Tempo, mano velho: implicações loucas de MORT CINDER, obra genial de Oesterheld e Breccia
/por Ciro Inácio Marcondes
Falar de Héctor Germán Oesterheld (HGO), o maior roteirista de quadrinhos argentino, é, de certa forma, falar também de Jorge Luís Borges, o maior escritor argentino (se há controvérsias, vamos deixá-las de lado no momento). Vejamos: Oesterheld é um narrador das aporias do tempo e do espaço. Basta lembrar dos diversos viajantes alienígenas d’O Eternauta, da revisitação do western em Sargento Kirk, da leitura da segunda guerra em Ernie Pike, das viagens no tempo em Sherlock Time, etc. Oesterheld, assim como Borges, se servia do fantástico (e da sci-fi, no caso de HGO) para fazer leituras de possibilidades históricas, dos limites do ser humano ao ser pressionado em estranhas condições, e em última instância das prisões e libertações que o tempo pode proporcionar.
Neste caso bastam dois exemplos de Borges: o de O Aleph, em que um único ponto no espaço-tempo permite que se viva tudo que já foi vivido por todos, em seus mais ínfimos detalhes, em um instante. E o de Funes, o memorioso, em que um personagem está preso em sua absurdamente fantástica memória fotográfica, podendo se lembrar minuciosamente de cada instante em que viveu, passando apenas a viver de lembranças, ao invés de construindo uma nova narrativa para a vida. As carreiras de Oesterheld e a de Borges não apenas coincidem em aspectos temáticos, mas também na periodicidade (ambos têm um auge de produção entre os anos 40 e 50). A faceta literária da produção em quadrinhos de HGO não esconde sua admiração por Borges. “Eu quase não leio histórias em quadrinhos. Eu leio literatura. Leio constantemente. E se Borges lança uma coisa eu vou e compro. Estas são minhas fontes. E eu o digo sem culpa. Leio bons autores: Stevenson desde criancinha, ou Salgari”.
Escrevo este preâmbulo comparando brevemente os dois grandes da Literatura e da HQ argentina para disparar primeiras ideias de minha leitura de Mort Cinder, aquela HQ que é considerada, frequentemente, como a última importante da fase clássica dos quadrinhos argentinos, e um dos momentos mais luminosos de HGO. Coloquemos assim: se O eternauta é o Grande sertão: veredas de HGO, Mort Cinder é seu Tutaméia, ou seja, a obra mais enxuta e moderna que atualiza o clássico absoluto. Se um é o Ulisses, o outro é o Finnegans Wake. Para arrematar: se O eternauta é o Pet sounds de HGO, Mort Cinder é o seu SMiLE. Entendeu? Não? Então vá googlear essas coisas.
Mort Cinder foi publicado na revista argentina Misterixentre 1962 e 1964, com desenhos do uruguaio Alberto Breccia (com quem trabalhara em Sherlock time), então o também maior ilustrador trabalhando na Argentina. Era um time, portanto, pensado e construído para a elaboração de uma obra-prima. Lembrando que a primeira Bienal Mundial de Histórias em Quadrinhos argentina ocorre em 1968, dando credibilidade a uma mídia que, em terras platinas, já havia passado do seu auge, e que Oesterheld seguirá escrevendo histórias em quadrinhos (cada vez mais engajadas) até sua desaparição pelas mãos da ditadura militar, em 1977.
Portanto, quando HGO se junta a Breccia para produzir Mort Cinder, já não havia qualquer pudor em seguir determinados padrões editoriais ou fórmulas de sucesso. Experiente também como editor, HGO quis fazer desta série um projeto pessoal, em que suas ideias borgeanas fossem colocadas à risca da maneira mais “autoral” possível. O resultado é uma obra visivelmente madura, publicada no formato de revista, mas planejada como uma série sem muitas interligações entre os episódios, que se complementam mais por conceito, pela afinidade intelectual da coisa toda, do que narrativamente. Pude adquirir um volume que contém todo o Mort Cinder por meio da linda coleção “Biblioteca Clarín de la Historieta” (Vol. 13), publicada pelo jornal Clarín na Argentina nos anos 00. Até então, afora as edições originais de “Misterix” (raras), havia apenas um edição espanhola (dos anos 80) e uma argentina (dos anos 90). Se você cruzar com isso por aí, agarre com todas as forças.
Força, por sinal, é o que transborda da arte de Breccia, um preto-e-branco com pouca sombra e muito contraste, criando uma arte sombria e gótica, influência confessada, por exemplo, para Frank Miller em Sin City. Esta arte acompanha premissa genial, francamente borgeana, mas com aquele toque “foda-se para a verossimilhança e explicações mais” típico de HGO: a história é contada da perspectiva de dois personagens bastante “sui generis”. O primeiro é o antiquário inglês Ezra Winston, que toca seu empoeirado negócio com o olhar precioso daqueles que enxergam cada objeto como se ele carregasse consigo emoções e afetos de donos antigos, de histórias de outrora. Como se cada objeto fosse efetivamente um Aleph, disparando percepções para todas as direções: máquinas do tempo.
Estas máquinas do tempo são o mote para o segundo protagonista, o próprio Mort Cinder, um imortal que retorna em sua forma adulta a cada vez que morre. HGO não inclui uma origem para a imortalidade de Mort. Sua trajetória só pode ser reconhecida nas marcas graves de seu rosto torturado (perturbador, no traço de Breccia) por milhares de mortes violentas, pelo testemunho das incontáveis brutalidades da História. Assim, Mort é menos um personagem imortal completo, com origem e mitologia próprias, que um instrumento para, por meio dos objetos de Ezra, HGO viajar no tempo e no espaço e escrever suas parábolas sociais.
Ezra Winston
O imortal como metáfora do esquecimento
A linha de desenvolvimento das histórias é bastante perceptível: nas primeiras, mais aventurescas e de sci-fi mais pulp, a dupla se envolve em tramas rocambolescas, que problematizam a viagem no tempo. Depois, porém, a estrutura que contém um objeto, uma memória de Mort e um longo flashback se torna a moeda comum para HGO ir até o Egito antigo, a Mesopotâmia ou o Peru colonial para resgatar a memória problemática de poderosos e desvalidos, projetos de poder, histórias não contadas. HGO e Breccia fazem de Mort Cinder espécie de “Dr. Who metafísico”, onde a sci-fi não precisa de dispositivos ou technobabbles para justificar suas reflexões sobre história, memória e cicatrizes do tempo. É como se dissesse: “vamos pular a parte nerd e ir direto ao que interessa: o imortal como metáfora do esquecimento”.
Assim, se na primeira história, “Olhos de chumbo”, temos um enredo interessante, porém pulpesco, que narra o primeiro encontro entre os dois heróis e envolve cientistas malucos, planos de dominação global e escravos zumbizados tecnologicamente (neste sentido ainda lembrando O eternauta em sua versão original), logo vamos passando ao sentido metafórico (e metafísico) das outras histórias: em “A mãe de Charlie” voltamos à Segunda Guerra para descobrir o paradeiro do filho soldado de uma mãe que o espera há mais de 20 anos sentada no mesmo banco; em “A torre de Babel” voltamos ao conto bíblico para descobrir que a torre era na verdade um aparato de lançamento (desenvolvido por uma elite escravocrata) para um foguete com intenções de viajar até a Lua, plano interrompido por um alienígena que usa seus poderes para criar diferentes línguas e dissuadir a humanidade; nos dois contos da penitenciária, Mort está encarcerado e conhece diversa fauna de personagens estranhos, cada um com seus sonhos, perversidades, sede de vingança ou aspirações redentoras; em “O vitral”, Ezra é enfeitiçado por um vitral espanhol da época colonial construído (e amaldiçoado por) um índio do povo Inca que se infiltra na cultura do colonizador; em “O navio negreiro”, Mort se vê à deriva com um escravo africano e tem de tomar a decisão de salvar a si mesmo ou ao homem que o havia ajudado; em “A tumba de Lísis”, Mort e Ezra se veem envolvidos com um extraterrestre que procura sua noiva, enterrada em uma pirâmide há milhares de anos. Por fim, em “A batalha das Termópilas”, HGO retorna à clássica história relatada por Heródoto e coloca Mort como um espartano que, ao ouvir de um adivinho o futuro funesto dos soldados gregos, decide libertar um escravo antes de eles serem chacinados pelos persas.
Um passeio pelos temas e dilemas morais trabalhados por HGO e Breccia em Mort Cinder, portanto, nos colocam a par das ambições literárias do roteirista argentino. As histórias são narradas, nos recordatórios, em dura primeira pessoa literária (na voz de Ezra ou de Mort), deixando a leitura densa e carregada de insights mórbidos e impressões mais abstratas sobre os temas da ressurreição e perspectivas sobre a História e a morte. Da mesma forma, o uso instrumental da sci-fi ou da fantasia se tornam mais declarados: a viagem no tempo passa a ser tema metafísico, servindo o imortal para refletir sobre o esgotamento da memória, ou seu caráter cíclico, e ao mesmo tempo sua renovação através dos olhos cansados de Mort. A História é revista também pelos olhos dos desvalidos e esquecidos, ressaltando a perspectiva de esquerda engajada de Oesterheld (que lhe custou a vida): são histórias de escravos, prisioneiros, colonizados, soldados batidos. Neste sentido, HGO participa do amplo movimento de renovação da historiografia, procurando narrativas dos derrotados e da vida privada.
Estes temas todos são reunidos, por fim, na figura torturada de Mort, tão bem fixada no traço de Breccia, o que, num mundo justo, o tornariam um dos rostos mais icônicos dos quadrinhos. O olhar empedernido, as olheiras pesadas, o ar austero e misterioso do personagem parecem realmente carregar aquele chamado “peso” da História, protagonizado por um personagem imortal (Sísifo ou Prometeu?) que está cansado de sempre retornar para ver com seus próprios olhos o multiplicar de guerras, injustiças e carnificinas. De certa maneira, Mort Cinder é a própria História humana personificada na perspectiva de Oesterheld, duplo perfeito para os objetos silenciosos e antigos de Ezra, como o autor argentino tão bem pontua com suas próprias palavras: “As aventuras de Mort Cinder se iniciam sempre com um objeto que aparece na loja de Ezra, um antiquário. Sempre me fascinaram os objetos velhos, não por sua estética, mas sim pelas histórias que eles contêm. Todo objeto está impregnado de vida passada. Me atraem as recordações, mesmo que não sejam minhas nem de ninguém. Mort Cinder é a morte que não termina de ser. Um herói que morre e ressuscita. Em Mort Cinder há angústia, tortura.” Em Mort Cinder há, portanto, este caráter retroativo da morte, este tempo borgeano tão raro na HQ clássica, que a coloca em lugar único da trajetória da HQ mundial. Algo tão inevitável quanto essencial, perdido nos quebradas infelizmente ainda muito desconhecidas da HQ sulamericana. Há que se dar mais tempo ao tempo.
Breccia: em seu esplendor