O Soldador Subaquático – Jeff Lemire (Mino, 2016, 228 págs.): O canadense Jeff Lemire é um quadrinista de fronteira. Transita com desenvoltura entre o mainstream (leia-se Marvel/DC) e o quadrinho autoral. No Brasil, é tão conhecido por Sweet Tooth, sensível HQ da Vertigo, quanto por seus trabalhos com medalhões super-heroísticos – vide Old Man Logan, Homem-Animal, Superboy, X-Men e até o bombadão Thanos (desenhado pelo brazuca Deodato Filho, ops... Mike Deodato Jr.).
O Soldador Subaquático, graphic novel lançada pela Mino, encampa com veemência essa faceta mais autoral de Lemire. E cai como uma luva no belo catálogo da editora. Jack vive em uma remota cidadezinha próxima a uma plataforma marítima de extração de petróleo. Ali, trabalha como soldador subaquático, profissão de altíssimo risco. Sua esposa está às vésperas de dar à luz seu primeiro filho. O pai, alcóolatra – e também mergulhador – faleceu há muitos anos, em um acidente obscuro. A relação com a mãe, atravessada por esta tragédia do passado, é complexa – para dizer o mínimo. Este é o cenário no qual se desenvolve a narrativa, conduzida com brilhantismo por Jeff Lemire. Em sua introdução, Damon Lindelof (cocriador da série Lost e produtor executivo envolvido com os recentes Jornadas nas Estrelas e Prometheus) trata O Soldador Subaquático como uma versão contemporânea do clássico seriado Além da Imaginação. Comparação pobre. A HQ é um profundo tratado sobre relações familiares, memória e os dilemas de se tornar pai/deixar de ser filho – temas caros a Lemire e que já haviam sido tratados, sob outra perspectiva, em Sweet Tooth. Na estante, O Soldador Subaquático ficaria muito bem ao lado de Umbigo sem Fundo, de Dash Shaw. Mas Dash Shaw não escreve super-heróis – o que faz com que o livro do canadense forneça outros pontos de vista sobre as fronteiras existentes entre os diferentes gêneros de histórias em quadrinhos.
Formalmente, o que Jeff Lemire exibe em O Soldador Subaquático é um preciso domínio da linguagem quadrinística. A história avança e recua conforme suas intenções narrativas. Há uma ausência completa de redundância. Os personagens são carregados de alma e profundidade. O mais intrigante é que o autor consegue isso lançando mão de um desenho muito simples, de poucos recursos, urgente, quase taquigráfico.
Não há subterfúgios no traço de Lemire. O álbum sequer conta com as vistosas cores presentes em Sweet Tooth. No máximo a aguada, também urgente, pouco elaborada. O artista não parece nada preocupado em escamotear suas deficiências técnicas (anatomia, perspectiva e quetais). Ao contrário, parece eviscerá-las. Em O Soldador Subaquático, Jeff Lemire encara os desafios de se apresentar nu. Ao olhar do leitor médio de super-heróis, provavelmente lhe falte algum botox e litros de silicone.