Rapidinhas Raio Laser #09: especial Catarse

Vaquinhas virtuais chegaram para ficar. Goste ou não, o fato é que cada vez mais criadores estão utilizando o financiamento coletivo para viabilizar seus projetos. É aquela história: se tem gente interessada em bancar, por que não lançar? A coisa está especialmente disseminada nos gibis, principalmente em razão dos valores de produção, relativamente baixos se comparados aos de outras mídias. 

Aqui na Raio Laser já virou praxe fazer resenha de gibi independente. Aí pensamos em fazer um post exclusivamente dedicado às HQs que compramos por meio de vaquinhas virtuais, afinal elas continuam sendo independentes, certo? 

Na análise abaixo, a tendência é que façamos comentários positivos sobre os gibis adquiridos, já que só financiamos autores nos quais realmente acreditamos. Por isso os quadrinhos a seguir provavelmente receberão elogios rasgados. Será mesmo? (MMA)

por Marcos Maciel de Almeida e Ciro I. Marcondes

R’lyeh Boy – Caio Oliveira (Quinta Capa, 2017): R’lyeh Boy é uma sátira de ... Bem, se você não sabe, está na página errada. Busque conhecimento sobre a série mais longeva de Mike Mignola e volte aqui. R’lyeh faz referência à cidade submersa fictícia criada por HP Lovecraft, prisão do deus adormecido Cthulhu. Não sabe quem é Cthulhu? Resumo de três linhas: é um deus/entidade alienígena que está dormindinho na Terra e vai despertar qualquer hora dessas para tomar o que é seu, ou seja, o nosso planeta. Enquanto ele dorme, humanos mais sensitivos são afetados por seus sonhos e, gradualmente, passam a enlouquecer, barbarizando geral. O visual de R’lyeh Boy é claramente inspirado em Cthulhu.  R’lyeh Boy é funcionário de uma empresa que resolve problemas sobrenaturais. No gibi em questão, R’lyeh Boy é despachado para enfrentar avatares de jogadores de RPG (boa sacada, Caio!) da Terceira Dimensão (a nossa!). Os avatares invadiram o reino dos desmortos e estão botando pra quebrar. E isso é assunto pro nosso herói, claro. A pegada de Caio é enviesada para o humor e ele se sai muito bem nisso. Afinal, não é de hoje que ele vem fazendo a alegria da galera com a sua página “Cantinho do Caio” no Facebook. O gibi vem com uma série de “plus a mais”. Tem pin-ups espirituosos, piadinhas extras e adesivo engraçadinho. Simpático. 

Pensando aqui com meus botões. Enquanto Cthulhu dorme, ele segue influenciando a vida na Terra com sua presença no inconsciente coletivo. Já pensou se isso estiver acontecendo na real? Já imaginou se o próprio HP Lovecraft não for seu criador, mas mero fantoche que ajudou a propagar os mitos de Cthulhu e sua turminha da pesada, os “Old Ones”? Cthulhu é figurinha fácil na literatura, na música, no cinema, nos video-games e – por que não? – nos gibis. Nos últimos anos saíram – apenas no Brasil – pelo menos três quadrinhos relacionados ao mito alienígena (R’lyeh Boy, O Despertar de Cthulhu e Rio Negro. Pode ser que nós também estejamos contribuindo para a disseminação do imaginário do monstrengo. Mas bem, isso é papo para outro post. Por hora fiquemos com o gibi do Caio. É uma ótima pedida. Especialmente para ser apreciado antes do eventual despertar de Cthulhu. (MMA)

Adesivo maneiro pra barbarizar com seu vizinho evangélico

Anuí Lelis (Independente, 2017): A caixa de música de pequena Alice quebrou. Seu choro de desconsolo está acordando a cidade inteira. Ela e sua mãe levam a caixa de música para arrumar. O consertador é o cara mais odiado da região, daqueles que fazem até o capeta passar raiva. No entanto, tudo muda quando toca o telefone da casa de reparos. Quem será?  Esse é o resumo livre de spoilers de Anuí. É uma história simples, mas nada simplória. É, sobretudo, um trabalho de entrega. Lelis transmutou sangue, suor e lágrimas em papel e tinta guache para criar mais uma de suas obras de arte. O painel de cada quadrinho seu – é clichê dizer isso, mas fazer o quê? – merecia ser emoldurado e apreciado na parede. Lelis se esmera para pintar cada tijolo, cada pedra, cada telhado. Lelis é operário dos quadrinhos. Lelis é pedreiro. Com Lelis não tem tempo ruim. Lelis é gente que faz. Como em todo trabalho desse mineirinho desembestado, o gibi respira sutileza. É transporte certo para uma dimensão na qual as cores são mais vivas. Em que as pessoas não precisam caminhar, já que flutuam. Quando leio Lelis, é como se pudesse sentir cheiro de café fresco e pão de queijo assando no fogo à lenha. Trem bão demais, sô. Lelis é isso aí. Simplicidade e generosidade em doses cavalares. Falando em cavalo, nunca vou esquecer da primeira vez que o encontrei, no Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) de 2015.  Dei uma olhada na listagem de convidados no guia do evento. Todos bonitos e de banho tomado, em fotos reluzentes. Já Lelis aparecia montado em seu alazão. Quer mais autenticidade que isso?

Momento emocionante ligado a Anuí foi quando recebi – eu e todos que patrocinaram o gibi – o tocante e-mail de Lelis confessando seu descontentamento com o resultado final da revista. Na verdade, insatisfação não com o gibi em si, mas com o fato de que a versão que foi para a gráfica – por erro – foi a de baixa resolução. Eu nem tinha reparado. Fica triste não, Lelis. A edição ficou duca. 

Lelis já foi publicado na Europa, em vários gibis, inclusive Goela Negra, lançado pela Mino em 2015. Não é fraco não. Acho difícil que os gringos levem ele embora, porque o cabra não vai querer trocar o cheiro do mato “nacionar” pela grama sintética estrangeira. Apesar disso, acho que devemos aproveitar enquanto o cara está por aqui e prestigiá-lo. Lelis é mais. Lelis é Brasil. (MMA

Eudaimonia – Luciano Salles (Independente, 2017): Diferentemente do sci-fi freak/lisérgico de trabalhos como O Quarto Vivente e Dark Matter (e reaproveitando a personagem de Luzscia, a Dona do Boteco), em Eudaimonia Luciano Salles traz à tona um submundo degenerado cheio de personagens "figura", traficantes e drogados que apelam ao non-sense dentro de um ambiente mais urbano. A porraloquice, no entanto (ainda bem), permanece a mesma. Porém, a coisa ganha camadas pesadas de Geof Darrow, Frank Miller dos anos 90/00, além de pitadas de Rafael Grampá, para erigir um verdadeiro colosso visual, em P&B super hachurado, preciso nanquim e um hiper detalhismo estilizado que meio que se justifica por si só.  Digo isso porque, por mais que a história passe como um relâmpago, seja espécie de trecho entrevado de algo maior e possa ser lida em poucos minutos, o apelo visual desta HQ é algo que não passa despercebido nem pelo mais careta e equivocado crítico do estilo visual hiper detalhista. Já o enredo trata de um acerto de contas entre um matador de aluguel brutamontes e meio mongoloide vestido de onça, aliado a uma velha bem escr*ta, dona de um bar, que precisa de droga para aliviar artrites terríveis e coisas assim.  A ação é vertiginosa. Mangás de Katsuhiro Otomo e Tayo Matsumoto também marcam presença como influências para a degeneração urbana, e Eudaimonia se faz ensaio pra algo que poderia ser maior e mais robusto (portanto, mais cabuloso). Linhas de ação trôpegas cortam as operações alucinadas que fazem esse quadrinho parecer um curta-metragem (bem curto mesmo) ou um teaser de algo ambicioso que se anuncia.

Eu, pessoalmente, aguardo ansiosamente o romance gráfico monstruoso que Luciano Salles está ensaiando em todas estas histórias curtinhas, unindo esses temas todos parecidos e favoritos: o convívio doidão com drogas estimulantes e/ou psicotrópicas, personagens barra pesada sempre “under the influence”, histórias sci-fi perturbadores que funcionam como se Black Mirror não fosse tão careta, imersão em sonhos, delírios ou realidade virtual mesmo.

Eudaimonia realmente é um quadrinho legal, mas tem um certo jeito de “amostra grátis” que faz a gente pensar se não é tudo uma ação de marketing do autor para soltar sua obra-prima num futuro próximo. Estarei certo? (CIM)  

Black Emperors: Bikes vs Sk8s - Dalton Cara e Magenta King (Independente, 2017): Magenta King e Dalton Cara. Temos que ficar de olho nesses rapazes, que não estão para brincadeira. Depois de chutar nossas bundas com o não menos que espetacular 5/5, a dupla endiabrada ataca novamente para nos brindar com outra pauleira na moleira: Black Emperors.  Se tivesse que escolher apenas dois adjetivos para descrever o último fruto dessa parceria, seriam os seguintes: dinâmico e explosivo, como foi o próprio processo de produção da HQ, abundante em adrenalina. Explico. Em 2017, a dupla se propôs o desafio de produzir uma revista de 32 páginas em um mês. O processo de criação foi exposto durante as aulas que ambos ministravam na Quanta Academia e no Sesc Pompeia, contando com o feedback dos alunos. Após o sucesso da empreitada, os dois resolveram pegar ainda mais pesado e expandir os limites que se auto impuseram. A aposta agora era lançar uma edição com pelo menos cem páginas num período pouco maior que trinta dias. As doses de exposição também aumentariam. Por isso, cada nova página do gibi foi religiosamente postada nas redes sociais, permitindo o escrutínio do público interessado. Pergunta se os caras conseguiram passar pelo segundo teste? Para nossa alegria sim. Eis que é lançado Black Emperors: Bikes vs Sk8s, que compila os dois trabalhos acima. De que se trata o gibi? Bem, o título já entrega em parte, mas o confronto entre gangues de skatistas e ciclistas é apenas o pano de fundo para uma saga que envolve vingança, rebeldia e gratidão. Tudo isso num ritmo frenético. Lembra que eu falei que o gibi é dinâmico? Então, o quadrinho te pega pelo pescoço desde o primeiro quadro da primeira página – que já te lança no meio da ação – e não solta até que termine a leitura. 

Primeira página de Black Emperors

Um dos pontos positivos da HQ é a riqueza imagética dos personagens. Cada participante da trama tem linguagem e visual característicos, que parecem ter sido meticulosamente estudados. Curiosamente, o enorme talento para criação de personagens parece equivalente à capacidade dos autores para se livrar deles. A cada três páginas, cerca de quinze personagens morrem, apenas para dar lugar a novos coitados que partirão dessa para melhor na página seguinte. Apesar disso, a história mantém um fio condutor coeso e lógico, que não se cansa de transpirar diversão. 

Influenciados por Paul Pope, os autores resolveram alterar seu processo criativo, permitindo-se pequenas alterações de percurso e flexibilizações no roteiro, tudo isso em nome da diversão. E o gibi é puro reflexo disso. Black Emperors está aí para capturar os corações e mentes de leitores cansados de quadrinhos carentes de espontaneidade, criados a partir de receita de bolo. Pela leitura do gibi, fica evidente que Dalton e Magenta cresceram lendo doses maciças de gibis de super-heróis. O impressionante é que mesmo depois de comer tanto arroz com feijão, eles não se deixaram levar pelas fórmulas batidas do gênero. O mais bacana é ver que eles souberam aproveitar as influências para lançar novos olhares para o universo dos quadrinhos, fugindo de maniqueísmos e de personagens bidimensionais. Por isso, a trama de Black Emperors é altamente ousada e imprevisível. 

À moda de Howard Chaykin, os diálogos não têm espaço para didatismo ou explicações do tipo quem é quem. A história tenta emular o modo como as coisas como acontecem na vida real. Não há tempo para identificar cada um dos personagens, mesmo porque eles já estarão mortos nas páginas seguintes. O negócio é se deixar levar pelo vagalhão, sem fazer muitas perguntas. 

Não é fácil permanecer vivo no universo de Black Emperors

O leitor tem um ponto de vista privilegiado para observar o universo de Dalton e Magenta. Quem nunca foi dos grupos mais populares da escola – como eu – vai poder acompanhar de camarote uma realidade habitada exclusivamente por pessoas cool, tipo aquela turma da qual você nunca fará parte.

Black Emperors é uma espécie de versão quadrinizada e insana de seriados como Barrados no Baile e similares. Para mim, programas desse tipo suscitavam aquela sensação de fingir desprezo pela turma popular, mas sempre dar uma espiada torcendo para que os bonitões e descolados acabem se lascando. E o bom é que, em Black Emperors, quase todo mundo se dá MUITO mal. 

Para deleite dos leitores, o universo de Dalton e Magenta está todo interconectado. Fui ao delírio quando foi revelada a ligação do gibi com outra cria da dupla, o 5/5. Só posso terminar este texto dizendo: “Por favor, não parem. Continuem produzindo e eu continuarei comprando.” (MMA)

BONS QUADRINHOS QUE LEMOS EM 2015 - PARTE 4

A gente tinha falado que a lista do Pedro era a última, mas aí o nosso novo (e brilhante) colaborador Márcio Jr. nos enviou, como chave de ouro, mais estas 20 indicações de quadrinhos lidos em 2015. Totalizamos então 52 indicações devidamente resenhadas para você ler em 2016. Mãos à obra! (CIM)

Parte 1

Parte 2

Parte 3

por Márcio Jr.

Amo quadrinhos. Comecei a guardá-los desde que comprei Superaventuras Marvel nº 1, da Abril, em 1982. Da lá pra cá, a coisa meio que saiu de controle. Compro mais do que sou capaz de ler (ainda que toda compra tenha o claro - e fantasioso - propósito de ser lida em algum ponto do futuro). Não acho que isso seja muito saudável. Já pensei em terapia. Fiz as contas e percebi que ficaria mais caro que comprar os gibis. Sigo acumulando papel.

Numa tentativa de estabelecer um filtro nas aquisições, comecei a anotar na agenda todas as leituras e compras feitas ao longo do ano. Não deu muito certo. Em 2015, li em torno de 150 HQs. Devo ter adquirido o quádruplo disso. Ao menos serviu para mapear as leituras do período, o que nos traz a esta lista de melhores. Os meus melhores quadrinhos de 2015. (O que não quer dizer que tenham sido obrigatoriamente publicados em 2015. Alguns dos títulos estavam ali, esperando leitura há um bom par de anos.)

Listas são sempre subjetivas, incompletas, blábláblá. Dane-se. Esta é a lista que me agarrou pelas vísceras. Tem uma certa hierarquia nela, mas nada para se levar muito a sério. Eu mesmo não levo. Olhando para a lista, gosto de acreditar que seja uma bela porta de entrada para qualquer pessoa minimamente inteligente  que nunca leu uma HQ. Maurício de Sousa não vale. Faça o teste. Se não gostar, desista dos quadrinhos. A campanha do Bolsonaro precisa de você.  

1- TALCO DE VIDRO - Marcello Quintanilha (Veneta, 2015)

Mal baixamos a guarda após o nocaute provocado em 2014 pelo já clássico Tungstênio, e Marcello Quintanilha nos faz beijar novamente a lona com Talco de vidro. Niteroiense radicado em Barcelona, Quintanilha tem construído uma obra originalíssima, sem paralelos, transbordante de uma brasilidade impossível de ser capturada em clichês. Não por acaso, tem amealhado tudo quanto é prêmio (de  quadrinhos e literatura) ao redor do mundo. Em Talco de vidro - um tratado acerca da ordem indizível da inveja -,  mais uma vez expande seus próprios limites, gráficos e narrativos. De quebra, leva a linguagem das HQs a novos horizontes. Em lugar algum existe alguém fazendo quadrinhos como Marcello Quintanilha. Imperdível.

2- OS OLHOS DO GATO - Alejandro Jodorowsky e Moebius (Nemo, 2015)

Publicada originalmente no Brasil em 1987 pela Martins Fontes (em edição hoje raríssima  e disputada no fio da navalha por colecionadores), esta obra-prima finalmente retorna às livrarias, após inexplicáveis 28 anos. Cortesia da Editora Nemo - que diga-se de passagem, tem feito um belíssimo trabalho suprindo a inexplicável semi-ausência de Moebius em terras brasileiras. Simbolismo polissêmico, quadros que ocupam a totalidade da página, experiências envolvendo campo e contra-campo, a tensão dialógica estabelecida por uma arte alternadamente minimalista e detalhada, tudo isso está presente neste álbum, um clássico nascido do acaso, como nos explica o mago Jodorowsky em seu prefácio.  

3- A CHEGADA - Shaun Tan (SM, 2011)

A chegada, do australiano Shaun Tan, é daquelas HQs que dão vontade de sair mostrando para todo mundo, como prova irrefutável do quão rica, sofisticada e artística pode ser a linguagem dos quadrinhos. Uma epopeia tocante sobre migração, banhada em realismo fantástico. Tudo isso sem uma palavra sequer. Espetacular é pouco.

4. KAPUTT - Eloar Guazzelli (WMF Martins Fontes, 2014)

O multi-artista Eloar Guazzelli tem se tornado o maior nome de um gênero muito em voga nos quadrinhos brasileiros: a adaptação literária. Os dois Jabutis que ele papou em 2015 (um deles com este Kaputt, adaptação da obra do italiano Curzio Malaparte) não me deixam mentir. Guazza é também o quadrinista mais rápido de que se tem notícia: 700 páginas em seis meses é uma marca de deixar de orelha em pé velocistas lendários como Jack Kirby e Julio Shimamoto. A explicação me foi dada pelo próprio autor: "Quadrinho paga mal, então eu tenho que produzir muito para que seja viável economicamente." O xis da questão é que Guazzelli consegue produzir muito e com qualidade inquestionável. Para isso, desenvolveu uma estética muito peculiar, que converte brilhantemente urgência em estilo. Em Kaputt, profundo tratado acerca dos horrores do nazismo, baila entre diferentes abordagens gráficas, que vão do nanquim anoitecendo toda a página ao lápis de cor que beira o sublime. Um livraço, cujo lugar na estante é ao lado de Maus, de Art Spiegelman.

5 - COLEÇÃO HISTÓRICA MARVEL QUARTETO FANTÁSTICO Vol. 1 - Stan Lee e Jack Kirby (Panini, 2015)

O patético filme do Quarteto Fantástico teve ao menos um efeito colateral positivo: o lançamento no Brasil dos quatro volumes da Coleção Histórica Marvel, dedicados ao grupo que é a pedra fundamental da editora. Na primeira edição, Stan Lee e Jack Kirby estabelecem todos os parâmetros dos quadrinhos de super-heróis e nos entregam o que de melhor o gênero pode oferecer: personagens carismáticos, ação ininterrupta, imaginação tresloucada e arte embasbacante. O Dr. Destino, tema deste primeiro volume, é o único capaz de disputar com o Coringa o posto de vilão mais cool dos comics. É um pecado mortal as 102 edições originais do Quarteto, sob a batuta de Lee e Kirby, permanecerem sem publicação digna e completa no Brasil. São insuperáveis.

6- CASTELO DE AREIA - Pierre Oscar Lévy e Frederik Peeters (Tordesilhas, 2011);

AÂMA Vol. 1 - Frederik Peeters (Nemo, 2014);

PÍLULAS AZUIS - Frederik Peeters (Nemo, 2015)

2015 foi o ano em que finalmente entrei de cabeça na obra do suíço Frederik Peeters. Meu maxilar ainda está deslocado. O primeiro contato se deu no magnífico Castelo de areia, poderosa alegoria sobre o envelhecimento, onde a serena narrativa gráfica de Peeters dá o tom exato ao roteiro do documentarista oscarizado Pierre Oscar Lévy. Pílulas azuis, tocante HQ autobiográfica em que o quadrinista narra sua vida ao lado de uma portadora do vírus HIV está em todas as listas de melhores do ano. Nada mais justo. E o menos badalado (mas não menos espetacular) Aâma pode ser descrito como uma ficção científica existencialista. Três excelentes trabalhos que apontam em direções diferentes, unidas pelo senso de humanidade presente na arte de Frederik Peeters. Craque.

7- SERES URBANOS - vários (Independente, 2015)

No início dos anos 90, era pré-internet, Weaver Lima, Lupin e mais um bando de moleques cearenses criaram o coletivo Seres Urbanos e entupiram as caixas de correio do Brasil com uma tonelada de fanzines ultra envenenados, talento e transgressão escorrendo do papel. Fizeram história. Parte dela está registrada nesse livro (bancado com uma lei de incentivo local), indispensável em tempos de gourmetização fanzinística. Weaver garante que um segundo volume está a caminho, só com conteúdo impublicável. Mal posso esperar.

8. DAYTRIPPER - Fábio Moon e Gabriel Bá (Panini, 2011);

DOIS IRMÃOS - Fábio Moon e Gabriel Bá (Quadrinhos na Cia., 2015)

Falar sobre Daytripper é chover no molhado. Solidificou o nome dos gêmeos Moon e Bá dentro e fora do Brasil, ganhou prêmios, vendeu pra caramba. Merecidíssimo. (Mesmo com aquele papo estranho sobre plágio.) Depois de tanto sucesso, deve pesar bastante a expectativa sobre um próximo trabalho.

Dois irmãos, adaptação do romance homônimo de Milton Hatoun, veio para ratificar todas as conquistas pregressas. Não conheço o livro original. Ponto para a adaptação, que funciona espetacularmente como HQ. Salta aos olhos a verossimilhança dos personagens e seu entorno. Eu conheço aquela Manaus impressa no papel. E se é evidente a influência de Mike Mignola sobre Gabriel Bá, foi delicioso ver em seus desenhos ecos do saudoso Flávio Colin. Parafraseando a dupla, Daytripper e Dois irmãos são foda!

9- EISNER/MILLER - Charles Brownstein (Criativo, 2014)

Em 2002, durante um final de semana, o lendário Will Eisner (1917 - 2005) recebeu o não menos lendário Frank Miller em sua casa, na Flórida. Ali, os dois gigantes conversaram (e usualmente discordaram) sobre suas carreiras, quadrinhos, mercado, arte e cinema. Poucas vezes se viu um debate tão profundo e cheio de propriedade acerca das HQs quanto o que está registrado neste antológico livro. A edição da Criativo, graficamente superior à original norte-americana, desliza na tradução e no prefácio um tanto impreciso do Professor Nobu Chinen. Ainda assim, é um presente inestimável ao mercado brasileiro e a todos aqueles que se interessam seriamente por quadrinhos. 

10- MÁGICO VENTO Nos 32-40 - Gianfranco Manfredi (Mythos, 2005)

Tentaram rotular a saga de 131 edições de Mágico Vento como faroeste horror. É pouco. A epopeia do soldado Ned Ellis, que perde a memória após um terrível acidente e é adotado pelos índios Sioux, tornando-se um poderoso xamã que desconhece o homem que fora no passado, traz os limites característicos da Bonelli Editora (a mesma de Tex), tais como a obrigatória presença de um parceiro de aventuras (no caso, o jornalista Poe, sósia do escritor norte-americano) e  a disposição nada inovadora dos quadros na página. Todavia, a perícia do escritor Gianfranco Manfredi (que também é roteirista de cinema e TV, além de músico) leva a série em uma direção adulta e sofisticada, principalmente no que tange à representação nada maniqueísta da cultura indígena. Escudado por desenhistas do calibre de Pasquale Frisenda, José Ortiz, Goran Parlov e Ivo Milazzo, Mágico Vento é um fumetto comparável ao idolatrado Ken Parker. E como tal, não tem aquela babaquice caça-níquel dos super-heróis americanos, onde é impossível compreender uma história isoladamente. Qualquer edição que você pegar de Mágico Vento tem começo, meio e fim. Porém, lida em sua totalidade, a série adquire ares de grande romance americano. Made in Italy. Espero viver o suficiente para ler tudo.

11- NEXT MEN - John Byrne (Mythos, 2013)

John Byrne já foi o mais popular desenhista dos quadrinhos norte-americanos. Brilhou como ninguém nos títulos X-Men, Quarteto Fantástico, Tropa Alfa e Super-Homem. Mas as HQs estão longe de ser a mais generosa das profissões. Ondas se sucedem, turbinadas por impiedoso marketing corporativo - e o que era ouro para um geração, passa a ser lixo para a outra. Some-se a isso o desgaste natural de anos desenhando sem parar. Há mais de duas décadas Byrne não produz com a qualidade de seus tempos de glória. Tampouco faz o mesmo sucesso de outrora. Mas no início dos anos 90 ele ainda era quente e lançou Next Men pelo selo Legend (que também abrigava Sin City e Hellboy), da editora Dark Horse. Foi seu último grande trabalho. Vinte anos mais tarde, a Mythos publica pela primeira vez no Brasil um livrão coletando as 10 primeiras edições da série.

Next Men tem tudo aquilo que Byrne faz de melhor: a fusão entre ficção científica e super-heróis, desenhos vigorosos, cenários hipertecnológicos e roteiro capaz de segurar o leitor. O preço, como é de praxe na Mythos, é proibitivo: 100 mangos. Dá pra comprar quadrinho bem melhor com essa grana. Faça como eu: espere uma promoção. Vale a pena.

12- DEMOLIDOR Nos 7 e 8 - Mark Waid, Chris Samnee e outros (Panini, 2015)

Ao lado do Gavião Arqueiro, a série do Demolidor escrita pelo veterano Mark Waid é o comic book mais incensado e  premiado dos últimos anos. Não é pra menos: a concorrência é uma grandessíssima porcaria. Waid não reinventa a roda e nem tenta enganar o leitor com um suposto "conteúdo adulto". Ao contrário, ele conduz a série com apelo, suspense e simplicidade. As cores são corretas e condizentes com a arte (trocando em miúdos, você não ficará cego pelos efeitos de photoshop). E os desenhos de Chris Samnee são um espetáculo a parte. Sua clareza, equilíbrio e dinâmica narrativa remetem a mestres como John Romita e Gil Kane. Enfim, tudo que um gibi de super-herói tem a obrigação de ser. E pensar que ali pelos anos 70 e 80 quase todos os gibis da Marvel eram assim...

13 - HOMEM-MÁQUINA - Tom DeFalco, Herb Trimpe e Barry Windsor-Smith (Panini, 2015)

Taí outro gibi supimpa de super-herói, publicado originalmente em meados da década de 80. Trata-se de uma recauchutagem cyberpunk de um personagem secundário do panteão Marvel, criado pelo Rei Jack Kirby. Mas o que faz esta mini-série antológica é o retorno aos quadrinhos do magistral Barry Windsor-Smith. Após fazer história em Conan, o Bárbaro, o desenhista britânico sumiu do mapa, para voltar ainda melhor em Homem-Máquina. A capa dura e metalizada da edição da Panini são um quitute extra.

14 - MITCH O'CONNELL: THE WORLD'S BEST ARTIST (Last Gasp, 2014)

Como não poderia faltar um art book nesta lista, parti logo para o mais legal de todos: Mitch O'Connell: The world's best artist. Iconoclasta e sarcástico até falar chega, Mitch O'Connell reúne nesta deliciosa edição um apanhado geral de sua carreira de ilustrador, pintor e, eventualmente, quadrinista. Centenas de imagens do universo trash-pop do autor inundam as páginas, ancoradas em textos divertidíssimos. E se o recheio é quente, a embalagem não deixa por menos: capa emborrachada com aplique de purpurina, bordas arredondadas e um design matador que, por si só, já valeria a aquisição desta pérola. Duvido que seja publicado no Brasil.

15 - LIMIAR: DARK MATTER - Luciano Salles (Independente, 2015)

Luciano Salles vem se configurando como um dos quadrinistas mais sui generis (ou interessantes, ou pitorescos, ou estranhos, ou incômodos) da nova geração. Seus roteiros não se entregam na primeira leitura. Provavelmente nem na última. Possuem uma temporalidade enigmática, que provoca um desconforto cronenberguiano na leitura. E sua arte é acachapante, anfetaminada pelas cores de Marcelo Maiolo. Debaixo de camadas de personalidade, é possível, com algum esforço, encontrar fantasmagorias de Moebius, Mutarelli e Frank Miller (Elektra Vive). Melhor ficar de olho nesse sujeito.

16: ADORMECIDA: CEM ANOS PARA SEMPRE - Paula Mastroberti (8Inverso, 2012)

Os quadrinhos são apenas uma das áreas de atuação da artista e pesquisadora Paula Mastroberti. Entre 1988 e 1990 ela teceu para si mesma a intrincada tapeçaria que é Adormecida: cem anos para sempre. Ali cristalizou-se a paixão pelos contos de fada e pelos quadrinhos europeu de Moebius, Druillet e Crepax. Ponto para 8Inverso, que 22 anos depois conseguiu abrir essa arca secreta. Belo e atemporal.

17. PERPETUUM MOBILE - Diego Sanchez (Mino, 2015)

A lista não ficaria completa sem um livro da Editora Mino, responsável pelos lançamentos mais bacanas de 2015. Perpetuum Mobile, foi um deles. Diego Sanchez é um legítimo representante da novíssima geração de feras dos quadrinhos brazucas, ao lado de nomes como Pedro Cobiaco e Felipe Nunes. Eles têm em torno de 20 anos e chegaram sem o menor respeito, com o pé na porta. Os quadrinhos de Sanchez possuem uma atmosfera etérea, fluida, com um senso muito peculiar de disposição dos quadros na página. Ainda em 2015 ele lançaria Hermínia, um livro mais elaborado, bonito e bem estruturado. Mas Perpetuum Mobile possui uma espontaneidade que faz dele o meu favorito até o momento.  

18- A SOBREVIVENTE - Paul Gillon (Martins Fontes, 1988)

Paul Gillon (1926-2011) foi um mestre do erotismo francês. Sua arte irrepreensível, elegante e de clássico refinamento nos conduz em A sobrevivente - ficção científica pós-apocalíptica que retrata um mundo onde apenas um belíssima mulher parece ter sobrevivido. O robô da capa ficou bem feliz. 

19- GAROTA SIRIRICA - Lovelove6 (Independente, 2013)

2015 foi um ano decisivo para as quadrinistas no Brasil. Tomaram as redes sociais de assalto e fizeram um barulho gigantesco no FIQ. Não era sem tempo. A presença das mulheres como autoras e leitoras de quadrinhos é algo que precisa ser imediatamente discutido e potencializado. Como ponta-de-lança dessa agitação toda está Gabi, a Lovelove6, e sua irresistível Garota Siririca. Seu mérito? Produzir um quadrinho que é engajado, mas também divertido e instigante. Isto é, um quadrinho que sobrevive como linguagem, para além de sua função política. Gabi tem a manha.

20- O BABACA - Gary Panter (A Bolha, 2012)

Gary Panter é o pai da punk art, do desenho feio e sujo, influenciando todo mundo de bom gosto que tem atração pelo mau gosto. Fabio Zimbres é um exemplo desse tipo de gente. Gary Panter tem status de gênio no mundo das artes gráficas e é simplesmente ridículo que permaneça inédito no Brasil. Graças a Deus, temos A Bolha para tentar colocar o barraco em ordem, lançando este hilário

O babaca. Mais uma vez, muito obrigado, Rachel