HQ em um quadro: Triunfo de Loki, por Esad Ribic e Robert Rodi





















O eterno retorno do trapaceiro (Esad Ribic e Robert Rodi, 2005): este quadro abre a minissérie Loki, uma HQ de super-herói de rara densidade existencial e valor filosófico, roteirizada pelo escritor Robert Rodi e poderosamente pintada pelo artista croata Esad Ribic. Se acabei sendo um pouco duro com as primeiras histórias de Thor, esta HQ tem o mérito de nos recompensar com toda a beleza conceitual do universo do personagem, construindo, no final, uma incrível parábola mitológica. Loki, o deus da trapaça de Asgard e irmão adotivo de Thor, finalmente conseguiu. Já velho e amargo, ele derrota o soberbo irmão em combate e se torna senhor dos deuses. É a hora da desforra. Loki acorrenta o irmão e prende todos aqueles que durante incontáveis anos haviam-no humilhado das mais diferentes formas: Lady Sif, Balder e até seu pai adotivo, Odin.

Loki é um dos tipos mais intrigantes do mundo dos super-heróis. Conspirador, invejoso, ressentido, fracassado: é o nêmesis exato do ideal viking, altivo, perfeito, orgulhoso e infalível que representa o arquétipo de Thor. O fato de Loki trazer um perfil desajustado, malhado pelas condições cruéis das virtudes mitológicas, sem qualquer ideal clássico de beleza ou força moral, me faz pensar, com alguma compaixão, numa triste gênese da infâmia, da perfídia e, claro, da covardia. Rodi enquadra a história em um princípio narrativo muito simples, mas sempre eficiente: Loki é o novo soberano e impõe sua vontade aos súditos de Argard, que o detestam, mas o servem. Solitário e repudiado, ele é atormentado por flashes e fragmentos do passado ao mesmo tempo em que precisa considerar o ofício, natural do monarca, de governar, e se vê mergulhado em um improvável dilema: deve ou não matar o meio-irmão Thor?

Sem cenas de batalha, a história já começa com Thor acorrentado, de onde lemos, vindo de fora do quadro, o imperativo de Loki: "Ajoelha-te, deus do trovão". O quadro arrebata porque, é claro, remete à imagem de cristo crucificado, e a qualidade realista da arte de Ribic traz dolorida humanização, tal qual imagens do Renascimento, como a Crucificação de Cristo de Rubens, tinham intenção de trazer. A ironia e grandeza desta história, porém, está no fato de que, aqui, a vítima é Loki, e Thor, o crucificado, o algoz. Desde as imagens da infância amarga de um pequeno e raquítico Loki, até sua juventude privada das orgias e do hedonismo dos perfeitos deuses de Argard, tudo vai piedosamente comovendo, em sua rememoração. Estamos presenciando a expiação da perfídia, a redenção do invejoso.  

A grande epifania da história está no momento em que Loki consulta um oráculo para saber as razões de seus intermináveis fracassos. "Fadado a perder. O destino é o arquiteto de meu tormento". Loki então descobre não apenas que possui um tipo de "falha trágica" grega, um daimon, maldição eterna e repetitiva, mas também que isso transcorre em todo tipo possível de realidade: ele pressente, num transe místico, infinidades dentro de infinidades de realidades alternativas, em mundos exóticos e alienígenas, aonde existem sempre um arquétipo de Loki e um de Thor. E em todas elas, inefavelmente, Thor é sempre o vencedor, e Loki, sempre o perdedor. A pulsação deste retorno eterno do mesmo faz desta HQ uma linda narrativa de matriz nietzschiana, e do personagem de quadrinhos Loki um legítimo emulsor de mitologia. (CIM)

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O Poderoso Thor

por Ciro I. Marcondes

Lendo a recente republicação das primeiras histórias de “O Poderoso Thor”, com roteiros de Stan Lee e arte de um ainda imaturo Jack Kirby, creio ser correto pensar na incômoda ambiguidade da cultura de super-heróis tanto para as HQs em geral quanto para a cultura de nossa era, assim como na ausência de perspectiva crítica sobre a adorada figura de Stan Lee da maneira como se faz, por exemplo, com Walt Disney. Digo isso pensando na avalanche de filmes desprezíveis consumindo salas de cinema e monopolizando a atenção de Hollywood na direção de um entretenimento bombado em efeitos especiais, mas infantilizado e vazio. Muitas vezes baseados nos simpáticos personagens de Lee, alguns destes filmes estão aquém da cultura de HQs, alimentando o estigma de descartabilidade. 

É claro que a força das criações de Stan Lee - com admirável moderação dos exageros dos heróis da era de ouro, popularizando em um contexto pós-midiático arquétipos humanos interessantes e aproximando o herói dos seus leitores -  tem méritos. O sentido aqui não é colocar na berlinda o Homem-Aranha, o Hulk, os X-Men ou sequer o poderoso Thor (cuja adaptação pro cinema saiu justo agora). As criações de Lee (ou remodelações, já que quase tudo em Lee é francamente baseado em algo de outros quadrinhos ou culturas), importantes para nosso imaginário atual, permanecem com suas essências ao mesmo tempo simples e adequadas. Elas estão muito além do alcance de seu criador. Parece um problema, porém, que estas essências, fetichizadas, disseminadas em bonecos, produtos, metáforas cotidianas, fantasias sexuais, moda, etc, estejam se tornando um denominador comum da sociedade de consumo. Esta atenção entusiasmada e cultista de um imaginário antes muito consciente de suas limitações está tornando o que hoje entendemos como uma identidade geek em uma cultura autoindulgente, cínica, explicitamente perversa, confessadamente idiotizante. Como fã de quadrinhos e até como leitor de Stan Lee, confesso acompanhar com horror a massificação do imaginário de super-heróis.

Vejamos estes quadrinhos do Poderoso Thor, datados de 1962, roteirizados no estilo marvel way por seu criador Stan Lee, com diálogos detalhados por Larry Lieber e arte de Jack Kirby. Meu primeiro interesse por Thor foi justamente buscar de que maneira esta figura extraída das mitologias vikings havia sido revertida em objeto de exploração (acho que, no caso de Thor, é lícito dizer “exploitation”) pela indústria das HQs. Sempre pareceu-me que, a partir de abordagens inteligentes como a de Alan Zelenetz e Charles Vess (“A Bandeira do Corvo”) ou a de Robert Rodi e Esad Ribic (“Loki”), o universo de Thor tivesse grande potencial. Daí recorrer à arqueologia. Lendo as mais de 10 histórias magnificamente republicadas pela Panini na versão nacional da “Biblioteca histórica marvel”, logo nos chama à atenção a pobreza conceitual e artística, mesmo para os padrões da Marvel nos anos 60, do universo de Thor.

Não é novidade que HQs da era de prata, fora algumas coisas do Homem-Aranha, Surfista Prateado e X-Men, despertam interesse mais pelo lápis vigoroso de um Kirby, Ditko ou Buscema do que pelas aventuras ingênuas de Stan Lee. No caso de Thor, entretanto, o caráter derivativo é franco e patente. Lee, já ocupado com o sucesso do Hulk, do Quarteto Fantástico e do Homem-Aranha, produziu roteiros sintéticos com os plots básicos e passou o detalhamento para Larry Lieber, processo que se tornaria tradicional em alguns setores da Marvel. Assim, os personagens de Thor são pálidos, óbvios, diretos. O frágil alterego Don Blake, médico cuja deficiência física contrasta com sua contraparte divina e ariana, logo é abandonado em sua assepsia maniqueísta. O mesmo ocorre com o interesse romântico, a puritana Jane, apaixonada por Thor, mas desdenhosa de Blake (bla bla bla... mesma velha história). Assim, o que emerge dessas tediosas tramas da Thor é justamente o aspecto não-ingênuo que delas se depreende, o que nos permite um comentário mais severo a respeito da isenção de Stan Lee.

Caça às bruxas



Consideremos, em primeiro lugar, que o mais interessante em Thor, e o que o definirá na sequência de sua trajetória enquanto mito e personagem de HQ, quando ele já não estiver mais sob o controle de Stan Lee, é sua origem na cultura nórdica, na mitologia viking, na inesgotável fonte de inspiração para o imaginário ocidental, do épico mudo de Fritz Lang “Os Nibelungos” às recentes e oscarizadas adaptações de “O Senhor dos Anéis”. Logo, mesmo nas histórias de Lee, são as intrigas mágicas e palacianas dos deuses tortos de Argard que vão instilar algum diferencial no universo do personagem, especialmente na figura do nêmesis Loki, um tipo picaresco, subversivo e invejoso, contraponto importante.  Porém, submetido a um ritmo industrial de produção, aos rigores do comics code authority (incomodamente estampado em todas as capas da republicação) e à franca paranoia da guerra fria em seu auge, imagino que Lee não tenha tido muito interesse em aprofundar o personagem em suas origens resididas na cultura popular. Thor é um herói qualquer, exilado na Terra, e combate vilões eventuais e ordinários como o “Copiador”, “Sandu” ou “Mister Hyde”, apaixonado por uma moça reprimida que o ridiculariza em sua essência humana. Nada que um Super-Homem, protótipo de todo super-herói, já não fosse.

Porém, além de vilões insossos perdidos no tempo, Thor também trabalha junto com o exército americano. Logo na primeira história (“Os homens de pedra de sarturno”), uma ilusão provocada pelos tais “homens de pedra” chama atenção pelo seu caráter subliminar: um dragão vermelho que aterroriza o povo norteamericano. Nas histórias subsequentes, vemos que as alusões ao mundo comunista deixam de ser subliminares. Em “O poderoso Thor x o executor”, Thor deve lançar-se contra uma ameaça militar controlada por um tirano ensandecido por aspiração de domínio global chamado “executor”. Ele e seus comparsas possuem traços alatinados, com cicatrizes de guerra deformativas, usam boinas e seus caças ostentam a foice e o martelo. São rudes, pavorosos, e suas ações sugerem tortura e estupro. Lee não avança no conteudo político deste conjunto de signos. Nada sobre o mundo do socialismo é revelado. O executor é um vilão genérico e cruel como um Esqueleto de He-Man ou um Munn-ha de Thundercats. É o mal pelo mal, sem arestas ideológicas. Mas usa boina como guerrilheiros cubanos, chama-se “executor” e, em quadro emblemático, manda para o paredão de fuzilamento um soldado que falhou em uma missão.


Esta associação à cultura militar e a uma demonização dos inimigos dos Estados Unidos nos anos 60 se encontra, ainda neste mesmo volume, em várias outras histórias. Em “Prisioneiro dos vermelhos”, Thor precisa ir à União Soviética à procura de cientistas americanos, supostos desertores. Lá ele os encontra capturados pelos grotescos soviéticos, que os obrigam a desenvolver tecnologia sob regime de escravidão. Esta história, escrita no auge da guerra fria, distorce tema controverso do passado norteamericano: o dos cientistas americanos que efetivamente fugiram por se filiarem ao partido comunista. A história de Thor descarta essa possibilidade e os coloca como vítimas de uma tola conspiração. Os exemplos se repetem e seria perda de tempo recapitulá-los em detalhes. Em “Aprisionado pelo copiador”, Thor se depara com grupo de alienígenas cruéis e com sede de conquista cujo líder tem o rosto de Stalin (além de serem da cor vermelha). Em “O misterioso homem radioativo”, Thor vai à Índia salvar a população da ameaça da China comunista, genérica como todos os outros.

O ponto em que eu queria chegar é evidente: pouco se fala sobre um Stan Lee colaboracionista e ideologista, usando tramas pueris e românticas em inocentes histórias de ação (orgulhosamente aprovadas pelo comics code authority) para associar símbolos mundiais (estrelas, cores, foices) a figuras grotescas e rasas, que sequer têm o poder de crítica aos estados socialistas para além de uma transfiguração direta e barata, porque nenhum conteúdo propriamente político é abordado nestas histórias. E isso é fácil de se entender, afinal, as histórias são direcionadas às crianças, que são bem menos capazes do ato da problematização. Neste sentido, Lee não difere dos primórdios da Marvel Comics, ainda Timely Comics, que criou nos anos 40 inúmeros personagens embandeirados como motivação para a segunda guerra mundial. Logo na primeira edição do Capitão América, vemos o herói que veste e personifica o american way desferir um golpe de boxe nas fuças de Adolph Hitler. Com certeza é preciso entender o contexto sociopolítico da guerra fria e relativizar a participação da cultura pop em um mundo bipartido, mas também é preciso lembrar a vulnerabilidade de um pequeno leitor de HQs nessa mesma época.

As criações de Stan Lee fazem parte de nosso patrimônio cultural mundial e comum. Seu poder de trazer a cultura de quadrinhos para um patamar humano desencadeou muitas mudanças importantes na maneira como lidamos com nossas aspirações e heroísmos pessoais, sendo até hoje fonte de entretenimento legítimo e servindo como um aperitivo daquilo que a totalidade do prazer e da educação que o pensamento mitológico inspirou em culturas antigas ou selvagens. Porém, como toda mitologia, seus heróis se desvinculam de seus criadores no decorrer da História, e seguem vivos pela força coletiva de autores e leitores que procuram cada vez mais adequá-los à passagem do tempo. Confundir, de maneira fetichista, a mente criativa, porém artística e politicamente limitada de Stan Lee, com o efeito mitológico de suas criações, parece consequência do ato de querer-se apenas cultuar o universo dos quadrinhos sem problematizá-lo. Isso é curioso porque fornece munição justamente para aqueles que querem impedir o crescimento cultural desta forma de expressão, os mesmos que proibiram a colossal e alternativa cultura de HQs dos anos 40, permitindo a ascensão de heróis em seu formato light, cujo principal expoente é justamente o velho Stan Lee que aparece, tal qual um Hitchcock acidental, em cada uma das megaproduções cinematográficas da Marvel que são lançadas nos verões americanos.

Ciro Inácio Marcondes não odeia os heróis Marvel