LASERCAST #03 - Quadrinhos além: mas que diabos é isso?

LASERCAST #03 - Quadrinhos além: mas que diabos é isso?

A pergunta fundamental da Raio Laser é respondida por todos os seus integrantes, analisando as seguintes obras: AKIRA (Katsuhiro Otomo), MENSUR (Rafael Coutinho), RUMO À LUA/EXPLORANDO A LUA - TINTIM (Hergé), FUN HOME (Alison Bechdel), MUNDO CÃO (Miguelanxo Prado) e O ETERNAUTA (Oesterheld/López).

Participam do debate: Márcio Jr., Lima Neto, Bruno Porto, Marcos Maciel de Almeida, Pedro Brandt e Ciro Inácio Marcondes.

Edição: Gustavo Trevisolli

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MELHORES QUADRINHOS LIDOS EM 2017 - PARTE 3

Abro os olhos. Vejo as gordas gotas de suor e sangue se multiplicando vagarosamente no chão. Meu corpo lateja como um coro barítono que vibra por meus ossos lacerados. Levanto a cabeça e posso ver o corpo estendido daquele que seria o ano de 2017 me encarando com o olhar já vazio da morte. Ao que tudo indica, sobrevivi à experiência traumática do décimo sétimo ano do século XXI. Velho sortudo… Atrás de mim, 2018 levanta sua cabeça horrenda…

Peço desculpas ao exigente leitor da Raio Laser por emular tão tristemente os cacoetes estilísticos do caríssimo Frank Miller (se bem que mesmo ele podia se desculpar por fazer a mesma coisa nos dias de hoje), mas abuso da dramaticidade para de alguma forma me justificar por trazer para vocês uma lista tão magra de leituras. Mas foi um ano difícil. E espero que esta lista traga um pouco de reflexão, diversão e entretenimento para vocês como trouxe para mim. Vale lembrar que esta não é uma lista dos melhores quadrinhos publicados no ano, mas sim de boas leituras que foram realizadas em 2017 (inclusive lançamentos). (LN)

Parte 1

Parte 2

por Lima Neto

1 – Mensur – Rafael Coutinho (Cia. das Letras, 2017): Começamos pelo título que abrilhanta 90% das listas de melhores HQ´s do ano de 2017. Não sem razão. Muito já foi dito sobre a volumosa novela gráfica de Rafael Coutinho. Inclusive aqui mesmo na Raio. Mas aproveito este espaço para falar um pouco sobre a minha leitura da obra. Em julho último publicamos no site um ensaio meu sobre a tolice intrínseca e necessária aos quadrinhos de super-heróis, sem a qual não haveria diferença entre os mascarados e os criminosos que caçam. Caso se interesse, você pode ler aqui. O que não está dito no texto é que a leitura que vai inspirar a reflexão sobre o assunto – identidade, rostidade, responsabilidade (e o inverso de tudo isso) – é a narrativa do mensuren Gringo e seu autoproclamado exílio da própria vida. Mensur, como toda obra desse calibre, forma um emaranhado de possibilidades interpretativas e caminhos para o pensar. 

Mas vai ser exatamente o caminho mais direto, o da identidade, que vai me acompanhar a leitura inteira. Desde a bela capa, que evita encarar o leitor e parece ao mesmo tempo ler seu título ou admirar as cicatrizes de seu rosto, passando pelas negras capas internas riscadas em branco - como se fossem lembranças subconscientes de que as linhas que vão dar forma ao conteúdo do livro apenas são o que são graças aos caprichos da percepção -, Mensur é uma narrativa sobre o risco. Sobre a linha e seu papel de definir limites e de avançar, ou não, sobre estes mesmos limites. Não como uma bravata, embora haja bravatas, mas como um risco que se assume e cuja forma resultante define o que se é. Gringo é um personagem ciente de que não há riscos mais eficazes e verdadeiros que aqueles que realiza e recebe em seu secreto esporte. Riscos que definem quem ele é, ou melhor, que rabiscam sobre sua identidade social e construída, uma garatuja de não-identidade que é mais real do que qualquer outra linha  mundana que dá forma aos seres sociais. Abrir mão do rosto, como traço identificador mais do que elemento estético, é a ação antissocial última. É “rasgar a identidade”, como dizem os seres de rosto tatuado para além de qualquer moda que transitam pelas grandes cidades. Insatisfeitos com qualquer identidade que a sociedade possa oferecer. Mas esta entrega ao não-ser não é de maneira alguma redentora, e nem mesmo heroica, é uma apenas uma vivência marcada pelo patético de uma obsessão. 

2 – Lendas do Cavaleiro das Trevas: Alan Davis vol. 1 e 2 – Mike W. Barr e Alan Davis (Panini, 2014/2015): Falando em quadrinhos de super-heróis, uma das leituras mais agradáveis do início de 2017 foi a coleção dedicada à breve fase do desenhista inglês Alan Davis como artista de Batman sob a batuta do escritor Mike W. Barr. Esta fase tem como tarefa dar continuidade à origem do personagem escrita por Frank Miller em Batman Ano 1, e o experiente Barr vai misturar sua verve mais madura (que junto com Brian Bolland foi responsável pela pérola Camelot 3000) com uma interpretação mais colorida e fantástica do homem-morcego. Essa mistura agridoce se inicia com a sequência de título aproveitador Batman Ano 2, que vai ter a arte do ainda desconhecido Todd McFarlane nas primeiras edições, mas termina com o lápis de Davis. A partir daí, o britânico continua no título, agregando a mistura de seriedade e fantasia um visual icônico e o Batman mais elegante da editora. Nas páginas das duas edições, vemos um desfile dos vilões mais clássicos do personagem, reapresentados para a geração pós-crise. Barr e Davis conseguem com sucesso representar os vilões com a dose correta de delírio fantástico e ainda assim parecerem perigosos para suas vítimas. Essa fase ainda conta com a parceria de Robin, tendo um jovem e irresponsável Jason Todd por trás da máscara. Boa parte desse sucesso está o colorido vivo alucinógeno de Adrienne Roy e a competente arte final do parceiro de Davis, Paul Neary. Além da galeria de vilões, vale a pena destacar um empolgante encontro do maior detetive da DC com o maior detetive do mundo – Sherlock Holmes. O encontro aconteceu na edição de 50 anos da revista Detective Comics e contava ainda com a participação do detetive casca-grossa Slam Bradley e o herói investigador de faro para o mistério, Homem-Elástico. O encontro ainda contou com a arte de Dick Giordano, Carmine Infantino, Terry Beatty e Eufranio Reyes Cruz. Outra surpresa bem-vinda na edição foi a adição do especial Circulo Completo, publicado anos depois desta fase e que mostrava a volta do vilão ceifador, personagem de Batman Ano 2 que inspirou o longa-metragem de animação Batman – Máscara do Fantasma. E ainda a colaboração de Davis e Barr na historieta “Saideira no McSurleys”, um conto em preto e branco publicado em março de 2002. 

3 – A História do Petróleo em Quadrinhos – Tales Pereira (Jaguatirica, 2016): O quadrinho nacional vive hoje um momento de intensa produção. Não há como negar. Seja nas prateleiras das livrarias ou nas bancas das feiras independentes, somos cobertos por uma enxurrada de lançamentos dos mais diversos gêneros e qualidades. Este volume de produção nem sempre é correspondido com um poder de compra que garanta o escoamento do que é produzido, e, nesse impasse, muitos quadrinhos podem passar completamente despercebidos pelos radares. Uma dessas HQs se chama A História do Petróleo em Quadrinhos, de Tales Pereira. Uma das teclas mais pressionadas entre os pesquisadores de diversos campos que têm HQ seu objeto de pesquisa é a do potencial didático dos gibis. E esse livro, lançado pela editora Jaguatirica do Rio de Janeiro e bancado por uma campanha bem sucedida no Catarse, expõe de maneira explícita esse potencial. O quadrinho, como o título entrega, é um sobrevoo pela história desta matéria-prima que até hoje demarca uma cicatriz negra na história e nas relações entre ocidente e oriente. Tales, que já trabalhou como engenheiro petroquímico para a Petrobrás, usa um traço simples e cartunesco para discorrer todo seu conhecimento sobre o “ouro preto” em uma narrativa simples, didática, mas assombrosa em seu conteúdo. Com muito despojamento, A História do Petróleo em Quadrinhos expõe os derradeiros mecanismos que movem a sociedade capitalista do ocidente, iluminando relações aparentemente não  correlatas entre ciência, tecnologia e geopolítica. Seu estilo de desenho, embora esquemático, não deixa de ser expressivo e consistente, e o resultado final é uma aula cujo extenso conteúdo pode ser assimilado de maneira muito eficiente. A simplicidade deste gibi é enganadora e esconde uma leitura que deveria ser obrigatória e capaz de mudar a forma de ver o mundo. Algo que raramente é capaz de se dizer sobre uma obra. 

4 – Monstro do Pântano Regênese Vol. 3 – Rick Veitch e vários (Panini, 2017): Rick Veitch segurou uma das maiores batatas quentes do  quadrinho norte americano quando topou dar sequência à fase do escritor Alan Moore no título Swamp Thing. Amigo pessoal de longa data do escritor inglês, Veitch escreveu um dos mais psicodélicos capítulos do personagem no espaço, ainda na fase de Moore. Sua experiência como escritor não era pouca, mas seguir os passos do amigo era um desafio que ele  conseguiu ultrapassar com elegância e uma boa dose de polêmica. Em histórias xamânicas, o personagem do lodo encontrou outras versões de si mesmo de eras passadas, presenciou o consumismo simbolizado pelos carros e autoestradas, entrou no corpo de John Constantine para poder consumar seu amor por sua mulher na forma de uma inseminação (que se tornará sua filha Teffé Holland) e tatuar uma de suas nádegas. Veitch tinha muita familiaridade com o conteúdo das histórias anteriores e isso deu a ele bastante segurança para seguir. Mas vai ser no volume 3 que veremos algumas de suas melhores histórias. A primeira, "Esperando Deus", vai colocar o elemental contra nada menos que o próprio Super-Homem ao tentar buscar justiça pelo sofrimento causado por Lex Luthor quando este destruiu sua ligação com o verde da terra, ainda na fase de Moore. A edição vai mostrar um Monstro do Pântano que se esgueira de todas as formas para consumar sua vingança, sempre sendo frustrado por um Super-Homem que o impede quase sem notar a presença do elemental, realizando apenas algumas ações das muitas que performa todos os dias na função de deus guardião da humanidade. A história vai buscar na relação entre Papa-Léguas e Coyote uma maneira divertida e pungente de homenagear o primeiro super-herói da editora prestes a completar 50 anos.

Em "O Mais Longo dos Dias", encontramos os quatro avatares do verde que, em edições anteriores, partiram para o espaço de forma a agregar à sua coletividade a experiência única que o Monstro do Pântano passou. Cada um deles, seres tão interessantes quanto próprio Alec Holland, se tornam cientes de que seu planeta natal está para ser alvo de um ataque brutal. Ainda não havia selo Vertigo, e a revista Swamp Thing estava para participar do evento "Invasão", que acontecia em todos os títulos da editora. As descrições fantásticas que cada ser dá sobre o ambiente em que agora habitam se somam à paranoia crescente que prepara terreno para a edição seguinte e, em "Enlutada", o clímax se apresenta na forma da cônjuge de um ser alienígena que foi derrotado pelo Monstro do Pântano ainda na fase original de Len Wein e Bernie Whrightson. A narrativa que se segue é tocante e uma interpretação de pensamento alienígena das mais interessantes nos quadrinhos. Como resultado, o Monstro do Pântano é novamente desligado de sua relação com o verde, e vai transitar pelo tempo reencarnando em pontos-chave da história do universo DC. Fase esta que resultou na saída de Veitch do título ao ver a história em que o Holland reencarnaria na madeira da cruz de Cristo. O escritor foi cortado em um crescendo fenomenal, e esta série de encadernadas não terá continuação tão cedo no Brasil, pois mesmo nos EUA esta fase final é proibida de ser republicada. 

5 – The Big Book of Grimm – Jonathan Vankin e vários (1999, Piranha Press): Mais um ano termina, mais uma lista e mais um livro da série Factoid Books, da Piranha Press. Em 2015 a minha lista trazia o Big Book of Death, e agora o “Grande Livro dos Grimm” chega em 2017 botando gibis como Fábulas para correr com o “real deal” dos contos de fada. Como os outros livros da série, este big book é um apanhado das melhores fábulas dos irmãos Grimm, adaptadas por Jonathan Vankin e desenhadas por um exército de quadrinistas de impressionar. George Freeman desenha Cinderella; o conto macabro de Branca de Neve se torna mais grotesco no traço de Charles Vess; Hunt Emerson ilustra o conto Clever Hans. A lista é enorme: Rick Geary, D’Israeli, Sérgio Aragonés, James Kochalka, Rick Burchett, Dame Darcy, Seth Fisher, Mashall Rogers, Steve Leialoha. A quantidade de histórias dá um panorama bem completo das verdadeiras fábulas sempre com uma arte de qualidade em preto e branco. Ainda me impressiona que estes livros não encontram publicação no Brasil. 

MELHORES QUADRINHOS LIDOS EM 2017 - PARTE 1

Fim de ano. Coisa boa. Como todo ano do século XXI tende a ser meio lazarento, não custa comemorar, mesmo que de graça, a chegada de mais uma vã e febril esperança. Porém, ao menos no que diz respeito aos quadrinhos, foi uma safra e tanto. Como vocês bem devem saber, nossas listas são de leituras de qualquer época realizadas em 2017. Daí você ver aqui coisas que vão desde os anos 20 até o zênite do quadrinho brazuca lançado no ano que termina agora. E sem dúvida 2017 marcará nossa produção com um punhado de obras-mestras. Por conta de minha coluna no Metropoles, li caminhões atolados de quadrinhos por toda parte. Tanto que deixei coisas como Floyd Gottfredson, Claudio Nizzi, Carl Barks, Frank Miller e outras leituras maravilhosas que fiz, de fora. Sobraram estes 16 campeões. Para evitar redundância, apenas escrevi resenhas inéditas para os que não haviam aparecido na Raio Laser ou na ZIP. Pros outros, links pros textos originais. 

A partir da semana que vem, os selecionados dos outros colaboradores da Raio. A lista não obedece a qualquer ordem racional e o número "16" é totalmente aleatório. Por favor, caro leitor, coloque suas melhores leituras nos comentários e nas redes sociais. Compartilhe! (CIM)

por Ciro Inácio Marcondes

01 - STEVE CANYON 1 – Milton Caniff (L&PM, 1990 [1947]): Para um fã de quadrinhos atual bastante dedicado, Steve Canyon é o exemplo que Umberto Eco utiliza em seu Apocalípticos e Integrados para indicar como a linguagem desta forma de expressão pode se descortinar aos poucos numa interação semiótica entre imagens e palavras. Afinal, nas primeiras tiras deste herói estão lá as palavras de todos que o cumprimentam, sem que o leitor possa visualizar a figura de Steve, "apreendido" por outros meios de linguagem antes de aparecer efetivamente.  Encarar uma sequência longa de tiras realizadas por Milton Caniff nos anos 40, no entanto, é uma tarefa mais dura que um simples dever de casa universitário. Realizadas após 13 anos em que o grande mestre de Will Eisner se dedicou ao seu sucesso de aventura de guerra Terry e os Piratas, as tiras do início de Steve Canyon, muito bem representado nesta preciosa edição da L&PM, são testemunha dos quadrinhos de uma época, de um dos maiores autores desta época e, por fim, desta época ela mesma.  Se Terry levava, de maneira um pouco mais juvenil, seus protagonistas a aventuras marítimas no oriente, Canyon, já no contexto do pós-guerra, procurava refletir sobre o sentimento triunfante (por vezes agridoce) que se apoderou dos americanos após a vitória no Japão. Nestas primeiras tiras, Steve é um ex-piloto da força aérea que agora aluga seu avião comercialmente, envolvendo-se, eventualmente, com bandidos, escroques e femmes fatales que querem se aproveitar de seus serviços. 

O protagonista é um tipo "escoteiro" venturoso, cheio de virtudes, galã sedutor que guarda semelhança com astros de Hollywood da época, como Gary Cooper ou Cary Grant. O cinema dos anos 40, famoso pela abordagem noir (gângsters, detetives, violência urbana, pessimismo e estilização estética), inclusive, é frequentemente citado, direta ou indiretamente, e aventuras de guerra e aviação acabam se misturando a tramas sombrias, sórdidas. Há um quê de A Morte num Beijo em cada quadro desse começo de Steve Canyon, um tremendo flagrante do que é conhecer o contexto da arte dos anos 40.

Porém, acima de tudo se destaca a arte e o estilo de Caniff, um dos gigantes da era de ouro, um daqueles muito poucos que antecipam a modernidade nos quadrinhos. Além dos temas, amadurecidos, o caráter semi-literário do texto - cada quadro é preenchido ao menos em sua metade por textos carregados de informações preciosas para as tiras, além de falas memoráveis, gírias e outras curiosidades – mostra o quão difícil era a rotina do autor de uma daily strip continuada. Histórias longas, com tramas complexas cheias de reviravoltas, eram narradas a conta-gotas, dia após dia, e estratégias interessantes para fisgar o leitor faziam da estrutura de linguagem destes quadrinhos algo imprevisível e ousado. Compreende-se mais claramente o papel de tanto texto (era preciso otimizar a história) e ao mesmo tempo a riqueza visual (profundidade de campo, figurinos detalhados, rostos caricaturizados) destes quadrinhos. Uma pena que a edição da L&PM, já um tanto velhinha, reduza tanto o tamanho das tiras (quase como thumbnails), diminuindo o impacto da arte deste gênio absoluto da nona arte.

02 - RICHARD STARK'S PARKER – BOOK ONE: THE HUNTER – Darwin Cooke (IDW Publishing, 2009): Esta exímia adaptação da série de romances modernos de crimes pulp baseados no famoso "cold-blooded sonofabitch" Parker se inicia com uma sequência em quadrinhos digna de antologia. Em doze impassíveis páginas que remetem à primeira aparição de Steve Canyon na famosa tira de Milton Caniff (ler resenha acima), Darwin Cooke vai fazendo seu personagem atravessar a cidade de NY com seu jeito hard-boiled, sem mostrar seu rosto (em planos subjetivos no estilo noir de Prisioneiro do Passado), pulando catracas brutalmente, xingando pessoas na rua, cuspindo no chão, soltando baforadas de cigarro (sem filtro!) na cara da garçonete, e por fim falsificando uma carteira de motorista. 

Apenas na página 20 é que visualizamos seu rosto embrutecido no espelho e já percebemos de cara: estamos diante da face da psicopatia. Parker é adaptado do autor de best-sellers sobre crimes Richard Stark (pseudônimo para Donald Westlake), e, por mais que sejam livros escritos nos anos 60, eles resguardam a estilística soturna de um Raymond Chandler, porém assombrada por uma violência quase típica da Nova Hollywood. Seria como um encontro de Sam Peckinpah com Dashiel Hammet. 

A adaptação de Cooke (lamentavelmente recém-falecido) é um exemplo sobre como se transpor ideário, ambientação e motivações de uma obra em uma mídia para outra. Esta sequência muda inicial é um modelo perfeito de declaração de intencionalidade, de força estética e perspicácia artística.

The Hunter, primeiro volume das quatro adaptações que o quadrinista fez de Stark, é uma história de vingança implacável e psicopática no último - motivo o suficiente para agradar a leitores de coração frio. Porém, é no aproveitamento maduro (em quadrinhos) do texto de Stark - com diversas soluções visuais espetaculares e cinematográficas - que Cooke efetivamente conquista os leitores ávidos por uma obra em quadrinhos incontestável. E esta verdade é tão pura quanto ver Parker assassinando seus oponentes com suas próprias mãos nuas.

03 - MENSUR – Rafael Coutinho (Cia. Das Letras, 2017): Depois de sete anos trabalhando neste indefectível romance gráfico, Coutinho nos entregou algo que desestrutura valores sobre modernidade, trabalho, obsessão e masculinidade. Leia a crítica completa aqui.

04 - ANGOLA JANGA – Marcelo D’Salete (Veneta, 2017): Este é o mais ambicioso trabalho em quadrinhos brasileiro de 2017. Épico, submetido a um minucioso escrutínio histórico e poderoso tanto em linguagem quanto em mensagem, não pode passar batido no cenário cultural brasileiro contemporâneo. Leia a crítica completa aqui.

05 - THE BLACK PANTHER – EPIC COLLECTION – PANTHER’S RAGE (O Pantera Negra – A Fúria da Pantera) – Don McGregor, Rick Buckler e Billy Graham (Marvel, 2016 [1966-1976]): Versão completa do arco mais ambicioso do Pantera Negra. Destaque para o apelo shakespeariano do texto de McGregor, e para a intensidade das tramas, puro “Marvel 70’s”. Leia a crítica completa aqui.

06 - JUDGE DREDD – THE COMPLETE CASE FILES 01 – Vários artistas (2000 AD, 2012/2014 [1977/1978]): 1977: ano completamente auspicioso para a criação de um clássico cyberpunk de contracultura, capaz de horrorizar cabeças mais frágeis mesmo no apocalipse que vivemos hoje, com Black Mirror e o escambau. Este primeiro volume das obras completas de Judge Dredd é exemplo perfeito de como um criador como John Wagner, associado a um time brutal de outros escritores e artistas, elevou uma ideia de iconoclastia tão típica do início da era Thatcher na Inglaterra ao status de epítome do pensamento pulp em quadrinhos sobre o apocalipse. 

Como sabemos, em Judge Dredd o personagem envelhece com o passar dos anos, o que torna este encadernado um “Ano 1” dos mais voluntariosos das HQs porque, bem, este é realmente o primeiro ano de aventuras do anti-herói. Aqui há uma panaceia de degenerações e deformações: hordas de gangues de punks truculentos, assaltos a ambulâncias para roubar procedimentos de cirurgia plástica, plantas carnívoras falantes, reality shows com a morte como consequência, rebelião de robôs nazistas. Este último arco, aliás, dos androides “Call-Me-Kenneth” e “Heavy Metal Kid” (uma das possíveis origens para o termo que elucida todo o rock pesado), é clássico e impagável: a “singularidade” vista da maneira mais crua e ogra possível (basicamente robôs gigantes e carniceiros, que odeiam humanos, destruindo tudo pela frente num complô irracional e beligerante). Porém, nada se compara à estultice autoritária do próprio Juiz Dredd, capaz de matar por uma multa de trânsito, capaz de prender um espectador por ver um canal de TV ilegal. 

O que escritores tarimbados como Wagner, Pat Mills e Malcolm Shaw querem dizer com a criação de algo desproporcional e sem controle como Mega-City One é que, no limiar de todo caos, inevitavelmente se apregoa o fascismo como solução fácil para restabelecer (apenas) uma ilusão de ordem. Na arte, nada menos que monstros como Carlos Ezquerra, Brian Bolland e Ian Gibson dão imaginário a este compêndio de horror cyberpunk e imoral que fez de 2000 AD uma revista realmente tão à frente do seu tempo.

Anarchy in Mega-City One

07 - CANNON – Wallace Wood (Pipoca & Nanquim, 2017 [1969]: Wally Wood no auge! Só isso seria o suficiente para venerar esta edição, mas além disso há ótimas histórias de espionagem, canastrice e erotismo saindo aos borbotões. Leia a crítica completa aqui.

08 - AQUI – Richard McGuire (Cia. Das Letras, 2017 [2014]): O experimento expandido de McGuire, levando a linguagem dos quadrinhos ao limite, é instantânea obra-prima e continuará sendo estudado por muitos e muitos anos. Leia a crítica completa aqui.  

09 - TUNGSTÊNIO – Marcello Quintanilha (Veneta, 2014): Como fugir, na análise da obra de Quintanilha, a clichês como “radiografia da cultura brasileira”, ou “desperta o universal por meio do local”? Sim, estou atrasado na leitura deste romance gráfico vitorioso praticamente em tudo que aborda, em cada elemento trabalhado, em cada nuance pensada, seja ela visual ou temática. Um breve, porém significativo, contato com o autor no II Encontro Entre TELAAs, em Brasília, elucidou um pouco para mim a capacidade de Quintanilha em agregar imaginários dos mais díspares e disparatados, de Barcelona e da independência da Catalunha, a correntes e pulseiras, sapatos alinhados, de uma Salvador disforme e trôpega, de um francês bem falado, até chegar a um quadrinho com a voracidade de um animal apedrejado na estrada. 

Creio que, para lá de uma leitura microscópica de certas idiossincrasias de um brasileiro do dia-a-dia, há neste autor o imprevisível em seu próprio trato pessoal, algo que anseia insaciavelmente pela originalidade, que não se contenta com menos que isso.

Tungstênio é realmente mordaz, na absoluta neutralidade de olhar em relação à moral de seus personagens: toscos, freaks e largados à deriva numa sociedade inseminada pela malandragem, por uma ética turva e porosa, por uma difícil separação entre uma noção pública e outra privada da vida. Outro clichê seria dizer que esta voracidade da narrativa - que entrecruza 3 ou 4 personagens num momentum que envolve crimes, passionalidade, ação civil e até certo romance – seria cinematográfica. Ora, que filme consegue alcançar tamanha vertigem? Tarantino, Hitchcock, Altman? É um trabalho para poucas pessoas, este mergulho sem remorso no abismo da narrativa. Mais que isso, para um brasileiro, Tungstênio parece aquele olhar desgostoso num espelho escroto em que vemos nossas piores deformidades físicas (cicatrizes, marcas de nascença). Mesmo assim, independente da classe social do leitor, há um certo conforto em parecer em casa, ainda que numa casa rota e cheirando a merda. Em relação ao fato de que essa obra tenha acumulado prêmios internacionais, surpreende apenas que os gringos tenham compreendido a natureza deste fedor. Ou que uma obra de gênio sobreviva independente a isso. E é aí que entra arte de Quintanilha. 

10 - WALT & SKEEZIX – 1927 & 1928 – Frank O. King (Drawn & Quartely, 2010 [1927/1928]): A “family strip” Gasoline Alley é famosa por algumas poucas “sunday strips” bastante originais em que seu autor Frank King trabalha aspectos de metalinguagem e possibilidades narrativas em páginas vibrantes que se tornaram exemplos paradigmáticos da versatilidade dos quadrinhos. Esta edição, que cobre os anos de 1927 e 1928 da tira, compila apenas o trabalho diário do autor. Por mais que Gasoline Alley já existisse havia seis anos quando este material foi produzido, ainda estamos um tanto distantes daquelas sundays que ainda encantam a todos como paroxismo da linguagem das HQs.

Gasoline Alley (aqui chamado apenas Walt & Skeezix – nome dos protagonistas – por questões de direito autoral) é o segundo quadrinho mais longevo da história dos EUA (perde só para Os Sobrinhos do Capitão), e é publicada até hoje com seus personagens envelhecendo em “tempo real”. Emociona entrar em contato com os primórdios da tira, quando o bebê (Skeezix) adotado por um “tio” de bons valores e correção moral (Walt) ainda é uma criança inocente.

As belezas de se ler esta obra-prima dos anos 20 (numa magnífica edição da Drawn & Quaterly prefaciada por ninguém menos que Chris Ware) está em aspectos diversos: primeiro, pela delicadeza e sutileza com que seu autor trabalha ao mesmo tempo temas e linguagem. Estas tiras usam recursos visuais diversos. Soluções como paralelismos, aliterações, descrições literárias e repetições interessantes nos quadros nos mostram que King desde sempre compreendeu o potencial desta forma de arte mesmo num espaço limitado como a tira diária. 

Além disso, temos um panorama riquíssimo da vida numa família americana burguesa dos anos 20: sabemos o que comem, como se comunicam, o que vestem, quais suas preferências estéticas e morais. Além disso, a tira está circundada por uma densidade psicológica difícil de achar mesmo nos filmes americanos da época – alternando momentos poéticos com melodrama de primeira e uma intensidade agridoce que não é diferente da vida real. Dois anos de Gasoline Alley podem parecer um recorte pequeno em tão longeva trajetória, mas é uma metonímia para se compreender a mentalidade sobre os quadrinhos da época (muito mais avançada do que se pode imaginar) e também a mentalidade sociopolítica dos próprios EUA: King, ao contrário da Harold Gray (de Little Orphan Annie) e Chester Gould (de Dick Tracy) – notórios  simpatizantes do Partido Republicano que ansiavam por uma América mais secular – era reservado politicamente e acreditava em micro-valores que se expressam no trato pessoal e na bondade de cada um, algo que resplandece em seu herói do dia-a-dia Walt, talvez o melhor “bom americano” das HQs. 

11 - AL CAPP’S LI’L ABNER – THE COMPLETE DAILIES & COLOR SUNDAYS – VOLUME TWO 1937-1938 – Al Capp (IDW Publishing, 2010 [1937/1938]: Diferentemente de Gasoline Alley (ler resenha acima), a tira Li’l Abner (Ferdinando, no Brasil) prescinde de poesia e de um olhar sutil sobre as vicissitudes da burguesia americana e do american dream. Aqui o papo é mais reto e o humor, escarninho, come solto. “Desde Mark Twain não surgia uma sátira tão arrasadora dos costumes do homem, nos Estados Unidos”, afirmou o saudoso Alvarão de Moya.  De fato, Li’l Abner é um demolidor de sonhos, uma metralhadora giratória que não poupa qualquer aspecto da vida americana, especialmente pós-depressão, como é o caso deste compilado, que cobre os anos de 37 e 38. Seu polêmico criador, Al Capp, politicamente pendeu para a direita e para a esquerda em sua vida, geralmente indo contra o que o establishment acreditava. A tira só parou em 77, dois anos antes de sua morte. Em 1937 Capp tinha apenas 19 anos, mas os elementos que tornaram Li’l Abner um clássico imortal já estão todos lá: o vilarejo rude, caipiríssimo, de Dogpatch (“Brejo Seco” no Brasil), com a família Yokum (“Buscapé”) e sua cristalina inocência e valores de “bom selvagem”, submetidos a um contraste não apenas com hillbillies perversos e degenerados (os Scraggs, versão 30’s para o white trash atual) como também com os habitantes de “Noo Ywak”: geralmente pessoas despudoradas e sacanas – magnatas, gângsters, donos de cassino, golpistas e trapaceiros. O próprio Abner é um tipo atlético abobalhado, bruto como um bloco de concreto, aquilo que Clark Kent seria se tivesse caído no mundo real.  E Li’l Abner ainda abusa de recursos de quadrinhos, seja para disparar uma continuidade empolgante nas tiras diárias, seja para tornar mais lúdicas e saturadas as tiras dominicais. Quanto ao famoso uso do inglês caipira como elemento de subversão (tendo sido comparado até a James Joyce), eu li e vos afirmo: é tudo verdade! Capp tinha uma visão incisiva sobre oralidade e sobre como o modo de falar deflagra todo um ambiente cultural. De certa forma, é como ler Shakespeare no original: no começo parece impossível, mas, depois que você domina uns termos-chave, a coisa deslancha. Afinal, “ef yo’ has faith in me Mammy – ah kin do it!”   

12 - ESTUDANTE DE MEDICINA – Cynthia B. (Veneta, 2017): A visão que a talentosíssima Cynthia propõe para a fuleiragem brasileira (e suas crises existenciais) em seu primeiro romance gráfico não é coisa de principiante. Vai pro trono! Leia a crítica completa aqui.

13 - TABLOIDE – Leandro Melite (Veneta, 2017): Eis aqui a sinergia perfeita entre um roteiro sólido e empolgante, personagens vivos e idiossincráticos e uma arte arrasadora, esplendorosa. Alguém duvida que Melite está no panteão atual do quadrinho nacional? Leia a crítica completa aqui.

14 - LE COMBAT ORDINAIRE (O Combate Ordinário) – Manu Larcenet (Dargaud, 2003): O traço delicado e, pode-se dizer, até infantil de Manu Larcenet pode enganar à primeira vista. A sinuosidade das linhas e o apego à sua morfologia (algo que lembra até Schulz) nos remetem a uma melancolia boa, saudável, até amena. O prospecto desta premiada BD (ganhou Angoulême), porém, nos direciona a uma mais profunda configuração existencial. O “combate ordinário” de um jovem fotógrafo em crise, incapaz de tomar decisões que deem rumo definitivo à sua vida (pontuada por graves crises de ansiedade), tem a intenção de ser a luta interna de cada um de nós. Lembra a despretensão com que o ordinário é colocado como matéria-prima literária na série de romances Minha Luta, do autor norueguês Karl Ove Knausgard. Em meio à vastidão desta busca pela alma, temas contemporâneos emergem: a ascensão dos Le Pen na França, a guerra da Argélia, a utilidade da fotografia, a fragilidade dos relacionamentos (com irmãos, com bichos ou amorosos). Le Combat Ordinaire pode usar como subterfúgio uma forma em quadrinhos totalmente clássica (a modernização do álbum), mas dá sentido e perenidade a ela, mostrando que a velha BD ainda tem seus cartuchos para queimar.     

15 - SSHHHH! – Jason (Mino, 2017): Para o louco que ainda não leu a obra do norueguês Jason (um dos grandes da HQ contemporânea), este Sshhhh!, poético, intenso e rebuscado, é ótima porta de entrada. Leia a crítica completa aqui.

16 - QUARTIER LOINTAIN (Bairro Distante) – Jiro Taniguchi (Casterman, 2006 [1998, 1999]): Taniguchi, um dos grandes do quadrinho mundial, se foi em 2017. Era tempo de ler sua obra-prima, um mergulho íntimo (viagem no tempo inclusa) nas relações familiares japonesas de hoje e do passado. Leia a crítica completa aqui.