é Verônica? É mulher? É homem? Ou apenas pegadinha?

O gibi de Godoi é bem caprichado. Dá para ver que ele não economizou esforços para lançar um produto bacana, dadas as limitações de um orçamento independente. O desenho tem pontos altos, nos corpos e cenários, e baixos, nos rostos e expressões faciais. Também há algumas falhas de revisão ortográfica, mas nada que comprometa. Talvez o grande senão do gibi seja o final bastante aberto. Gosto de desfechos que deixem margem para interpretação, mas senti falta de mais pistas para a resolução da identidade de Verônica. O negócio agora é torcer para que haja uma continuação, já que não saber o fim de uma história pode ser tão frustrante como ficar sem conhecer quem era aquela pessoa tão interessante do outro lado do telefone, seja ele conexão discada ou 4G. (MMA)

Rapidíssimas (zines): O Cão e a Mão do Coração – Ranulfo Medeiros e Juliano Henrique (Seres Soros, 2017, 16 p.): Há boa intenção aqui. Narrativa muda, com desdobramentos interessantes, sobre um cão que aparentemente absorve algo da personalidade das pessoas quando lambe suas feridas. Porém, os desenhos em computador, muito amadores, são um tanto desagradáveis, e o domínio da narrativa um tanto primário. Fica difícil de entender e de engolir. (CIM)

Bear Trap e FoxTrot – A.C. Foxten (Independente, 2014 e 2015, 18 p.): A quadrinista Alena Foxten voltou a Brasília após passar vários anos no Japão. Lá ela aprimorou sua técnica e intimidade com o mangá de terror e trouxe de volta dois zines interessantes no gênero. É engraçado que estilo do traço de Foxten é leve, amistoso e bem pensado narrativamente (Bear Trap é também muda), mas as histórias são assustadoras! Paradoxos do mangá, que aparece aqui com bastante autenticidade. As duas histórias são boas (uma bizarra lenda russa e outra sobre licantropia), e padecem do mesmo problema: traço ainda imperfeito, com domínio um tanto “frio” de movimentos e expressões. Em FoxTrot, os diálogos são didáticos demais. Mesmo assim, apesar de algo afetadas, são histórias implacáveis e com finais devastadores. Prova de que essa autora está aí para chegar em algum lugar. (CIM)

Rapidinhas Raio Laser #07

Dizem que o quadrinho brasileiro nunca viveu momento tão bom. Pode ser que sim, pelo menos no quesito variedade. Afinal, tem de tudo um pouco. E, pasmem, encontrar muitas opções de gibis nacionais virou lugar comum, graças à disseminação de “livrarias Shopping Center” e mega lojas virtuais. Mas essa maior proliferação dos quadrinhos made in Brazil não ocorreu da noite pro dia. Medalhões da HQ nacional tiveram de comer muito arroz com feijão nas chamadas publicações independentes para conseguir seu lugar ao sol. E se a variedade dá as cartas nos gibis publicados por editoras de pequeno, médio e até grande porte, como Cia das Letras, essa diversidade representa apenas uma gota no oceano na cena de publicações indie. Basta dar uma volta em qualquer feira de HQ que se preze para perceber que a galera está lançando gibi de tudo quanto é tipo. E os gibis e zines analisados nesta nova edição do Rapidinhas não são exceção. Espere encontrar por aqui uma gama de narrativas sobre paixões não correspondidas, underground musical e pancadaria urbana gratuita, entre outras drogas. Como vaticinou James Kochalka em seu The Horrible Truth About Comics, o negócio é se expressar, e os manos e as minas arregaçaram as mangas e colocaram o lápis para trabalhar. Mais que isso: deixaram-se arrebatar pela liberdade que o formato DIY permite. O resultado foi – e continuará sendo – visceral.

Esta seleção do material independente que recebemos/compramos é uma excelente oportunidade de conhecer um pouco dos monstros que habitam o inconsciente coletivo de quadrinistas profissionais e amadores que escolheram a nona arte dar seu recado. As razões pelas quais fizeram isso são variadas. Sede de fama, desejo de exorcizar demônios pessoais, falta do que fazer e etc. Não importa. O que vale é que esses caras tiveram coragem de dar a cara a tapa. Sorte nossa.

Gostaria de dizer que a escolha do material resenhado aqui segue critérios altamente rigorosos, mas estaria mentindo. A verdade é que a equipe do Raio Laser mete a mão na pilha de publicações recebidas e separa aquilo que parece mais apetitoso. Às vezes rolam algumas indigestões, mas faz parte. Ok, podem criticar nossos métodos, mas eles são democráticos. Nesta semana e na próxima (tivemos de dividir esta por dois!), vamos nos debruçar sobre gibis da Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Goiás, Fortaleza e Deus sabe onde. Tem coisa nova e coisa velha. Tem gibi gourmet e tem zine com página xerocada. Lemos todos com carinho. (MMA)

Caso queira aparecer por aqui, envie seu material para:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070.

por Marcos Maciel de Almeida, Márcio Jr. e Ciro I. Marcondes

Seres Urbanos: Antologia do Quadrinho Underground Cearense – Vários (SEBO, 2015, 100 p.): Essa aqui estávamos devendo há um tempo, mas valeu a espera. O Márcio Jr já havia dado um pitaco aqui. Para quem não sabe, “Seres Urbanos” é o nome de um coletivo de zineiros de Fortaleza dos anos 90. Foram oito anos de produções praticamente ininterruptas e esta antologia reúne material representativo de dezenas de zines, exposições, colunas em jornais e outras manifestações em que eles estiveram metidos. A publicação foi financiada pela Secretaria de Cultura do Governo do Ceará, que fez seu papel para preservar a atualidade desta incrível coleção sobre os hábitos, ansiedades, gostos (o zeitgeist, enfim) de uma cultura alternativa nos anos 90.

Esses sujeitos eram zineiros roots, sempre na correria para publicar um volume desproporcional de coisas que vendiam a preço de custo, distribuíam na entrada de shows, enviavam pelo correio, movimentavam a cena da cidade. A antologia ainda vem com um rico texto estilo “reportagem por entrevistas” nas páginas finais, direcionando influências e o momento histórico de cada autor e cada gênero abordado nos zines. O principal quadrinista a publicar era Weaver Lima, um cara ligado também à música alternativa de Fortaleza – bandas como Velouria e Second Come... alguém se lembra dessas porras? Até mesmo a nossa saudosa Low Dream está em grande estima nas páginas de Seres Urbanos - , com influência da Revista Animal, Love and Rockets, Angeli, etc. Além de ser um ilustrador carismático, Weaver era bom em escrever ótimas histórias de típicas festinhas e showzinhos de rock dos 90’s Brasil afora, com a tradicional caracterização blasé e decadentista da juventude underground da época (quando era chique fazer bandas alternativas que cantavam em inglês, tipo Pin Ups). Virou um prestigiado artista plástico.

Fora Weaver, a antologia apresenta um sortidão de gêneros zinescos que marcaram época (arte postal, colagens, charges, cartazes) e também da produção dos outros caras. Lupin, por exemplo, faz um estilo “hebdomadaire francês”, inserindo citações de poetas e filósofos em quadrinhos de deboche. O estilo realista, com diálogos e situações das ruas de Fortaleza, de Mychel TC, é uma das melhores contribuições. Leitura urbana brazuca infalível, pra Quintanilha nenhum botar defeito. Em geral esta produção não fica atrás do que era apresentado por outros estados, e dá amostra do que foi o trampo underground brasileiro entre os anos 80 e 90, especialmente nas febris manufaturas desses zines, que eram a internet da época, e que não deixam a desejar em relação ao que se faz hoje na web, tanto em qualidade quanto em quantidade. Uma parte enorme deste material se perdeu para sempre.

Seres Urbanos tem sabor udi-grudi, traz à tona os esnobes anos 90, discute com propriedade as agruras e angústias desta época, que não são tão diferentes das de hoje. Apesar do humor caústico, esses quadrinhos se pautavam na alienação da juventude, no vazio existencial, em preocupações como o caos urbano e o aquecimento global (na época, “efeito estufa”). Porém, não eram histéricos, os zines procuravam sentido em meio ao caos e não eram escorados em ativismo de fachada. O olhar desamparado e misterioso do personagem da capa coloca margem para a diferença entre uma cultura de “teenage angst” pré-internet e o zine-de-luxo-pra-designer que se faz hoje. Aproveito então a oportunidade para lembrar que em Brasília também temos nossa versão do “zine responsa com a cabeça enfiada na baixaria e rock and roll”: Tupanzine, o fanzine mais antigo em atividade no DF. (CIM)

O Ateneu, Crônica de SaudadesMazô (Independente, 2014, 23 p.): Em tom altamente pessoal, Mazô narra parte de suas memórias afetivas escolares, passadas no tradicionalíssimo Colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro. Vencedor do prêmio de HQ independente Dente de ouro de 2016, o gibi convida o leitor a viajar pelo Ateneu particular de Mazô. Contendo colagens de fotos, bilhetes e outros objetos pessoais de sua vida escolar, a autora constrói espécie de diário público de sua vida privada. Mas não espere encontrar fofocas quentes ou detalhes sórdidos. Mazô faz uso de uma linguagem – narrativa e visual – que tanto mostra quanto esconde. Os detalhes estão lá, e apenas poucos enturmados irão compreender o real significado das imagens. Não que seja o caso de gibi feito apenas para aqueles da panelinha, mas sim para indicar que algumas lembranças só dizem respeito àqueles que as viveram.

O traço de Mazô é bastante experimental e ela brinca bastante com esboços. São ilustrações aparentemente simples, mas que se mostram rebuscadas, especialmente quando se analisa a riqueza das expressões faciais dos personagens. Sabe aquele esquema do “menos é mais”? É bem por aí. Afinal, artistas que se propõem a serem econômicos no desenho têm de se ater ao que realmente importa. Mantendo essa pegada parcimoniosa, Mazô capricha na composição de cores, que é feita primordialmente de bege escuro, preto e branco. Aliás, as imagens brancas são todas pintadas com um efeito que lembra giz de quadro negro, o que foi uma grande sacada.

Ao decidir revelar um pouco de seu passado estudantil, Mazô mostra que as experiências dos jovens são universais, por mais particulares que possam parecer. (MMA)

5/5 Working Class Heroes – Dalts, Go Carvalho e Magenta King (Bimbo Groovy, 2013, 70 p.): Lembra de Changeman, Flashman e assemelhados? Lembra aquele esquema de 5 jovens com uniformes parecidos, que se juntam para sentar o braço em monstros mais bizarros que perigosos? Então, esta é a pegada aqui. Só que, desta vez, os criadores resolveram levar a coisa a sério. Ou quase. Embora a intenção seja mostrar como seria a realidade de um grupo desse tipo no mundo real, os personagens principais usam uniformes que remetem a bichinhos fofinhos, como que para demonstrar o ridículo inerente a esse universo. No gibi, conhecemos um pouco da superequipe 5/5, grupo de heróis-celebridade que jurou proteger o mundo em troca de fama e contratos milionários. São três histórias que abordam diferentes aspectos da equipe.

Na primeira, “O Novato”, de Dalts, somos apresentados a um cidadão que consegue obter o traje de um dos 5/5. É uma história surpreendente, tanto pela qualidade do roteiro quanto pela arte. Dalts revela um talento impressionante, pelo grande domínio do ritmo da narrativa e pela plasticidade e estilo quase sujos que privilegiam cenas de ação vertiginosas.  Dalts parece gritar: “Ei, mercado americano, olhe para mim, já estou pronto”. E é realmente uma pena que ele ainda não tenha tomado os comics de assalto, já que é um quadrinista de responsa. Na segunda – e mais fraca história do gibi – “The Man Machine”, de Go Carvalho, conhecemos os funcionários de apoio da 5/5, numa história metida a engraçadinha, mas que só consegue fazer passar raiva. Finalmente, em “Os 5 Novatos”, Magenta King chega chutando bundas num conto em que 5 aspirantes a integrantes do 5/5 participam de um reality show que testa suas habilidades no campo de batalha. Magenta, assim como Dalts, tem uma arte de cair o queixo, e usa retícula, sombreamento e hachuras numa combinação original e desconcertante. Se Dalts lembra Travis Charest em começo de carreira, Magenta emula a visceralidade de Tom Raney.

O melhor elogio que posso dar a 5/5 é dizer que Dalts e Magenta souberam utilizar o formato independente para despirocar geral. Sem amarras ou censura, esses caras deixaram seus demônios correrem pelados na montanha e o resultado foi duca. Mesmo explorando gênero aparentemente esgotado como o dos supergrupos japoneses, os dois mostraram que, quando se tem lenha para queimar, até a centelha decadente dos seriados de grupo pode voltar a fumegar. (MMA)

Mata-me, ó Deus – Marcos Guerra, Marcos Garcia e Carlos Alberto (K-ótica, 2015, 36 p.): a boa capa de Mata-me, ó Deus promete uma HQ de alta potência onírico-lisérgica.  A promessa, infelizmente, não se cumpre. Estão lá as quase obrigatórias referências a Alejandro Jodorowsky, mas sem a atmosfera violenta e insólita típica do mago chileno. O roteiro é simples e auto-explicativo, sobrando pouca margem de manobra para o leitor participar mais ativamente da construção da narrativa – algo típico do gênero em questão. Restaria então à arte de Marcos Garcia (veterano do fanzinato nacional, responsável pelo antológico Acunha, publicado nos anos 1980) e Carlos Alberto promover as epifanias metafísicas desejadas. Não é o que acontece. Apesar dos desenhos bonitos (salta aos olhos a influência do seminal Watson Portela), a estrutura gráfica está muito mais próxima de um comic book pré-Image do que das BDs europeias.

Mata-me, ó Deus pode encontrar ressonância junto a públicos ligados ao consumo de plantas de poder. Todavia, para um leitor exclusivamente em busca de uma boa HQ, a magia não acontece. (E confesso ter ficado bastante impressionado com a depilação da personagem feminina, uma das poucas sobreviventes de um mundo devastado.) (MJR)

CeruleanCatharina Baltar (Independente, 2016, 80 p.): Fiquei “enamorado” desse quadrinho da Catharina Baltar (daqui de Brasília) nas duas últimas feiras Dente e resolvi tomar coragem e adquirir um volume da última vez. O que me atraiu: a excelente paleta de cores azul-lilás-turquesa (“cerulean”) pintada em aquarelas. Não importa muito que Cerulean seja um quadrinho indie tolinho, misturado com mangá shoujo, sobre uma sereia que fica encantada com um lifestyle millenial. Um mundo geek de redes sociais, board games e mangás. Não me importa que, das 80 páginas do livro, apenas 40 comportem a história (sendo o resto, extras). Importa mesmo é que, apesar de ter um tom adolescente, Cerulean consegue discutir a identidade e a solidão do jovem pós-moderno com alguma propriedade. Isso por si só a transforma em uma boa HQ juvenil. A sereia do título, afinal de contas, decide adotar o excêntrico mundo dos otakus e ser para sempre uma forasteira, algo que reflete um pouco a realidade dos otakus reais. Aos poucos, a despeito da antipatia inicial, fui me entregando ao propósito e à mentalidade deste quadrinho: como qualquer mangá comercial, ele tem algo de inventivo e excitante, e ao mesmo tempo algo de descartável. Se você tem dúvidas quanto à história, no entanto, pode ficar apenas com a arte extremamente carismática, com um tratamento de cores raro no quadrinho brasileiro contemporâneo. Sem dúvida uma aquisição significativa para o cenário de quadrinhos da capital. (CIM)

Encruzilhada – Marcelo d’Salete (Barba Negra, 2011, 120 p.): Este Encruzilhada é meu primeiro contato com o trabalho do quadrinista d’Salete. Sim, anos atrasado, e por isso mesmo quis começar com um trabalho fundacional da sua obra, algo que definiu seu estilo e imaginário. Paulistano, o autor se vale das contradições brutais da grande metrópole para expor, assim mesmo metendo o dedo na ferida, a desigualdade social e racial em diversos tipos de interações tipicamente brasileiras. Mas se engana quem pensa que isso vem assim, despejado ou descuidado, como se fosse um mero panfleto. Primeiro, o discurso possui muitas nuances e sutilezas, e o quadrinista se vale de diversos tipos de transições entre os quadros para construir mais que simplesmente uma história, mas também ambientação, odor, temperatura, aspecto. Em segundo lugar, como ele bem evidencia tirando sarro de Cidade de Deus, a violência está (muito) presente em suas histórias, mas não é o foco de sua análise. Não se trata de cosmética aqui. Sua análise social atinge aspectos psicológicos, econômicos e afetivos.

Além disso, d’Salete é também um esteta. Encruzilhada são contos curtos que vislumbram situações de ostensivo constrangimento à população negra. Um menor infrator é espancado pela polícia. Uma vida é tirada às custas de um celular que roda de mão em mão. Um DVD pirata é roubado e um homem preso por engano. A violência, porém, está nos detalhes perniciosos das relações. Neste ambiente, seu assassino pode ser seu primo, e o motivo um objeto de consumo descartável. D’Salete examina estas situações com elegante esquadrinhamento das cenas. São comuns citações ao cinema e a baluartes do capitalismo. O teor do discurso aparece muito em marcações discretas, grafites, paisagens urbanas.

O volume de informações, inclusive, é grande e por vezes as narrativas ficam embaçadas, confusas. D’Salete fragmenta os corpos, pensa planos e páginas oblíquas, efetivamente erige as cenas pelo avesso da narrativa tradicional.Encruzilhada é obra de mestre, que demonstra profundo entendimento do ato de extrair sentido das histórias, deixando arte, pensamento e discurso todos em evidência. Pequeno clássico recente da nossa historiografia quadrinística, ao lado de nomes como Rafael Coutinho e Marcello Quintanilha, que primam por abordagens parecidas. Li a tempo, ainda bem! O quadrinho foi relançado pela Veneta em 2016. (CIM)

Rapidíssimas (zines):    

Apnéia – Ina (Independente, 2017, 8 p.): Este é um lindo trabalho gráfico (delicado, poético, silencioso) que evidencia o potencial dos quadrinhos como pura sinestesia, como arte visual que mira os sentidos, que dissocia a narrativa de uma função meramente denotativa. Trata-se da quadrinização, em singular lápis azul, de um homem mergulhando com uma baleia. Leva-se um minuto para ler. Reverbera-se na cabeça por muito mais tempo. (CIM)

Compartilhe Comigo e Hey! Look Around! – Renata Rinaldi (Tinta de Raposa, 2016 e 2017, 10 p. e 12 p.) – Há algum tempo que devemos uma apreciação melhor do trabalho da brasiliense Renata Rinaldi, que vem pondo suas patas de raposa também em cenário nacional (Pagu Comics; concorreu ao HQMix, etc.). Estes dois zines são boa amostra do potencial do seu trabalho. As ilustrações, também em estilo shoujo, só melhoram: ela dosa bem influências de ocidente e oriente e, assim como a resenha de cima, faz narrativas mudas (que são puro quadrinhos). 

Compartilhe Comigo é muito bobinho, mas tem apelo para tweens e atrai pela bela capa laminada. Hey! Look Around!, por outro lado, já pode ser levada mais a sério. É uma linda (e bem escrita) fábula sobre desapego, amizade e espiritualidade. Isso tudo em dez páginas cheias de bons recursos em HQ, o que nos faz pensar que a Renata está preparando seu melhor trabalho. Chega logo! (CIM)

Metendo a mão na lixeira: bons gibis de super-herói em pleno século 21

Supers... Gibi de super-herói é uma desgraça. Queima o filme de todo mundo. Queima o filme de quem faz porque é uma indústria atolada em fórmulas. Queima o filme de quem lê porque trata de um universo (absolutamente púbere e masculino) maniqueísta, primário e ridículo, onde 95% dos personagens não sabe a ordem das roupas a serem vestidas. Um universo de mentirinha. Coisa de criança – por mais que tentemos provar o contrário. Por fim, queima o filme das próprias histórias em quadrinhos enquanto linguagem elaborada e válida (em suma, enquanto veículo de criação artística). Gibi de super-herói é uma desgraça... mas é legal demais!

Gibi de super-herói é legal demais porque é criatividade no talo. A vida é mais difícil quando você tem que enfrentar o status quo, posições pré-concebidas e pré-estabelecidas. Nada é mais pré-concebido e pré-estabelecido que um gibi de super-herói – mesmo quando é pra lá de radical. Poucas coisas no mundo podem ser mais conservadoras. Mas alguns poucos criadores dão um jeito – não sei como – de enfiar um megaton de inventividade bizarra nessa camisa-de-força.

É uma pena sem tamanho percebermos que as últimas décadas assistiram a indústria dos comics abrir mão da essência deste gênero. Trocando em miúdos, vieram com o papo furado de fazer os super-heróis “mais adultos e realistas”. Se é para ser adulto e realista, pra que super-herói? O resultado são os gibis horrorosos, guiados por estratégias de marketing bisonhas, sempre colocando a tal indústria à beira da falência. Tem gente que engole a isca. Não o leitor Raio Laser.

Tapamos o nariz e mergulhamos no esgoto quadrinístico para trazer à tona algumas das HQs de marombados usando collant que ainda valem a pena em pleno século XXI. Não tenha dúvida: são exceções que confirmam a regra. É um trabalho sujo. Mas alguém tem que fazê-lo. (MJR)

por Márcio Jr., Lima Neto, Marcos Maciel de Almeida e Ciro I. Marcondes

Gavião indie

Gavião Arqueiro – Minha Vida Como Uma Arma

(Matt Fraction, David Aja, Javier Punido – Marvel/Panini, 2015)

Talvez este quadrinho aqui seja uma trapaça. Esta coluna é para falar de bons gibis de super-heróis “contemporâneos” que tenham alguma conexão com a tradição neste gênero. Vejam bem: esta série foi lançada em 2012, na esteira do sucesso do filme dos Vingadores, mas o resultado foi toda uma desarticulação da linguagem e temas mais mainstream ligados aos super-heróis. O time dos pesos-pesados Matt Fraction e David Aja resolveu apostar em narrativas extremamente casuais (por exemplo salvar um cachorro) e um arrojo hiperdetalhista nas empaginações (estilo Miller e Mazzucchelli, chegando até a uma influência de Chris Ware) para tornar as histórias um tipo totalmente inovador de imersão em quadrinhos. Isso parece um quadrinho “tradicional e divertido” de super-herói? Claro que não, mas, diante da escassez de qualidade nessa terra de ninguém estéril e apodrecida, a posposta de Fraction e Aja apareceu com o frescor de um Bordeaux Saint-Estèphe da lendária safra de 2000. Ganhou Eisner e o escambau.

A coisa é muito simples: Fraction transforma Clint Barton, o Gavião, num cara comum, ressaltando o fato de que ele faz parte dos Vingadores, mas não tem nenhum super poder. De certa maneira, a natureza totalmente mundana de Barton torna sua índole também meio mundana. Ele vira tipo um personagem de sitcom. Come churrasco, se arrebenta, trepa. Os diálogos têm lá sua porção irritante: já repararam que os americanos entre 25-35 anos falam sempre 100% em chave de ironia? Basta pensar tudo ao contrário para entender o que querem dizer de verdade. Esta série do Gavião Arqueiro tem um pouco esta vibe. Diálogos rasteiros e “bem sacados” que na verdade são signo desta babaquice contemporânea.

Sim, Gavião Arqueiro faz parte deste descomunal esforço de pelo menos uns 20 anos pra cá em deixar os super-heróis “próximos da realidade”, o que os afastou de qualquer encanto que tivessem e até da sua própria razão de existir. Mais do que este apelo até fisicamente mais “real” – a série começa com Clint hospitalizado porque caiu quando saltava de um prédio para o outro, como super-heróis, de maneira inverossímil, geralmente fazem –, o que torna esta série interessante é mesmo a qualidade plástica de arte de Aja, somada aos devaneios narrativos propostos por Fraction.

É verdade que li apenas o primeiro encadernado da Panini (Minha vida como uma arma) A editora já lançou mais um, Pequenos acertos, que reúne as edições 6 a 11 da publicação gringa, e outro somente com a Gaviã Arqueira, sidekick mais recente do herói, em voo (sic) solo (Gaviã arqueira: vingadora da costa oeste). A série americana vai até o número 22 e encerrou em 2015.

Portanto, mas do que uma HQ particularmente interessante por seus temas e tratamentos no roteiro, Minha vida como uma arma é uma bela peça de design em quadrinhos. Especialmente, é claro, nas três primeiras histórias, ilustradas por Aja (as outras duas têm o lápis já não tão sofisticado de Javier Punido), que compra totalmente a pala de Fraction. Os requadros aqui alternam funções estéticas (microrrequadros; megarrequadros; metarrequeadros) e decorativas, como se organizar uma HQ fosse posicionar um jarro e um abajour, combinar com telas de pintores, fazer feng shui, etc. Aja ainda trabalha com paletas de cores em variações próximas (roxo, bege, pastel), criando temperaturas e aclimatações sensacionais para as histórias. No final das contas, este é um trabalho de arte bem pensado, bem conceituado, eximiamente bem executado, que nos coloca a par dos movimentos dos heróis, suas dores, sua humanidade latente. Não é supers “clássico”, é claro, mas, a este altura esquizofrenizante da pós-modernidade, quem realmente se importa? (CIM)

Velho Wolvie: honestidade e porradaria

Wolverine: O Velho Logan

(Mark Millar e Steve McNiven - Marvel/Salvat, 2014)

Mark Millar é, possivelmente, o melhor roteirista de sua geração. Não que possua a genialidade de Moore, Miller, Gaiman e quetais, mas com certeza está entre a nata do que o século XXI nos ofereceu até o momento – em termos de mainstream comic books, claro. Millar possui estilo, storytelling fluido e senso de humor. Não é pouco, ainda mais se comparado ao grosso da produção super-heroística contemporânea. Nas gigantes Marvel e DC, o nome do escocês sempre foi garantia de quadrinho decente. E quando está envolvido em projetos autorais (seu egocêntrico Millarworld), a coisa melhora.

Wolverine: O Velho Logan – a essa altura já alçado à categoria de cânone do mutante canadense, pautando inclusive um blockbuster cinematográfico – é uma bela amostra de seu trabalho.

A atual crise dos quadrinhos de super-herói é mais evidente que o golpe político em curso no Brasil. Algumas de suas raízes mais profundas podem ser encontradas nos anos 1990, quando estratégias de marketing substituíram a criatividade nos gibis norte-americanos. Especulação desenfreada, autores inflacionados e público envelhecido e acrítico foram a tônica do período, cristalizada no surgimento da Image Comics. Não foram tempos bonitos.

Capas metalizadas, cores (a)berrantes, splashpages em cima de splashpages – turbinadas por arte-

final matreira com infinitas hachuras-engana-nerd – anfetaminaram o mercado, numa paródia bizarra do sistema das artes. No lugar de tramas bem escritas, fiapos de roteiro e violência explícita vendida como conteúdo “adulto”. A bolha, logicamente, explodiu. E seus efeitos ainda podem ser sentidos hoje em dia, em todo gibi picareta pra leitor mocorongo colecionar. A contradição em O Velho Logan é justamente parecer um gibi da Image. Só que bom.

Futuro. Os vilões venceram. Os Estados Unidos estão destruídos e loteados. O Rei do Crime manda num pedaço, Dr. Destino em outro e por aí vai. Há 50 anos Wolverine não coloca as garrinhas de fora. Vive como fazendeiro com a esposa e dois filhos numa área dominada pelo Hulk e seus descendentes canibais. Está devendo o aluguel e isso é inadmissível para a prole esverdeada. Encara então atravessar a América como motorista de um Gavião Arqueiro cego, no intuito de entregar uma encomenda secreta do outro lado do país, buscando manter intacto seu pacto de não-violência – e garantir os trocados que manterão suas terras e sua família.

Este é o plot de O Velho Logan. Simples, mas honesto. O que interessa aqui é a maneira eficiente e perspicaz com que Millar desenvolve a narrativa. Mais do que em tramas e subtramas, o roteirista investe nos personagens, na ambientação pós-apocalíptica à la Mad Max, na pegada road movie, no humor negro e em violência. Muita violência.

Se nos gibis estricnados da Image a violência tinha fim em si mesma, tentando forjar um recheio acima do escopo infanto-juvenil, em Logan o que temos é uma violência estilizada, tal e qual um filme de Tarantino ou Sam Peckimpah. Para ser bem-sucedido na empreitada, Millar contou com o melhor dos escudeiros, o desenhista canadense Steve McNiven.

McNiven é aparentemente – e só aparentemente – um descendente gráfico da Image. Seu desenho possui arte-final detalhadíssima, representando cada pelo do braço, fio de cabelo do cocuruto e costura das calças – bem ao gosto realista dos dias atuais. Todavia, faz isso com elegância europeia e sem jamais abdicar do ritmo narrativo e da linguagem quadrinística propriamente dita. Os desenhos são cabulosos, mas estão, antes de mais nada, a serviço da ação. A inventividade com que representa a violência, a genuinidade das expressões dos personagens, bem como a clareza com que oferece cada cena, colocam o desenhista num patamar muito superior à maioria de seus pares. Mesmo a cor, deliberadamente photshopada, joga a favor da imagem, sem jamais competir com o traço a nanquim. Coisa rara.

Com extensa e bem-sucedida lista de serviços prestados à Marvel, Mark Millar usa como poucos o rico panteão da editora. A justificativa apresentada para Wolverine ter se retirado da ativa por meio século é surpreendente. Assim como também o é o modo com que o baixinho faz seu acerto de contas com o Hulk – mostrando ser possível apresentar novas e interessantes perspectivas para um dos antagonismos mais históricos e legais dos comics. O final da HQ traz ainda uma outra referência, desta vez fora da seara dos supers: o Lobo Solitário de Kazuo Koike e Goseki Kojima. Cool.

Wolverine: O Velho Logan é claramente uma HQ ambientada fora da “cronologia oficial” do Universo Marvel. Aquele papo de realidade alternativa, mundo paralelo ou coisa do tipo. Em uma indústria que produz reboots semestrais de seus personagens e que não tem o menor respeito pela tradição, só mesmo um imbecil para acreditar em “cronologia oficial”. Portanto, não tenha dúvidas: o Wolverine de Millar e McNiven é uma das versões definitivas do herói. E das mais divertidas. (MJR)

Overdose legionária

Legion of Three Worlds

(Geoff Johns e George Pérez – DC Comics, 2008)

Não gosto muito do Super-Homem. Detesto sua versão adolescente, o Superboy. Desprezo a Legião dos Super-Heróis. Por quê? Questão de lógica. Se nunca curti muito o azulão, tinha ainda menos razões para apreciar sua versão aborrecente. E a Legião, o que tem a ver com isso? Simples. O que é a Legião senão um bando de Superboy wannabes? Sério. Olha para os personagens. Mon-el, Ultra-Rapaz e por aí vai. São todos cópias assumidas do Superboy. Outra coisa que incomoda são os poderes dos integrantes da equipe. Ninguém conseguiu pensar em nada melhor que encolher, ficar invisível, emitir raios elétricos e pegar fogo? Isso enche o saco. Principalmente se pensarmos nos nomes dos heróis, decorrência direta desses poderes sem sal. Moça-Relâmpago, Solar, Rapaz Polar, Night Girl e etc. Chaaato... E isso que nem mencionei o cidadão que foi batizado como Matter-Eater Lad – Digestor, no Brasil. Triste, mas verdadeiro. Bem, se os heróis já são assim, imagina os vilões. Os fundadores da Legião são Relâmpago, Cósmico e Satúrnia. Adivinha quem são seus arqui-inimigos? Lorde Relâmpago, Rei Cósmico e Rainha Saturno. Santa criatividade, Batman. Ah, já ia esquecendo. Também tem um bandido chamado Earth-man. Get the point?

Mas afinal, do que se trata o tal Legião de Três Mundos? É uma história que tem como protagonistas o Superboy e não uma, mas três versões da Legião do Super-heróis: aquela surgida depois de Crise Infinita, a de 1994 e a de 2004. Mas por que cargas d'água eu – um Legion hater – teria escolhido este gibi para a coluna “Gibis de super-heróis que valem a pena”? Será que estou ficando doido? Not so fast, Kid Flash. Adoro LTM porque, ao longo de suas 5 edições, o gibi mostra o Superboy original matando Legionários de todas as formas possíveis e imagináveis. Simples assim.

Quer dizer que o Superboy agora é vilão? Sim. Mas quando foi que aquele garoto que ia mudar o mundo começou a frequentar as festas da Legião dos Super-Vilões? Resumo rápido. O Superboy, na sequência dos eventos de Crise nas Infinitas Terras, ficou exilado numa dimensão paralela com outros personagens, dentre eles o Super-Homem da Terra 2. Aos poucos, ele começou a cultivar um ressentimento contra a Terra do Universo DC pós-Crise, já que sua preciosa realidade original tinha sido erradicada. Amargurado com seu destino, Superboy fica putaço e resolve sair do limbo. Sua missão? Ferrar com a vida dos outros, afinal sua vida já estava ferrada. Assim surgiu o novo enfant terrible das HQs, agora rebatizado de Superboy Primordial. Após uma série de traquinagens, como vimos durante sua participação em Crise Infinita e na guerra dos Lanternas Verdes, o moleque superpoderoso vai parar no século 31, louco para destruir todo Legionário que encontra pelo caminho. Desejo-lhe sorte em sua jornada, Superboy. Tamo junto, parceiro.

Legião de Três Mundos foi escrita por Geoff Johns e desenhada pelo monstro sagrado George Pérez. Este último continua mandando muito bem, especialmente no que faz melhor: porradarias cósmicas envolvendo trocentos heróis e vilões. E esse gibi é um prato cheio disso. Perez adora mostrar as diversas versões dos personagens. Quer ver as três Garotas Fantasma? Ok. Quer apreciar os diferentes trajes do Karate Kid? Vai fundo, amigo. E sim, Pérez vai desenhar todos os personagens que já se dignaram a usar o anel da Legião, principalmente aqueles mais obscuros. Falando em heróis de segunda linha, não posso esquecer a glamorosa participação do Lanterna Verde Sodam Yat, criado por Alan Moore. Procure saber mais sobre esse nome. É uma piada pronta do barbudo britânico.

Uma coisa bacana de Geoff Johns é o sentimento de pertencimento ao Universo DC que ele costuma imprimir em suas sagas. Não tem essa de cada supergrupo ficar isolado em seus microcosmos. Por isso, em LTM abundam referências tanto aos Lanternas Verdes quanto aos Titãs. E quem conhece o escritor já sacou qual é a dele. Surpresas mil, ressurgimento badass de personagens esquecidos, mortes e ressurreições. Ele faz isso muito bem, embora recorra a isso o tempo todo. São tantas idas e vindas que você já abre a página seguinte pensando: "Ok, qual a reviravolta que vou encontrar agora?". É divertido, mas repetitivo. E por falar em reaparições, já vou avisando logo: o horrendo Connor "Superboy Cospobre" Kent está de volta. LTM é legal, porque é pura zoeira. Presta homenagem ao riquíssimo legado do Universo DC sem ser pedante. É um gibi que está a fim de entreter. Se você estiver interessado em reflexões e papo cabeça, fuja. O papo aqui é reto, mas não se leva a sério. Se gosta da Legião dos Super-Heróis, vai se emocionar. Senão é fã, vai se deleitar. Palavra de escoteiro. (MMA)

Legado dos besouros

Blue Beetle

(John Rogers e Rafael Alburquerque, 2006-2009 – DC Comics)

Não é nada fácil definir qual a qualidade dos quadrinhos de super-heróis da DC comics. Se, por um lado, ela é dona dos personagens mais icônicos e longevos do gênero, por outro vemos que estes personagens também são os mais engessados por essa história. E aqui eu evoco a antiga diferença entre História e estória. Resumindo, personagens como Super-Homem, Batman e Mulher Maravilha são vítimas de suas posições como carros-chefe na editora, suas histórias são deixadas de lado e suas estórias acabam sofrendo por falta de conflito e mudança. Mas o bom decenauta sabe muito bem que as boas histórias da DC não estão nos seus ícones, mas na extensa lista de personagens secundários que, diferente da trindade acima citada, dão liberdade para seus autores desenvolverem suas estórias como bem quiserem. Como resultado, temos fases aclamadas de personagens como o Flash, Starman, Sociedade da Justiça, Legião dos Super-Heróis e outros tantos que bebem dos quase 80 anos de história da editora e que construíram uma tessitura cronológica concisa e orgânica que existe desde a Segunda Guerra Mundial e que pode ser definida por uma palavra que já teve mais sentido dentro da DC: legado.

Um dos últimos títulos a trabalhar esta noção mais concisa de legado da DC comics, mantendo viva uma tradição que foi levantada por vários autores, mas que encontrou nas mãos de Roy Thomas seu maior expoente e defensor, foi o título Blue Beetle (Besouro Azul), do escritor John Rogers e do artista brasileiro Rafael Alburquerque, publicado entre Maio de 2006 e Fevereiro de 2009. Personagens secundários como esse, mesmo sendo desenhados por um dos artistas brasileiros mais renomados na atualidade, são raramente publicados no Brasil. Por aqui, a fase do estudante de origem latina, Jamie Reyes, como hospedeiro do escaravelho alienígena que lhe dá os poderes de Besouro Azul, só deu o ar das graças em suas histórias ao lado dos Titãs e nos inúmeros crossovers e crises que terminaram por soterrar o mercado americano. Mas esta fase guarda verdadeiras pepitas para o leitor que aprecia a História do universo DC, além de corrigir um erro da editora ao integrar a história dos personagens da Charlton Comics - a casa original do Besouro Azul e também dos personagens Questão, Pacificador, Trovejante entre outros - à cronologia mais atual da editora.

A série foi toda  republicada nos EUA em edições encadernadas, mas é em dois volumes específicos, Reach For The Stars e Endgame, que encontramos o ponto alto da série. Jamie Reyes é o típico personagem que foi desenvolvido para trazer representatividade latina para o rol de títulos da DC, com direito até a uma edição totalmente escrita em espanhol. Porém, misturado a este esforço de representação está o tipo de ação super-heróica que carrega em seu DNA um tanto de Homem-Aranha misturado ao sci-fi de um Lanterna Verde dos anos 60; e uma boa dose de nostalgia e legado. Tudo isso embalado na belíssima arte de Albuquerque ainda sem o peso dark de sua passagem pela Vertigo.

Nas duas encadernadas, Jamie confronta a origem de seu escaravelho – um artefato de uma raça de conquistadores que é espalhado pelo universo para iniciar o processo dominação e que foi usado de forma dormente pelo primeiro Besouro Azul, Dan Garret, ainda em 1939. Ao se rebelar contra a função do aparelho, precisa usar os restos de tecnologia do finado Ted Kord (o segundo Besouro Azul, conhecido por sua participação na Liga da Justiça de Keith Giffen e J.M. De Matteis) para escapar de uma nave invasora e retomar seu escaravelho corrompido, que só responde aos comandos de Reyes e se torna inútil para a invasão. Participa ainda da estória, como um personagem-chave para o desenvolvimento de Reyes como herói, um velho e traumatizado Pacificador. Ao final do arco, temos uma aparição do Lanterna Verde Guy Gardner e da equipe original da “Liguinha” de Giffen e DeMatteis que é de trazer lágrimas aos mais saudosistas.

John Rogers é roteirista e produtor de TV (criador de séries como Leverage e Librarians, esta ainda no ar) e segue a tradição da DC em trazer autores de outras mídias para dar visões mais frescas para personagens sem uso e que se apoia fortemente na tradição da editora. Assim aconteceu com James Robinson, cuja influência de seu Starman é visível em Blue Beetle, e com o atual chefão da editora Geoff Johns (que também sabia trabalhar com a História dos personagens, mas que terminou por perder a mão). (LN)

Billy Soco – Um tributo à infância

por Pedro Brandt

Tendo praticamente a mesma idade de Gabriel Góes, vi, vivi e consumi – intensamente – muitas das mesmas paixões dele. Não foram poucas as vezes, por exemplo, que conversamos sobre bonecos – action figures, se você preferir. Até hoje, quando nos encontramos, ele me cobra uma visita ao meu acervo de figuras de ação – que, nos últimos anos, vem sendo, pouco a pouco, misteriosamente dilapidado. Estariam os seres de plástico fugindo da caixa?

Acredito que o melhor período para os bonecos de ação durou a década de oitenta até meados da de noventa. Depois disso, os bonecos – os de brincar, não os de enfeitar – nunca mais foram tão legais. Estaria eu deixando a nostalgia (sempre ela!) pesar nessa afirmação? Talvez. Mas quem foi criança na época se lembra: He-Man, Comandos em Ação, Thundercats, Super Powers, Rambo, Tartarugas Ninja... O design dos bonecos, a qualidade do material usado, a aplicação de cores e o acabamento, as possibilidades de articulações, os assessórios... E os desenhos animados desses personagens eram hit na televisão, as coleções de brinquedos eram publicizadas nos intervalos comerciais, nas páginas dos gibis, em álbuns de figurinhas e outros incontáveis produtos. Estavam nas vitrines da Mesbla, das Americanas, da Bibabô...  Enfim, esse universo estava por todo lado e fazia a cabeça da molecada numa época ingênua e feliz. Deixou boas recordações para mim. E, tenha certeza, deixou boas recordações para o Gabriel – como atesta Soco, seu mais novo trabalho. Publicado pela editora Beleléu, Soco pode ser encarado como um tributo à infância relido sob uma ótica (acidentalmente ou não) pós-moderna. O personagem-título, Billy Soco, é um super-herói genérico – intrépido, superforte e insípido – desses que surgem durante uma aula entediante nas últimas folhas de um caderno do primeiro grau. E, para este Soco, isso basta. Góes, certamente, não quer reinventar o gênero super-herói. Não quer nem mesmo contar uma boa história do tipo.

Soco sugere um trabalho quase terapêutico, de extrair inspiração, sem pudores ou maiores questionamentos, das mais profundas ranhuras entranhadas na memória, das cicatrizes de felicidade esquecidas ali (nem sempre facilmente acessáveis passados os anos). Por que, na infância, esses bonecos – e seus desenhos animados, revistas em quadrinhos, anúncios de produtos, artes de embalagens – nos fascinam tanto? Soco não quer explicar nada disso. Quer, penso eu, ser apenas um reflexo de memórias e sensações puras.

Soco é um quadrinho de um esteta, para ser consumido com os olhos, tal qual a criança que devora, pupilas brilhando, as imagens vindas da televisão e o mostruário da loja de brinquedos. É um quadrinho que você faria quando criança, desavergonhadamente, feito quase aos 40: heróis e vilões trocando porrada, monstros gigantes, homens da caverna, viagens no tempo, entre dimensões, tudo um monte de bobagem. Mas um deleite visual! É ruim e bom ao mesmo tempo. Ou melhor, é (apenas) bom mesmo! Afinal, Góes, ele mesmo, virou um monstrão do desenho. 

Metade das páginas de Soco é em preto e branco e a outra metade em diferentes tons de vermelho e rosa. A ilustrações se dividem em dois tipos, as intencionalmente toscas e as intencionalmente elaboradas. As toscas, vale ressaltar, são apenas pseudo-toscas, rabiscadas e selvagens seriam definições mais apropriadas. Macaco velho, Góes não consegue mais ser naïf-tosco. 

As refinadas são a síntese do Góes-ismo: têm algo de Kirby, um tanto de indie comics (e aqui cabe um monte de coisa), e outro tanto de design contemporâneo, que bebe da arte urbana e da publicidade das últimas décadas. E é essa teia de informações que faz de Soco e, por conseguinte, do trabalho de Gabriel Góes, tão atraente. 

Ele acena, sem saudosismo ou cinismo, para aquelas memórias adormecidas, nunca esquecidas. É a coleção de bonecos guardada no armário da casa dos pais. A cicatriz no joelho, resultado do tombo de bike. O que fomos e o que gostaríamos de ter sido. O quadrinho imaginado e nunca feito na época da escola. O Billy Soco interno de cada um.

Soco

De Gabriel Góes. 64 páginas. Editora Beleléu. Preço: R$ 35 (à venda aqui)

De Caligari a Zorglub

por Ciro I. Marcondes

1: A tentação de Kracauer

Em 1947 o filósofo Siegfried Kracauer, ligado à famosa escola de Frankfurt, lançou um bombástico livro que se tornou um clássico da chamada “teoria crítica” aplicada ao cinema.

De Caligari a Hitler – Uma História Psicológica do Cinema Alemão se baseava nos princípios de análise cultural frankfurtiana (privilegiando eventos de cultura “popular” e “de massas”, inaugurando um olhar filosófico sobre estes temas) para traçar uma curiosa linha do tempo entre os fabulosos filmes do chamado “expressionismo alemão” e a ascensão e adesão do povo alemão a Adolf Hitler e ao terceiro Reich. 

Kracauer gostava de pensar o cinema a partir de seus elementos técnicos, e considerava (conforme podemos ler em sua outra obra fundamental, Theory of Film, de 1960) o mundo matemático da abstração (e, logo, consumido pela técnica) com nocivo ao nosso contato “direto” com a realidade (seja lá o que isso queira dizer). Em 1960, ele dava continuidade, portanto, por meio do pensamento sobre a comunicação, à velha ideia da “alienação” marxista. A única redenção seria uma re-ligação com o mundo das coisas reais, uma redenção por meio das imagens “naturais” produzidas pelo cinema. Este meio de comunicação teria esse poder de nos envolver novamente com um metafórico “retorno à terra”. Uma espécie de encontro com nossa natureza mais primeva e essencial. A contribuição de Kracauer se tornou uma das mais distintas teorias realistas do cinema.

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Porém, a técnica foi pensada de maneira diferente no livro de 1947. As ideias de Kracauer para a ascensão de Hitler, consideradas hoje como teoria “traumática” (porque produzidas logo após a segunda guerra – e ele era judeu), têm sim um direcionamento claro, um tipo de ficção sobre si mesmas, são teleológicas, miram um certo resultado. Mas não deixam de ser fascinantes. O filósofo analisou inúmeros filmes da chamada “República de Weimar”, entre O Gabinete do Dr. Caligari (1919) e até o final dos anos 20, para traçar um paralelo entre o efeito hipnótico dos inúmeros déspotas ilustrados pelo expressionismo e a aceitação do povo alemão para as ideias nazistas.

O cinema expressionista, como bem se sabe, é um sinistro gênero do cinema silencioso que invoca o imaginário do romantismo alemão (bruxas, demônios, vampiros, pessoas degeneradas, loucura, etc.) com tintas mais desesperadas a carregadas. Ficaram famosos diretores de fotografia como Karl Freund e Carl Hoffmann, que encontravam soluções técnicas fantásticas para os cenários sofisticados, de luz altamente contrastada, que iluminava também a requintada e apavorante direção de arte. O trabalho de diretores “modestos” como Murnau, Fritz Lang e Paul Leni também ajudou o gênero a se tornar um dos mais influentes do cinema silencioso (oi Tim Burton?). A série Dr. Mabuse, de Fritz Lang, mostrava um magnata do crime que se utilizava de estranhas tecnologias para transmitir seu império de terror mesmerizante. O próprio Drácula em Nosferatu tem também poderes hipnóticos parasitários, estabelecendo ligações perigosas.

Caligari era um hipnólogo profissional, de tendências tirânicas e assassinas. Em Metropolis, a forte quebra com um intenso processo de alienação do trabalho num futuro distópico, capitaneada pela personagem de Brigitte Helm, encontra seu maior desafio quando ela tem de enfrentar um autômato de si mesma (o robô), em processos que também envolvem este tipo de manipulação das massas.

Os Nibelungos, suposto filme favorito de Hitler, entoava (brilhantemente, diga-se), mitos da “raça ariana”. 

Caligari, Mabuse, Nosferatu: o tirano que controla por meio da tecnologia/hipnose Hitler também foi um exímio usuário dos meios de comunicação e da propaganda para sedimentar suas ideias na bovina e desesperada população (oi Goebbels). Kracauer jogou a culpa nos meios, ao mesmo tempo em que falava sobre um recrudescimento da tentação xenófoba e autoritária que a Alemanha já havia visto na primeira guerra e no séc. XIX. Era o início da teoria da comunicação, e percebia-se claramente que os meios detinham um certo efeito (não-previsível) sobre as massas.

O filme "O Triunfo da Vontade", de Leni Riefenstahl, um dos marcos da propaganda nazista

Essa ideia de um poder despótico que se vale de tecnologias de comunicação, doutrinação e lobotomização das massas virou um precedente muito utilizado na cultura pop. De O Mágico de Oz até coisas rasteiras como a série de alienígenas V, a noção clássica (e obsoleta) de Lasswell de que os meios que transmitem de um emissor para vários receptores funciona como uma seringa hipodérmica (que distribui o conteúdo de maneira homogênea para as “cabecinhas” que representam a população) encontrou ressonância em todo tipo de manifestação. 

Uma delas acabou aportando no 15º álbum do mais famoso grumete dos quadrinhos belgas, ainda em 1961. Se você não sabe quem é Spirou, talvez seja a hora de voltar pras aulas de história dos quadrinhos

2: Z de Zorglub

Z de Zorglub acaba de ser lançado no Brasil pela editora SESI-SP, acompanhando um trabalho fundamental de resgate deste que é um dos personagens mais importantes das BDs (ou quadrinho franco-belga). A editora tem lançado álbuns tanto da fase clássica do personagem (principalmente produzida pelo gênio André Franquin) quanto ótimas releituras modernas de Spirou (e seus insubstituíveis coadjuvantes, como Fantasio, Marsupilami e o Professor Champignac). A linhagem das produções em cima deste personagem é muito longa. Ela começa ainda em 1938, quando sai o primeiro número do Journal de Spirou, ocasião em que o grumete estreia no lápis do pioneiro Rob-Vel.

Spirou pode lembrar Tintim à primeira vista, pois são dois jovens “mocinhos” clássicos e bem-intencionados em aventuras pelo mundo. As diferenças, porém, são mais interessantes. Spirou está dentro do estilo groz-nez, que elevou Asterix aos píncaros da glória em termos de BD, e todos os grandes autores que o escreveram (Rob-Vel, Jijé, Franquin, Tome, Émile Bravo, etc.) colocaram neste personagem, e especialmente no excêntrico fotógrafo Fantasio (seu “BFF”), um pouco mais de pimenta, um pouco mais de absurdez do que podemos ver nas criações de Hergé. Spirou se encontra, na longa trajetória de seus álbuns, com gorilas, dinossauros, piratas, cogumelos alucinógenos, coisas diversas e malucas na medida exata. 

Champignac "tirando" Zorglub

Este álbum Z de Zorglub não é diferente. E o fator “Kracauer” apenas o torna mais interessante como produto de sua época, ao mesmo tempo em que elabora uma paródia poderosa das origens da tirana e da vilania dos vilões. O mote é extremamente simples: Zorglub é um vilão megalomaníaco, no estilo de desenhos como Megamente, Os Incríveis e Meu Malvado Favorito. Ele quer controle total do mundo e os heróis (Spirou e Fantasio) se metem em seu caminho. Como nestes filmes, esse vilão possui uma contrapartida humana. Desde o início da história, Zorglub é retratado (vejam bem, estamos falando de 1961, quando “desconstrução” não caía nem na boca do Derrida) como um almofadinha elitista e cafona, com ego ridiculamente inflado e ostentando clichês de “gênio do mal” (óbvio, ele fala de si mesmo na terceira pessoa). Porém isso seria apenas uma máscara para um sujeito pequeno e inseguro. 

Este álbum foi escrito por Franquin e Greg, mas ilustrado por Jidéhem (que claramente busca unidade no estilo do mestre criador do Gaston Lagaffe). O detalhismo groz-nez para coisas como roupas, móveis, carros e armas é de chorar. Poucas coisas superam o design de uma BD dos anos 60. E o mesmo ocorre com o visu de Zorglub: barbinha à Rubens Ewald Filho, calvície e sobrancelhas grossas, alinhado num terno justo e uma capa estofada com pelos de animais. Um perfeito e patético tirano.

Ao contrário da ideia de Kracauer e dos filmes do expressionismo, que levavam muito a sério (talvez com certa razão) o controle que a tecnologia possibilitava a estes tiranos inocularem comandos de controle na população, Franquin entende estas possibilidades em chave de paródia. Zorglub domina todo tipo de tecnologia e possui uma espécie de raio de controle à distância, que transforma as pessoas em escravos sem mente, os chamados “zorglomens”. Eles devem depois passar por uma lavagem cerebral estilo “Laranja Mecânica”. 

Fábrica de "zorglomens"

A tecnologia é um elemento essencial e predominante em Z de Zorglub. Ela está alinhada ao estilo da HQ, que prima pela excelência no desenho de basicamente qualquer coisa que seja ilustrada ali: todos os veículos do vilão, assim como roupas, carros, cores e o arrojo dos quadros parecem saídos diretamente das portas da Bauhaus. Este formalismo está aliado à ideia de técnica nessa história, que contrapõe a visão maníaca e desumanizada de Zorglub (ele sim escravo da tecnologia) com a versão mais “naturalista” de ciência do seu rival Champignac, que se utiliza de elementos orgânicos (cogumelos – hmm...) para constituir sua produção. Ao mesmo tempo, o aspecto estéril meio “Disney” (leiam o que Baudrillard tem a dizer sobre este parque em Simulacros e Simulação) da “Zorglândia” (territórios dominados por Zorglub) entra em conflito com a própria Paris (e interior da França) tão lindamente ilustrados nas páginas da HQ. 

A tecnologia de comunicação e os déspotas

Zorglub é claramente um tecnocrata. Tanto que elabora sua própria maneira de falar, a “zorglíngua”. De certa maneira, Franquin já trabalha aqui um discurso de ridicularização deste arquétipo proposto por Kracauer ao colocar, no final, Zorglub como uma espécie de criança infeliz que não aguenta suportar o sucesso de Champignac. O vilão revela que toda a sua megalomaníaca ambição se dá devido a motivos meramente mesquinhos: conquistar o mundo era um pagamento por ter sido vítima de bullying. Nada que Chaplin já não tivesse previsto em O Grande Ditador (1940), mas adicionado do gênio e das sacadas amalucadas de um dos gigantes da HQ francesa. 

Hoje, como sabemos, a comunicação não é unilateral e não existe “seringa hipodérmica” para domar o acesso selvagem e a distribuição caótica de informação em mil vias transversais possíveis de interação. Ainda não sabemos se o “tirano” do mundo é a humanidade ou a perversidade maquínica desta complexa rede de sistemas que ignora o valor do indivíduo. Zorglub e Kracauer são passado. Os processos comunicacionais estão sempre dois passos à nossa frente e mal podemos pensar modelos de previsibilidade em relação a eles. Ainda bem que ainda resta o trabalho de artistas como Franquin e Jidéhem para nos conseguir fazer rir disso tudo.

Sleeper: infiltrado no coração das trevas

por Marcos Maciel de Almeida

A dupla Ed Brubaker e Sean Philips é um exemplo das combinações que dão muito certo, tipo Lennon e McCartney, Leone e Morricone e pastel com caldo de cana. E olha que a chance de êxito dessa combinação não era exatamente uma certeza. Tudo bem que o Brubaker já era conhecido dos fãs de gibis de temática urbana com forte pegada policialesca, como Gotham Central e Batman, mas seu parceiro no crime Sean Philips tinha construído sua fama tendo seu nome mais associado aos gêneros de terror e aventura, após fases memoráveis em gibis como Hellblazer e Wildcats

Mas a união de esforços dos dois autores, dedicada a contar histórias de suspense com ambientação noir envolvendo as castas mais baixas e mais altas do submundo, derrubou qualquer desconfiança. 5 gibis depois (Criminal, Incognito, Fatale, Sleeper e Fade Out, não necessariamente nessa ordem), com inegável sucesso de público e crítica, além de diversas indicações para o Eisner (que lhes rendeu dois prêmios de melhor série com Criminal e Fade Out), Brubaker e Philips perceberam que a química entre os dois funcionava que era uma beleza. Ou talvez nem fosse química. Acho que a palavra correta poderia ser alquimia, já que tudo que os caras tocam parece virar ouro. E bem, das pepitas que a dupla já garimpou, resolvi dar uma analisada nesta aqui: Sleeper, de 2003.

Para quem não sabe, "sleeper" é o termo que designa um espião que fica dormente em uma organização até o momento em que lhe ordenam interromper suas atividades de espionagem, seja por motivos de segurança pessoal, seja para dar início ao plano de ataque contra o inimigo. E o Sleeper deste gibi refere-se a Holden Carver, ex-pupilo de John Lynch, uma espécie de Nick Fury criado pelo Jim Lee. E sim, meus amigos, como já deu para perceber, embora o gibi tenha a maior cara de revista da Image, o fato é que ela faz parte do selo Wildstorm e, por conseguinte, do Universo DC. Mas bem, isso não é problema, visto que nenhum dos personagens puro sangue da Divina Concorrência aparece para colocar água no nosso chopp. Então, como eu ia dizendo, o Carver, que ganhou a habilidade de armazenar e distribuir dor física graças a um artefato alienígena (sim, isso foi meio boçal, mas fazer o que?) foi escolhido para infiltrar uma organização terrorista que emprega bandidos superpoderosos. O problema é que a tal organização é chefiada por um dos vilões mais casca grossa já inventados nos quadrinhos: Tao.

Talvez você não esteja ligando o nome à pessoa, mas o Tao foi um personagem criado pelo Alan Moore, durante sua passagem pelos Wildcats. Bem, se você não leu, recomendo que o faça assim que possível, porque se trata de material de primeira linha, com desenhos do irrepreensível – e infelizmente sumidaço – Travis Charest. Tao, acrônimo de Tactically Augmented Organism, é um ser criado em laboratório como parte de experimento envolvendo a criação de seres artificiais. Sua atuação terrorista, caracterizada por ataques de intensa selvageria e ousadia, chamam a atenção do chefe da IO (International Operations), John Lynch, que resolve destruir a organização de Tao por dentro, por meio da infiltração de Carver. Mas bem, porque o tal Tao é casca grossa? Ele tem superpoderes? Não, mas possui a mente criminosa mais fria e calculista do universo Wildstorm, além de uma forte capacidade de manipulação. Sem querer dar spoilers, esse cara foi capaz de escapar tranquilamente de um prédio cheio de Wildcats, deixando na saudade medalhões como o Superman (ops!), digo, Mr. Majestic. Mal comparando, pode-se dizer que seria uma espécie de Reed Richards malvado, com tendências ao sadismo.

Tao, maldade encarnada

Bem, a pegada do gibi é de pura pressão psicológica, relatando a trajetória de Holden Carver em sua tentativa de ganhar terreno na organização comandada por Tao. Mas, como se não bastasse o clima tenso de ter que enganar a mente mais brilhante e mortal do planeta, que não cansa de fungar em seu cangote, Carver tem ainda de lidar com o fato de que Lynch, a única pessoa que sabe de sua condição de espião, está em coma. Trocando em miúdos, nosso herói está fudido e mal pago, porque os mocinhos querem seu couro e os vilões não perdoarão sua eventual traição. Um dos grandes momentos do gibi é o jogo de gato e rato entre Carver e Tao, que adora usar de ambiguidade e ironia com o subordinado, como que para dar indiretas de que já sabia quem era o espião em seu grupo. 

O cast é um capítulo à parte, contendo personagens tão bizarros que deixariam David Lynch orgulhoso. Para Brubaker, o cerne do gibi é a relação de Carver com Miss Misery, a sensual comandante de Tao. Lembra que o Hulk ficava mais forte à medida que ficava furioso? Então, Miss Misery fica mais poderosa sempre que agride ou tortura alguém. Só que esse esquema também funciona ao contrário. O afeto e o carinho recebidos trarão dor e mal estar para ela. Esse é o tamanho da enrascada em que Carver se meteu. A mulher que ele deseja fica doente quando se apaixona e só fica bem quando ele se ferra. Outro personagem interessante é o segundo em comando de Tao, Peter Grimm. O carequinha, capaz de deixar o cérebro de qualquer um num loop eterno de pesadelos, não foi com a cara de Carver e está querendo sacaneá-lo assim que possível. 

Holden Carver desempenha o arquétipo tradicional dos gibis e filmes noir. Durão, mas de bom coração. Machão, mas sempre alerta para impedir que injustiças sejam cometidas. Incontornáveis, para ele, são seus princípios de lealdade para com seus amigos e entes queridos. E, quando percebe que sua presença tornou-se um perigo para eles, segue aquela cartilha do herói que ensina que o melhor a fazer é se afastar. E esse é o grande sacrifício de Carver. Em busca do bem maior, abandona sua vida e sua esposa, para ir lamber as botas do capeta. Perdido numa realidade em que os amigos são os inimigos, e isolado de sua verdade enquanto pessoa, Carver é um náufrago no oceano da própria mente. 

Trio Parada Dura: Tao e seus asseclas

Um dos grandes méritos de Sleeper é sua despretensão. O gibi não quer ser o novo grande hit, mas simplesmente contar uma história bacana, com começo, meio e fim. E os autores tem pleno êxito nessa proposta. Se você está querendo vasculhar os becos mais escuros e sórdidos do universo Wildstorm, seu gibi é esse aqui. 

Escritores de talento são aqueles que, além de saberem contar uma boa história, têm a manha de escolher os melhores brinquedinhos para fazê-la funcionar. E Brubaker fez exatamente isso. Pegou um personagem desconhecido (Carver), utilizou organizações já estabelecidas como a IO e colocou na mistura uma das melhores criações de Alan Moore durante sua passagem pelos Wildcats (Tao). E o resultado deu caldo. É isso aí. Não durma no ponto. Leia Sleeper.  

Sleeper durou duas "temporadas", cada uma com doze edições, e foi publicado pela DC/Wildstorm na gringa. O material ainda está inédito no Brasil. E isso sim é um crime tão perverso que nem Tao conseguiu conceber.

Holden Carver, sleeper agent

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