O Poderoso Thor
/por Ciro I. Marcondes
Lendo a recente republicação das primeiras histórias de “O Poderoso Thor”, com roteiros de Stan Lee e arte de um ainda imaturo Jack Kirby, creio ser correto pensar na incômoda ambiguidade da cultura de super-heróis tanto para as HQs em geral quanto para a cultura de nossa era, assim como na ausência de perspectiva crítica sobre a adorada figura de Stan Lee da maneira como se faz, por exemplo, com Walt Disney. Digo isso pensando na avalanche de filmes desprezíveis consumindo salas de cinema e monopolizando a atenção de Hollywood na direção de um entretenimento bombado em efeitos especiais, mas infantilizado e vazio. Muitas vezes baseados nos simpáticos personagens de Lee, alguns destes filmes estão aquém da cultura de HQs, alimentando o estigma de descartabilidade.
É claro que a força das criações de Stan Lee - com admirável moderação dos exageros dos heróis da era de ouro, popularizando em um contexto pós-midiático arquétipos humanos interessantes e aproximando o herói dos seus leitores - tem méritos. O sentido aqui não é colocar na berlinda o Homem-Aranha, o Hulk, os X-Men ou sequer o poderoso Thor (cuja adaptação pro cinema saiu justo agora). As criações de Lee (ou remodelações, já que quase tudo em Lee é francamente baseado em algo de outros quadrinhos ou culturas), importantes para nosso imaginário atual, permanecem com suas essências ao mesmo tempo simples e adequadas. Elas estão muito além do alcance de seu criador. Parece um problema, porém, que estas essências, fetichizadas, disseminadas em bonecos, produtos, metáforas cotidianas, fantasias sexuais, moda, etc, estejam se tornando um denominador comum da sociedade de consumo. Esta atenção entusiasmada e cultista de um imaginário antes muito consciente de suas limitações está tornando o que hoje entendemos como uma identidade geek em uma cultura autoindulgente, cínica, explicitamente perversa, confessadamente idiotizante. Como fã de quadrinhos e até como leitor de Stan Lee, confesso acompanhar com horror a massificação do imaginário de super-heróis.
Não é novidade que HQs da era de prata, fora algumas coisas do Homem-Aranha, Surfista Prateado e X-Men, despertam interesse mais pelo lápis vigoroso de um Kirby, Ditko ou Buscema do que pelas aventuras ingênuas de Stan Lee. No caso de Thor, entretanto, o caráter derivativo é franco e patente. Lee, já ocupado com o sucesso do Hulk, do Quarteto Fantástico e do Homem-Aranha, produziu roteiros sintéticos com os plots básicos e passou o detalhamento para Larry Lieber, processo que se tornaria tradicional em alguns setores da Marvel. Assim, os personagens de Thor são pálidos, óbvios, diretos. O frágil alterego Don Blake, médico cuja deficiência física contrasta com sua contraparte divina e ariana, logo é abandonado em sua assepsia maniqueísta. O mesmo ocorre com o interesse romântico, a puritana Jane, apaixonada por Thor, mas desdenhosa de Blake (bla bla bla... mesma velha história). Assim, o que emerge dessas tediosas tramas da Thor é justamente o aspecto não-ingênuo que delas se depreende, o que nos permite um comentário mais severo a respeito da isenção de Stan Lee.
Caça às bruxas
Caça às bruxas
Consideremos, em primeiro lugar, que o mais interessante em Thor, e o que o definirá na sequência de sua trajetória enquanto mito e personagem de HQ, quando ele já não estiver mais sob o controle de Stan Lee, é sua origem na cultura nórdica, na mitologia viking, na inesgotável fonte de inspiração para o imaginário ocidental, do épico mudo de Fritz Lang “Os Nibelungos” às recentes e oscarizadas adaptações de “O Senhor dos Anéis”. Logo, mesmo nas histórias de Lee, são as intrigas mágicas e palacianas dos deuses tortos de Argard que vão instilar algum diferencial no universo do personagem, especialmente na figura do nêmesis Loki, um tipo picaresco, subversivo e invejoso, contraponto importante. Porém, submetido a um ritmo industrial de produção, aos rigores do comics code authority (incomodamente estampado em todas as capas da republicação) e à franca paranoia da guerra fria em seu auge, imagino que Lee não tenha tido muito interesse em aprofundar o personagem em suas origens resididas na cultura popular. Thor é um herói qualquer, exilado na Terra, e combate vilões eventuais e ordinários como o “Copiador”, “Sandu” ou “Mister Hyde”, apaixonado por uma moça reprimida que o ridiculariza em sua essência humana. Nada que um Super-Homem, protótipo de todo super-herói, já não fosse.
Porém, além de vilões insossos perdidos no tempo, Thor também trabalha junto com o exército americano. Logo na primeira história (“Os homens de pedra de sarturno”), uma ilusão provocada pelos tais “homens de pedra” chama atenção pelo seu caráter subliminar: um dragão vermelho que aterroriza o povo norteamericano. Nas histórias subsequentes, vemos que as alusões ao mundo comunista deixam de ser subliminares. Em “O poderoso Thor x o executor”, Thor deve lançar-se contra uma ameaça militar controlada por um tirano ensandecido por aspiração de domínio global chamado “executor”. Ele e seus comparsas possuem traços alatinados, com cicatrizes de guerra deformativas, usam boinas e seus caças ostentam a foice e o martelo. São rudes, pavorosos, e suas ações sugerem tortura e estupro. Lee não avança no conteudo político deste conjunto de signos. Nada sobre o mundo do socialismo é revelado. O executor é um vilão genérico e cruel como um Esqueleto de He-Man ou um Munn-ha de Thundercats. É o mal pelo mal, sem arestas ideológicas. Mas usa boina como guerrilheiros cubanos, chama-se “executor” e, em quadro emblemático, manda para o paredão de fuzilamento um soldado que falhou em uma missão.
Esta associação à cultura militar e a uma demonização dos inimigos dos Estados Unidos nos anos 60 se encontra, ainda neste mesmo volume, em várias outras histórias. Em “Prisioneiro dos vermelhos”, Thor precisa ir à União Soviética à procura de cientistas americanos, supostos desertores. Lá ele os encontra capturados pelos grotescos soviéticos, que os obrigam a desenvolver tecnologia sob regime de escravidão. Esta história, escrita no auge da guerra fria, distorce tema controverso do passado norteamericano: o dos cientistas americanos que efetivamente fugiram por se filiarem ao partido comunista. A história de Thor descarta essa possibilidade e os coloca como vítimas de uma tola conspiração. Os exemplos se repetem e seria perda de tempo recapitulá-los em detalhes. Em “Aprisionado pelo copiador”, Thor se depara com grupo de alienígenas cruéis e com sede de conquista cujo líder tem o rosto de Stalin (além de serem da cor vermelha). Em “O misterioso homem radioativo”, Thor vai à Índia salvar a população da ameaça da China comunista, genérica como todos os outros.
Ciro Inácio Marcondes não odeia os heróis Marvel