UGRA FEST 2017: Pequeno diário de uma grande epopeia

por Márcio Jr.

Foi-se o tempo que andar de avião estava tranquilo e favorável. Agora, toda vez que precisamos nos deslocar algumas centenas de quilômetros, a velha pesquisa de mercado obrigatoriamente entra em cena, buscando opções minimamente viáveis. Foi o que fizemos eu e Márcia Deretti – minha companheira de trampo e de vida – para participarmos da UGRA FEST 2017. Um livro novo fumegando debaixo do braço e a vontade de rever uma montanha de amigos forneceram o álibi perfeito para a viagem. Resolvemos, inclusive, chegar dois dias antes. É essa jornada que divido agora com você, prezado leitor Raio Laser.

O vôo de ida saía de Goiânia quinta-feira, 06 de julho, às 05:57 da madruga. Questão de preço, óbvio. Depois de passar dias finalizando o livro a ser lançado, além de reunir materiais pra banquinha e afins, consigo fechar as malas por volta de 02:30h. Coloco o despertador para apitar às 04:00h e... é lógico que programei tudo errado! Por sorte, a Márcia acordou às 04:20 e saímos os dois correndo como loucos rumo ao aeroporto. Agradeço publicamente ao SpeedRacer que pilotava nosso Uber.

Douglas e Daniela Utescher; e o Márcio!

Na fila do embarque, damos sequência ao calvário. As novas regras de bagagem me obrigam a fazer um remanejamento entre malas. Estávamos dentro do peso permitido, mas agora existem restrições de volume. Tira uma cueca daqui, passa uns livros pra lá e tá feito o negócio. Uma das malas que iria despachar agora tem que ser levada em mãos.

Com o tempo sempre apertado, vamos para o embarque. Quando a mala passa pelo detector, a funcionária me diz que há ali dentro objetos parecidos com CDs, uma tesoura e algo orgânico não identificado. Ela pede para revistar a bagagem. Os CDs, na verdade, eram os vinis do Mechanics que eu levava para a feira. Entrego para ela a tesoura – que, apesar de pontiaguda, estava dentro do tamanho permitido. Já o tal “orgânico”... Me lembro que a única coisa orgânica que havia colocado naquela mala – que deveria ter sido despachada, lembrem-se bem – eram uns certos cigarrinhos de artista. Sou um artista. Estava a caminho de uma feira de artistas. Me parecia absolutamente razoável portar meus próprios cigarrinhos de artista.

Revira a mala daqui, futrica acolá e eu, anos de Actor’s Studio nas costas, impassível. Num dado momento, fecha a mala. Penso que estou livre. A fulana diz então que irá passar novamente a bagagem pelo detector. Como bom ateu, entreguei pra Deus. Ela olhou pelo equipamento e me mandou essa: “Tem malas que têm algumas coisas orgânicas mesmo, que a gente não consegue identificar. Boa viagem.”

Adrenalina a mil, entro no avião e encontro minha poltrona. De repente, pelos autofalantes da aeronave, ouço o comissário solicitar: “Gostaríamos que se identificasse o Senhor Marc... elo”.Nova descarga de adrenalina. A essa altura do campeonato, barba branca, dois filhos no lombo, passar por esse tipo de emoção barata não é mais tão divertido quanto no passado.

Chegamos ao Tukkkanistão. Nos hospedamos no hotel São Paulo Inn, Largo Santa Ifigênia, centrão. Hotel charmoso, porém decadente. Fachada lindona das antigas, quarto meio baleado. Do jeito que eu gosto, mais do que mereço. Fazem nosso check-in antes do almoço. A sorte começa a mudar.

Rolê básico pela região, almoço de lei no Sujinho. De noite, encontramos o grande Lauro Larsen, que acaba de editar, pela Mino, a pérola Os Morcegos-Cérebro de Vênus e Outras Histórias – aguardem resenha muito em breve aqui no Raio Laser. Numa churrascaria nas imediações do hotel, tomamos umas tantas longnecks e uma cachacinha para espantar o frio, enquanto papeamos sobre mercado editorial brasileiro de HQs, quadrinistas nacionais das antigas, além de avançarmos num projeto para um futuro próximo. Lauro é o cara.

Dia seguinte, peno no purgatório – Rua 25 de março – para chegar ao paraíso – Mercado Municipal. Pastel de bacalhau, sanduíche de mortadela e chope me fazem acreditar que a vida pode ser uma poesia sem fim. E aí não resta alternativa a não ser ir ao cinema conferir o novo filme do gigante dos quadrinhos (entre outras tantas searas) Alejandro Jodorowsky. Muita felicidade ver Jodorowsky em ação, esbanjando vigor aos 88 anos de idade, num filme que poucos teriam colhões e/ou talento para dirigir. Coisa fina. Encerramos a noite na Bella Paulista. Deixo um rim como parte do pagamento por uma salada, um omelete e quatro chopes.

Manhã de sábado, dia 08 de julho. Ouriçados, mala estufada de livros, gibis e quetais, tomamos o caminho da UgraFest 2017. O Sesc Belenzinho, local onde ocorre o evento, é longe do centro. Mas a estrutura do lugar compensa a distância. Gigantesco e maravilhosamente bem-cuidado, recebe o festival de forma pra lá de apropriada.

Procuramos nossa mesa e, felicidade, estamos ao lado do grande chapa (e quadrinista) DW Ribatski. Nesse primeiro instante já era perceptível o cuidado com que o casal Ugra, Douglas e Daniela Utescher, organizaram todo o evento. Os mais de 100 expositores estavam dispostos não de forma aleatória, mas por afinidade. A UgraFest é um evento que se pauta pela diversidade dentro da produção gráfica independente, o que faz com que os mais diversos tipos de propostas estivessem ali representados. Publicações bagaceiras, alternativas, experimentais, sofisticadas, indie, punk, roqueiras, mainstream e o que mais fosse possível – com exceção feita à produção meramente comercial – tiveram guarida nesta edição. E dispor autores e publicações de forma inteligente criou uma cartografia belíssima da produção independente brasileira.

Ribatski logo participaria de um dos primeiros debates do evento. Durante o período, tomamos conta de sua banca.Os debates e palestras foram outro dos diversos pontos fortes da UgraFest 2017. Temas e convidados escolhidos por quem entende do riscado geraram uma discussão absolutamente relevante para o momento que o mercado editorial brasileiro atravessa. Infelizmente, por causa da feira em si, não pude participar de nenhum destes bate-papos, apesar da vontade imensa. Então, como eu sei que foram bons mesmo? Ora, quem foi, comentou. E não sou burro de duvidar da categoria de gente como Laerte Coutinho, Rafa Campos Rocha, Fabio Zimbres, Luiz Gê e Ramon Vitral.

Crazy people: Ribatski, Márcia e Márcio

O público compareceu em peso ao evento, garantindo vendas ao menos razoáveis por ali. Não tenho números, mas estava bonito de se ver, ainda em que nenhum momento as coisas tenham ficado inviáveis pelo excesso de gente. Ou seja, se você é fã de filas (e, consequentemente, super-heróis), provavelmente ficaria decepcionado com a UgraFest. Ali, autores estavam o tempo todo disponíveis, felizes e abertos ao contato direto com seu público. Acho esse papo furado pra cacete, mas não vi nenhum momento de estrelismo durante todo o evento.

Estrela da festa, Marcatti, esbanjando a simpatia que lhe é peculiar, estava felizão com a exposição que montaram em homenagem aos 40 anos de uma carreira que inaugura e é síntese da produção independente brasileira. 40 artistas criaram versões únicas para o Mickey Mouse (ou Fritz, the cat, como queiram) de Marcatti: Frauzio.

Final do primeiro dia, arranco coragem do fundo da alma e atravessamos a cidade rumo à Laje – projeto/espaço cultural pilotado por DW Ribatski em Sampa. Aparece por ali a fina flor dos quadrinhos independentes brasileiros: Zimbres, Pedro Franz, Gerlach, Tiago Elcerdo, Pablo Carranza, Chiquinha e outros tantos. Cerveja rolando forte e um tal Karaokê. Márcia encara Patti Smith, mas o must da noite foi ver Zimbres atacando de bossa nova. Fomos embora antes dele mandar um Nirvana. Melhor assim.

Domingão. Uma leve ressaca faz com que nos atrasemos um pouco para a feira. Nada demais. O dia segue frenético. Lendário, Ota segue com transmissões ao vivo de seu celular podreira, enquanto vende a Garota Bipolar nº 2. Gerlach rouba a cena com Nóia, Uma História de Vingança em parceria com a galera da Escória Comix – que também lança o clássico instantâneo Úlcera Vortex Vol.II. Mas nem só de bagaceirices vive o homem. A Ugra também abarcou o pessoal dos zines gourmet. Belas edições e tiragens limitadíssimas. Impressões risográficas e ideias fervilhando. Muito legal também foi ver editoras como Zarabatana, Veneta, Marsupial, Draco e Mino travando contato direto com o público. Classe.

WAZ, Ota e Marcatti: não é pouca merda!

Pense na CCXP. A UgraFest não tem nada a ver com isso. Em um esforço meio grosseiro, poderíamos situar o evento do casal Utescher entre o experimentalismo da Feira Plana e a “HQ relevante nacional” do FIQ. Não que a feira esteja restrita apenas aos quadrinhos, mas este é, com certeza, seu carro-chefe. Quadrinhos para quem não lê apenas quadrinhos, por assim dizer. E neste sentido a Ugra joga papel fundamental no panorama brasileiro: o de tratar as HQs como uma linguagem madura, sofisticada e não restrita a um leitor incapaz de vivenciar experiências que transcendam o universo Super-Herói/MSP. (Um leitor verdadeiramente adulto, em última instância.)

O público que passou pelo evento está anos-luz de distância daquilo que chamamos de nerd.

Final de feira, correria total. Últimas vendas, trocas, contatos. Voltamos ao hotel com a expectativa de ainda sairmos para comer e beber algo. Ledo engano. Peço uma pizza, taco fogo num daqueles cigarrinhos da mala e fico um tempão na sacada do quarto, observando o Centro de São Paulo, sua arquitetura, o movimento que acontece durante a noite. Bela viagem.

Algumas das "coisas de artista" que estavam na mala do Márcio

O que ficou da UgraFest 2017? Uma onda positiva nos ares do mercado independente nacional. A mesma crise que me fez comprar um vôo de madrugada é responsável pelos golpes que editores e autores estão enfrentando no Brasil de agora. Vi a esmagadora maioria dos participantes saírem dali renovados, baterias recarregadas, não só pelas vendas – que muitas vezes não justificam o investimento financeiro de autores que vêm de outros Estados – mas principalmente por participarem deste momento incrivelmente rico que vive a produção independente. Existe uma rede de criatividade e ousadia espalhada por essa tranqueira de país. Existem trabalhos incríveis sendo concretizados. Existe gente do mais alto calibre discutindo e problematizando tudo isso. Em tempos horrorosamente negros como estes, Douglas, Daniela e a UgraFest dão a fita: um dos caminhos da resistência está na arte que transgride e não se acomoda.  E no prazer em produzi-la.

As sombras, sempre





















por Ciro I. Marcondes

O expressionismo é um padrão visual e conceitual que, com o passar do tempo e diluição bem rala de suas origens, acabou deixando de ser uma estética completa para se tornar uma espécie de estilema. Digo isso porque, na maioria das coisas que vejo com influência expressionista, parece existir uma intenção bem explícita de parecer expressionista, como se identificar essa predileção fizesse parte do processo de entender estas obras. Isso faz com que sempre esses efeitos pareçam somente lisonjeiros ou até paródicos. Daí coisas como o cinema de Tim Burton ou boa parte desses filmes de terror asiáticos. Nos quadrinhos acho que o fenômeno se repete, sendo o estilema um conjunto de dados visuais bem fechado. A gente pode achar isso desde na clássica história de Spiegelman “Prisioneiro do planeta inferno”, que aparece também em Maus, até nas adaptações de Kafka feitas por Peter Kuper, legais, mas bem óbvias, apesar de um quadrinista como Mutarelli flutuar na direção de uma composição bem mais orgânica com o tema.

É aí que vejo o maior mérito (não pequeno, e não único) da graphic novel Três sombras, do francês Cyril Pedrosa, premiada em Angoulême e publicada aqui pela Cia. das Letras. Curiosamente famoso por animar Hércules e Corcunda de Notre Dame para a Disney (guardadas as proporções, a base do traço é a mesma de Três sombras), Pedrosa acabou escrevendo um conto de fadas não apenas com franca inspiração expressionista, mas que também traz o conteúdo essencialista de seu arcabouço estético e filosófico sem parecer estar fazendo um monte de citações inócuas. Três sombras tem muita força estilística e conceitual, e a beleza de sua história aproveita, de maneira muito pessoal, o fundamento expressionista sem recorrer a um estilema visual.


Vejamos: supostamente direcionado às crianças (talvez para causar-lhes pesadelos), Três sombras é uma HQ muito adulta, em que um pequeno núcleo familiar e rural, situado num tempo imemorial (mas que se assemelha à idade mercantil), que convive harmoniosamente em laços legítimos e comoventes, precisa lidar com a chegada de três viajantes (“sombras”), que nunca se aproximam, nunca se revelam, mas das quais sabe-se bem o propósito: vão levar o filho Joachim, para nunca mais trazê-lo de volta. A harmonia então transmuta-se num conto de angústia até que o pai, Louis, decide forçar a barra e carregar o filho para longe das sombras, saindo do pequeno geno da fazenda e abrindo os horizontes do filho e de si mesmo para “mares nunca d’antes navegados”, numa jornada sinistra com tipos cada mais estranhos e perversos entrecruzando-se no caminho dos dois. A jornada em busca da vida é também, portanto, uma jornada de descoberta, amadurecimento e enfrentamento.

A qualidade gráfica do trabalho de Pedrosa é exasperante e exultante. Logicamente está presente um alfabeto expressionista básico, com contrastes de luz e sombra, mas o autor sabe bem subvertê-lo e deixar sua influência mais transparente. Ao contrário da angulação excessiva, tradicional nos decalques do estilo (imagino que a origem de tudo ainda seja a tosqueira que é O gabinete do Dr. Caligari), Três sombras é uma obra de fluxo livre, bem mais simbolista, alternando figura e fundo, eliminando as fronteiras entre os requadros, com linda modulação de movimentos e matizes de giz e grafite que se adaptam às tensões emocionais das cenas. Este era um dos princípios tanto das encenações teatrais expressionistas (basta pensar nas obras de Wedekind ou Strindberg) quanto na pintura expressionista do fim do século 19, que deu origem a tudo: o expressionismo não é uma deformação óptica (como o impressionismo ou esses decalques), mas sim uma visão produzida a partir das ambiguidades internas do indivíduo, uma expressão do “eu”. Em uma Europa perturbada por longa sequência de guerras e com a arte entrando em crise profunda, a busca por uma essência gutural, longe da técnica, que retomasse nossa animalidade intrínseca, acabou sendo fundamental para abalar a noção iluminista de indivíduo que até então vigorava.  É por isso que, mais do que uma estética manjada de embelezamento gótico, o expressionismo é também uma filosofia em si, e suas obras narrativas são sempre alegóricas. De Da aurora à meia-noite a um filme como Nosferatu (Murnau), a histórias projetadas são transvisualizações (o que nos leva a pensar em como este conteúdo ajudou a fomentar a psicanálise ou o surrealismo) de nossas próprias funções mentais, e assim acontece em Três sombras.

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O que temos nesta HQ seria uma redução bem primal de certas angústias básicas e inevitáveis, num conto de fadas que ao mesmo tempo não deixa de ser uma aventura encantadora. O medo da morte, medo do crescimento, do envelhecimento, da fragmentação familiar, de perdermos nosso Éden originário (a infância, a família), de encararmos o lado torpe do mundo, etc., são temas que vão tomando estas formas oníricas, e a de se estar sonhando também é uma sensação que Três sombras nos transmite. A saída deste Éden (útero) primaveril e telúrico de pai e filho leva a um mundo de extorsão, repleto de canalhas, dissimulados, cretinos e psicopatas. Louis acredita que a força inesgotável de seu amor paternal é suficiente para vendar os olhos de seu filho para esta realidade inevitável, mas o roteiro de Pedrosa nos mostra que a persistência é também um ato dilacerado e inútil. O luto pesado, portanto, diante da morte ou do crescimento (growing pains), é algo graficamente e simbolicamente traduzido nas páginas de Três sombras. Este luto, natural a cada um de nós, é a metáfora que reside na sombra expressionista, para a qual sempre olhamos de um jeito torpe, difuso, à meia-luz.

Esta redução a arquétipos, tão mitologicamente proposta pelos pintores e dramaturgos alemães que previam uma grande transformação da psiquê humana com a virada daquele século, tem sempre na figura sinistra da morte uma concentração simbólica maior. Em Três sombras, quando a morte aparece, é para, como sempre, reafirmar seu caráter de inexorabilidade, sua emulsão sem fim de angústia, ainda que de forma plácida. Ela surge apenas para afirmar que “não pode revelar” o que há do outro lado da travessia, da mesma maneira que faz no clássico filme O sétimo selo, de Bergman, quando afirma ao cavaleiro Antonius Block “não saber” o que acontece com as almas depois que elas partem. Este filme, não por coincidência, parte do mesmo princípio de originalidade de Três sombras: investe num profundo mergulho do inconsciente expressionista sem citá-lo, sendo-o sem procurar sê-lo. É o grande mérito de artistas cada vez mais raros que, de fora do ambiente histórico e cultural que gerou esta forma de expressão, conseguem pensar, naturalmente, de forma expressionista. Três sombras, uma grande HQ, acaba de entrar para um clube seleto.              

As sombras, sempre