Lovecraft: uma sombra à frente de seu tempo
/por Marcos Maciel de Almeida
HP Lovecraft (1890-1937), quem diria, tornou-se um fenômeno pop. Seja pelas inúmeras adaptações de sua obra que invadem as livrarias ou pelo recente sucesso da série de TV Lovecraft Country, o fato é que a literatura e as criações do escritor de Providence (EUA), justamente considerado um dos maiores nomes da ficção de horror mundial, encontram-se espalhadas pelas principais mídias de entretenimento. Exemplo simplório disso é minha reaproximação com sua obra, cujo gatilho foram os três episódios em sequência de South Park de 2010 nos quais os heróis da série enfrentam a criação máxima de Lovecraft, o milenar e inescrutável Cthulhu. Daí para comprar um compêndio com seus greatest hits foi um pulo. Coincidentemente, logo na semana seguinte embarquei para uma viagem de trabalho para a Armênia. Ler o calhamaço de quase mil páginas na madrugada do país caucasiano num apartamento em que ocorreram eventos inexplicáveis foi uma experiência no mínimo interessante, que não será relatada aqui por motivos de fuga ao tema.
No dia em que escrevo estas mal traçadas linhas, atrevo-me a dizer que Lovecraft conseguiu a façanha de ter se tornado mais famoso que seu predecessor e ídolo Edgar Allan Poe. Inspiração inegável, Poe influenciou formato (contos curtos e longos) e tipo de narrativa (de caráter fortemente pessoal elaborada invariavelmente em primeira pessoa) de seu discípulo. Reza a lenda que o fascínio de Lovecraft por seu ídolo era tão grande que o primeiro chegara a visitar as casas frequentadas por Poe, ocasiões em que tinha episódios de convulsão, visões e momentos de epifania.
Outra trágica similaridade que aproxima essas duas lendas da literatura fantástica é o reconhecimento tardio e póstumo. Tendo morrido numa pindaíba desgraçada, Lovecraft certamente ficaria admirado ao descobrir que suas criações se tornaram apreciadas pelas massas, como se pode verificar ao encontrá-las por aí em diversas formas de expressão artística, como música, cinema e jogos eletrônicos. Muito ajudou para esse fenômeno o fato de que parte considerável da obra do norte-americano tenha entrado em domínio público, o que contribui para a disseminação facilitada de seu legado. Claro que o talento do escritor – pai do gênero conhecido por “Horror Cósmico” – não passaria despercebido pelo crivo dos grandes da nona arte. Quadrinistas de renome como Alberto Breccia, Esteban Maroto e Dino Battaglia, entre outros, renderam incríveis homenagens ao trabalho de Lovecraft, recriando com autoralidade as clássicas histórias que assombram os pesadelos de leitores há mais de um século, em todo o mundo. Para além da seara cultural, a obra de Lovecraft transformou-se, também, em fonte importante para escritos de cunho religioso/ocultista.
Verdade seja dita, a obra de Lovecraft costuma orbitar em torno de temas recorrentes. A narrativa, em geral, possui elevada carga de análise psicológica, mostrando pessoas comuns sendo gradualmente tragadas pela loucura ou para um mundo de horror inominável. O protagonista típico do autor é um pacato cidadão – não raro professor ou acadêmico – que sofre fascinação mórbida por assuntos sobrenaturais. A atração inexplicável e irresistível pelo desconhecido diz muito sobre a condição humana. É um dos fatores responsáveis pelo prazer quase sadomasoquista que nos leva a consumir produtos que têm o horror como mote. Histórias contadas em estilo altamente envolvente, como as de Lovecraft, ajudam muito a explicar por que continuamos a voltar para esse gênero, como moscas sedentas por sangue, digo, açúcar. E o conto para o qual voltaremos o holofote nesta singela análise não foge a esta regra.
Em “Uma sombra vinda do tempo”, de 1936, – cujo nome original em inglês (A shadow out of time) é muito mais sonoro e chamativo – Lovecraft consegue se superar ao misturar o feijão com arroz de seu horror cósmico com viagem no tempo e possessão demoníaca. A história fala sobre a Grande Raça, seres alienígenas – habitantes dos primórdios da Terra – que possuem a capacidade de projetar sua mente em criaturas de eras futuras, para fins de pesquisa. O problema é que a mente da criatura destino volta para o passado longínquo, condenada a existir no corpo alienígena enquanto durar o “intercâmbio estudantil”. O grande barato deste conto é a simultaneidade da narrativa, que oscila entre presente e passado, mostrando a sina do pobre professor universitário Nathaniel Peaslee, vítima da transmigração temporal do visitante extraterreno. Momento particularmente marcante é quando o acadêmico toma contato com os seres que compartilham de sua sina: criaturas de diversas eras, condenadas a penar numa terra estranha, num corpo estranho.
A história em questão é a epítome de tudo que gosto em Lovecraft. Como sói acontecer em suas melhores narrativas, embora relatados em primeira pessoa, os contos invariável e paradoxalmente alçam o narrador à condição de simples testemunha dos fatos. Há um distanciamento nítido, mas bastante bem-vindo, entre narrador onisciente e narrador personagem, fato que cria um estranho efeito de distanciamento. É como se ambos fossem pessoas diferentes. A descrição minuciosa – quase clínica – dos sintomas de progressiva loucura do protagonista poderia facilmente se encaixar num prontuário de atendimento psiquiátrico. Em suma, o narrador é o médico analisando a história de um paciente: ninguém menos que ele próprio.
Tema recorrente na obra do autor é o alerta para a insignificância da presença humana na Terra, segundo uma perspectiva de análise de longuíssimo prazo. “Uma sombra vinda do tempo” também fala sobre isso, ao descrever a trajetória da Grande Raça e seus arqui-inimigos, os Pólipos Voadores. A disputa entre estes dois grupos atravessará as eras geológicas de nosso planeta, alcançando o futuro longínquo. O papel da humanidade nesse conflito é praticamente irrelevante, comparando-se a um fugaz grão de areia carregado pelo inexorável vagalhão do tempo. A transitoriedade dos homens frente à capacidade de permanência de criaturas alienígenas muito mais resilientes e complexas também é assunto comumente referido por Lovecraft. Para ele, o homem não seria sequer coadjuvante no filme da história, pois não passaria de mero acidente de percurso advindo do processo evolucionário. O discurso de Lovecraft evidencia, portanto, acentuada alteridade, retirando o holofote da humanidade e recolocando-o sobre seres tão fascinantes quanto longevos.
Gou Tanabe e as adaptações quadrinísticas da obra de Lovecraft
Gou Tanabe notabilizou-se pela exímia transposição de Lovecraft para os quadrinhos. Desde 2007 vem produzindo diversos trabalhos baseados na obra do norte-americano, com destaque para “A cor que caiu do espaço”* e “Nas montanhas da loucura”. Conta-se que, a partir do momento em que foi apresentado aos contos do criador do mito de Cthulhu, o autor japonês ficou impressionado “pelos personagens que perdem toda esperança e apetite de viver”. Em 2020 foi publicado na Itália um de seus mais recentes mangás, justamente A sombra vinda do tempo, boa adaptação de um dos contos mais doidões de Lovecraft. Artista de mão cheia, Tanabe não se faz de rogado ao materializar com brilhantismo e esmero a desvairada imaginação do norte-americano, realizando, como poucos, a façanha de desenhar o indescritível.
Esse talvez seja um dos grandes méritos do mangaká, capaz de delinear com grande propriedade as formas que habitam os sombrios pesadelos de Lovecraft. O lápis aparentemente incansável – responsável por uma riqueza de detalhes nada menos que assombrosa – permite que o trabalho de Tanabe possa figurar, sem passar vergonha, ao lado daquele de mestres que já adaptaram os contos de Lovecraft, como os supracitados Maroto e Breccia.
Para além da bela transcrição de mitos e lendas extraordinárias, Tanabe também revela competência para retratar figuras humanas transtornadas pelo horror cósmico. Na cena abaixo, por exemplo, é fácil perceber que havia algo de muito errado com o professor Peaslee, cujo corpo era naquele momento, ocupado por integrante da Grande Raça:
Assim como são impressionantes as imagens da cidade milenar da Grande Raça, uma espécie de Egito Antigo fabricado por uma raça alienígena:
Toda reverência apresentada por Tanabe em relação a Lovecraft não impediu que ele colocasse um final alternativo no gibi. Fique tranquilo que não vou dar spoilers. Basta dizer que ele preferiu um desfecho mais típico de gibi, optando por um momento de clímax ausente na versão original. Nada que tire o brilhantismo da adaptação, retrato verossímil da sutil transformação de um homem a caminho da inescapável loucura. A conclusão que salta aos olhos ao término desta longa viagem temporal é que existem duas sombras fora do tempo. A primeira é a do próprio protagonista, que jamais se recuperará da abdução de sua mente. A segunda – e mais importante delas – é a lembrança da própria sombra do criador, HP Lovecraft, deslocado para sempre do sucesso que sua obra alcançaria num futuro não tão distante de sua morte – o nosso presente.
Fica aqui a dica para as editoras brasileiras. Ainda dá tempo de surfar na onda de Lovecraft, certamente potencializada pelo grande público leitor de mangás em terra tupiniquim. Se bem que, pensando bem, talvez seja melhor deixar essa ideia de lado. Segundo consta, grande parte das divindades da tchurma de Cthulhu está adormecida esperando o momento certo para voltar. Publicar gibis desse tipo apenas contribuiria para que tornemos mais propícias as condições para um eventual retorno dos monstrengos. Afinal, os escritos de Lovecraft nos ensinaram que diretamente da dimensão dos sonhos os bichinhos continuam a tentar ganhar ascendência sobre a humanidade. E se quadrinhos, vídeo-games e o escambau a quatro forem a preparação do terreno para a volta triunfal dessa galerinha bad vibe? Bem, você deve estar achando que estou viajando. Bem, você pode estar certo. Mas, e se não for bem assim? E se?
*Só não vê quem não quer: a cor que caiu do espaço é flicts.