O obscuro, sempre
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I just don’t see why I
should even care
It’s not dark yet, but
it’s getting there
-
Bob Dylan, “Not dark yet”.
É muito comum que grandes
artistas ou pensadores, no final de suas vidas e carreiras, venham a olhar para
um certo lado obscuro da existência. Atenhamo-nos ao básico: a faceta niilista
e caótica das últimas tragédias de Shakespeare; a abissal missa de Réquiem de Mozart, composto para seu próprio enterro; o pessimismo derrotista
nos últimos quatro álbuns de Bob Dylan; e até mesmo Freud demonstrou-se
profundamente desiludido com a humanidade em seus últimos textos. Se
conseguirmos aceitar isso como algum tipo de padrão – há que se considerar
sempre as exceções. A nona de Beethoven, por exemplo, é um canto de cisne
carregado de paixão e alegria – acho que ele se conforma com a resposta
aparentemente mais óbvia, mas que só acreditamos quando acontece conosco: o
envelhecimento é um processo muito difícil, de flagrante padecimento do corpo
(e, portanto, de proximidade com a morte), e com ele confluem o acúmulo de
frustrações e fracassos, de questões não-resolvidas, de inscrições
cicatrizantes que vamos carregando na alma. Além disso, é evidente que o mundo
não está ficando muito melhor, e daí é possível que estes artistas busquem uma
última lufada de ar, carregada de pestilência fúnebre, que finalize com
maturidade e severidade o próprio processo vital e artístico de cada um.
No caso que eu quero analisar
aqui, é muito curioso o fato de se tratar de André Franquin, não apenas um mestre dos quadrinhos, mas também um mestre do humor nos quadrinhos. E o humor
ganha particularidades insubstituíveis quando embebido de um tanto de...
obscuridade. E Franquin acabou revelando-se um mestre também naquilo a que
chamamos “humor negro”. Porém, antes de passar de vez a esta análise de seu
humor, eu gostaria de pedir licença e analisar seu terror, a partir do mesmo sentido com que Francisco de Goya, o
grande pintor do romantismo, instilou terror em sua fase terminal, já doente
(circa 1820), surdo e quase cego, pintando as paredes de sua casa com cenas
sombrias de rituais macabros, deuses pagãos e pessoas desfiguradas.
Este imaginário onírico e certamente perturbado, que se assemelha ao de Goya justamente por não apenas dar vida, mas também por cultivar a vida dos monstros internos, é o que faz de Idées noires a obra-prima de Franquin. Uma obra-prima marcada por um tom macabro, impiedoso, quase irrefutável. E não estamos falando de qualquer autor, e sim daquele que escreveu a fase mais famosa de Spirou e criou Gaston Lagaffe (estátua dele aqui), símbolo dos quadrinhos na Bélgica.
O pessimismo é um humanismo
Lagaffe |
Mas o que é realmente fascinante
em Idées noires é sua mistura curiosa
de pessimismo e humanismo, numa concentração que nunca vi em nenhuma outra obra
artística, o que (minha opinião) torna essa HQs quase crepuscular de Franquin
tão interessante e ousada quanto as obras-primas citadas no primeiro parágrafo.
Franquin era famoso por seu ativismo green
e por sua defesa às causas dos direitos humanos, mas em Idées noires estes temas
se tornam vinganças perversas. Vendedores acabam esquartejados por suas máquinas,
militares passam a bombardear merda pelo mundo, imoladores de sangue humano em
sacrifício à Terra passam a ver o planeta vomitar suas oferendas.
O que mais me encanta em Idées noires, ainda assim, não são nem
estas às vezes rasteiras, às vezes muito espertas, reflexões éticas, e sim o
momento em que Franquin
se transfigura nesse Goya doente, moribundo, pintando Cronos grotescamente
devorando os próprios filhos assim que nascem. A “paleta de cores” usada pelo
belga evidencia isso: preto e branco chapados, “só que ao contrário”. Assim, na
maioria das ideias obscuras, o fundo é todo branco, e os desenhos todos pretos,
sem muito delineamento de rostos ou detalhamentos, a não ser nas expressões,
nos olhos, naquilo que basta. Quem conhece o traço de Franquin sabe que ele é
mestre no estilo cômico gros nez, com
fisionomias típicas da BD belga. Seus personagens são exagerados, com
movimentos espalhafatosos, e geralmente descabelados, meio hippies, meio punks.
Em Idées noires, isso também assume
um aspecto sombrio, com um twist meio
sádico, que de certa forma nos incomoda como aqueles super-heróis malvados em Crise nas infinitas terras.
Creio que três exemplos resumem,
por fim, a gratuidade genial do sadismo de Franquin nestas histórias: a de um
sujeito caminhando só, na neve, morrendo de fome e desesperado, que avista as
“luzes da civilização” e dá graças a deus. Porém, quando ele se aproxima mais,
as “luzes da cidade” eram na verdade os olhos de mil lobos, que se revelam no
último e grande quadro. Outra: a absurda história de um garotinho na praia que
assusta as pessoas com uma barbatana falsa de turbarão. Ele é surpreendido no
quadro final quando se atrai por uma outra garotinha que era na verdade... um
boneco falso de ser humano usado por um tubarão (!!!) para atrair garotinhos...
Por fim, uma das mais interessantes, e mais abstratas: um sujeito está correndo
no espaço vazio quando uma grande pedra passa a descer em direção à cabeça
dele, para esmagá-lo. Ele vai chegando, com pensamentos positivos, com máximas
da força de vontade, quase chega, quase chega e, no último quadro, a pedra
esmaga sua cabeça.
Sigam-me os bons!! |