Três dias em Hicksville: cobertura do FIQ!

por Lima Neto

Prólogo -  Hicksville: uma pequena resenha

Há alguns meses atrás chegou às minhas mãos a graphic novel Hicksville, de Dylan Horrocks. Não conhecia a revista ou seu autor com profundidade e a comprei baseado num burburinho difuso que a fazia se destacar um pouco dentre as outras possibilidades de compra, além da bela capa um tanto Jayme Hernandez. 

Hicksville é um mistério. Acompanhamos o jornalista especializado em quadrinhos Leonard Batts a uma jornada pelos confins da Nova Zelândia em busca de elementos para escrever a biografia definitiva de um astro fictício dos quadrinhos contemporâneos chamado Dick Burguer. Sua busca o leva à pequena cidade de Hicksville, localizada “no cu do hemisfério sul”, uma espécie de Twin Peaks onde todos os habitantes – do banqueiro ao zelador – são apreciadores, críticos e potenciais criadores de histórias em quadrinhos. A investigação de Batts não é fácil. Tudo que ele descobre é que toda a cidade odeia Burguer e suas criações e que ninguém vai revelar nada relacionado a este ódio... e que café não é uma bebida popular na Nova Zelândia. 

No clímax da história, em uma festa comunitária anual chamada Hogan's Alley Party (para aqueles que não são nativos da cidade, Hogan's Alley é o nome da tira que apresentou ao mundo o Menino Amarelo e consolidou as páginas dominicais como um sucesso da imprensa do final do século XIX), vemos toda a comunidade da cidade fantasiada de seus personagens de quadrinhos preferidos. São tantas referências visuais, mundiais e específicas da Nova Zelândia, que a sensação é inebriante: Capitão Haddock, Fu Manchu, Mestre do Kung Fu, Ferdinando, Terry de Terry e os Piratas, etc. Esta festa é o ápice de uma sensação de valorização superlativa das HQs que emana de todas as páginas de Hicksville

Dick Burguer é um mega astro de Hollywood graças às adaptações milionárias de seus quadrinhos para o cinema. A revista para a qual o repórter Batts trabalha paga uma viagem ao outro lado do mundo para construir um perfil de um quadrinista. A mágoa envolvida em torno do que aconteceu na cidade e sua estrela internacional é tão intensa que a sensação que se tem é que o mundo gira em torno das histórias em quadrinhos. E esta sensação é o dado mais fantástico da trama. É o elemento que quebra com o realismo das interações entre os personagens e a cidade. Totalmente irreal...

...ou será que não?

FIQ 2015

Este texto é um levantamento do Festival Internacional de Quadrinhos 2015, ocorrido entre os dias 11 e 15 de Novembro. Um levantamento bem pessoal, deixando claro, pois cheguei a Belo Horizonte somente no dia 13, sexta-feira. Mas a ideia é bem por ai. Estas linhas não pretendem ser um substituto da experiência de participar do FIQ. Muito pelo contrário, elas vão mostrar um pequeno diário que busca expor a sensação de que, por alguns dias, eu estive em Hicksville. E lá sempre é uma festa. 

Dia 13 de Novembro

Uma semana de poucas horas de sono não tiraram a excitação de que nos próximos três dias eu iria respirar quadrinhos, ou pelo menos mais quadrinhos do que eu já respiro normalmente. A chegada é aquele ritual apressado – guarda mala, toma banho, almoça e vai pra Serralheria Souza Pinto, o tradicional espaço físico onde ocorre o evento. A própria localização do lugar já é peculiar: um enorme galpão no centro-sul de Belo Horizonte, embaixo de um viaduto que também serve de área de lazer e sempre ocupado aos sábados pelo pessoal do Hip Hop. Logo ao lado da Serralheria está o Parque Municipal Américo Renne Gianetti, um dos parques mais bonitos que eu já vi com uma vastidão de árvores que compõem um ambiente bucólico, porém não livre dos problemas sociais que estão presentes na maioria dos grandes centros: uma comunidade de cidadãos dependentes de entorpecentes que tomam as ruas e becos sem o alento de nenhum cuidado social, apenas obedecendo ao contrato implícito de que, se não mexerem com a população, estarão salvaguardados de intervenção policial. Todo o centro de Belo Horizonte refletia esta descrição, o que ajuda sempre a lembrar à multidão de apreciadores de quadrinhos o verdadeiro significado de “sarjeta”. Como evento de quadrinhos, o FIQ se posiciona lado a lado com um “underground” de Belo Horizonte, refletindo sua relação com as possibilidades subversivas do meio, mas sempre como um potencial de integração e não segregacionista. É muito significativo que o FIQ ocorra neste lugar. 

Diferente de edições anteriores, a versão 2015 parecia um pouquinho menor. Não havia uma área de salas de aula onde ocorriam as oficinas bem no meio do saguão principal, e também faltava o diário do FIQ, publicação que resumia os acontecidos do dia anterior. Mesmo assim a sensação é de finalmente estar em casa, reencontrar os amigos. A falta de uma área de salas abria espaço para mais mesas de artistas, e ainda era pouco. Foram mais de 200 lançamentos, muito mais do que qualquer orçamento poderia acompanhar. Apliquei então uma metodologia simples: apenas iria meter a mão no bolso depois que visse todas as bancas e mesas de lançamentos. Olharia tudo com calma e tirei uma fotografia das publicações que me pareciam interessantes. A tarefa não foi tão fácil quanto parece. No final do primeiro dia, registrei apenas uma parede e meia de mesas de artistas e standes de editoras. 

Chaykin e Mike McKone

Este FIQ 2015 teve como tema principal o papel da mulher nos quadrinhos. Longe de ser recente, esta discussão encontra eco na quantidade enorme de mulheres com lançamentos programados. Não por acaso, as palestas e a escolha dos convidados eram reflexo deste tema. Cada vez mais as HQs vêm perdendo seu papel de entretenimento masculino adolescente para se assumir com arena de discussão e atuação das minorias. Gail Simone, Babs Tar, Marcelo D'Salete, Jen Wang, Marguerite Abouet e até mesmo Howard Chaykin, cada autor tinha um discurso a expressar e buscar repercussão na imensa quantidade de visitantes. Seja através do tema principal, o  feminismo, seja passando pelas minorias étnicas, raciais e sexuais, até à sempre urgente necessidade de aceitação seus apetites sexuais (sim, estou me referindo a Chaykin). 

Um fanboy e Howard Chaykin

Neste meu primeiro dia ocorreu a palestra com Howard Chaykin no auditório do evento (batizado de  Mateus Gandara como uma emocionante lembrança desse artista que carregava todo mundo com sua ferrenha empolgação). Bem-humorado, Chaykin interpretava um papel pouco visto entre os artistas norte-americanos: longe de ser simpático, o autor de American Flagg era provocador e carismático. Sempre com um “fuck” no discurso, o que acabava atraindo a atenção dos olhares para o tradutor de libras tentando descobrir quais eram os gestos correspondentes ao palavrão, Chaykin atirava para todos os lados. Ofendia alguns fãs de maneira jocosa, destratava a industria dos EUA e resmungava pelo fato de seu traço não ser mais apreciado nos quadrinhos de hoje. Howard Chaykin estava se sentindo bem à vontade. Fez uma pequena biografia onde revelava as origens precoces de suas experiências sexuais (achou quando muito pequeno uma caixa de revistas pornográficas - “não eram do tipo Playboy” - que construíram sua sexualidade) e revelou os interesses fashionistas muito presentes em seu trabalho dos anos 80. Chaykin soava como um dos personagens amargurados de Hicksville. Entretanto, esta amargura não escondia sua felicidade por estar lá. Como ele próprio disse, “nada me deixa mais feliz do que ser reconhecido e respeitado." 

Jeff Smith!

Cheguei ainda a tempo de conseguir um autógrafo do autor de Bone, Jeff Smith. Aguentar uma fila de 40 minutos para conseguir um autógrafo é, para muitos, muito mais uma chance de trocar alguns dedos de prosa com um artista que você admira do que agregar valor a quadrinhos que podem ser revendidos. Esse aspecto é muito valorizado pelos artistas internacionais, e eles consideram o público brasileiro muito mais como carente de atenção do que como mercenários profissionais caçadores de autógrafos. 

Mas é de noite que a sensação de estar em um mundo paralelo em que todos leem quadrinhos se acentua. Neste lado B da sexta-feira de FIQ, fomos todos a um complexo de bares no centro da cidade, bem próximo do local do evento, apelidado de “maleta”. É nesta outra mesa redonda que as conversas se aprofundam. Artistas famosos, estrelas internacionais, críticos e estudiosos das HQ´s, todos se acotovelam entre as mesas para comemorar e relaxar. Bebi e conversei com gente como Evandro Esfolando – autor de quadrinhos e divulgador das HQs e do rock nas escolas públicas do DF; Dandara Palankof – amiga íntima, tradutora da Mythos e ex-editora da HQM, responsável por retornar a publicação de Strangers in Paradise no Brasil (mesmo que por um breve período); Márcio Júnior – Pesquisador dos quadrinhos e vocalista da banda Mechanics de Goiânia, publicou recentemente o livro COMICZZZT! Rock e Quadrinhos: possibilidades de interface; Daniel Lopes – um dos editores da DC Comics no Brasil e atuante nos vídeocasts do site Pipoca e Nanquim; Paulo Floro – Jornalista da revista O Grito! Marcos Maciel – fundador da Kingdom Comics. Todos com os pulmões devidamente hiperventilados de histórias em quadrinhos. 

O livro de Márcio Júnior

A conversa variava entre comentários sobre os lançamentos, levantamentos sobre os eventos e troca de experiências editoriais, isso sem contar o saudável papo furado que fazia de todos seres humanos normais. Destaco dentre as conversas o acalorado e um tanto deprimente bate-papo com Márcio Jr. e sua realista visão do mercado. Para Márcio, se as editoras estão trabalhando com tiragens de 1000  exemplares, isso quer dizer que existem apenas 1000 leitores de quadrinhos no Brasil inteiro e que um evento como o FIQ, por mais festivo que seja, é uma reunião de todos esses leitores para trocar gibis que eles mesmos produzem entre si. Difícil não ver um pouco de verdade neste ponto de vista, e muito fácil esquecê-lo ao se colocar a cabeça no travesseiro às 4 da manhã sabendo que vai acordar daqui a 4 horas para mais festa.

Dia 14 de Novembro

O sábado marcava 38 graus nos termômetros e, no dia mais cheio de FIQ, a temperatura parecia o triplo! O calor só dava para aguentar com os din-dins (ou chup-chups, ou sacolés, etc...) de fruta que eram vendidos no evento. Salvaram minha vida e de muitos outros habitantes da vila dos quadrinhos. Outra possibilidade de salvamento era a área de descanso localizada na frente do auditório, devidamente mobiliada com pufs, bancos e muito ar condicionado. 

Este sábado de FIQ foi o mais cheio por diversos motivos, mas o principal deles foi a presença de

Maurício de Souza

. Com a intenção de celebrar e divulgar seu bem sucedido projeto de Graphic Novels, o pai da Mônica e do Cebolinha não apenas compareceu, como teve a mesa de autógrafos mais cobiçada de todo o evento! Crianças se espremiam, adultos choravam, jovens admiravam a longevidade deste polêmico criador que aparentava a fragilidade de seus oitenta anos. Entretanto, de todos os eventos que ocorreram neste dia, apenas consegui assistir a uma palestra – a entrevista com a americana autora da graphic Koko Be Good, Jan Wang. A entrevista foi mediada por outra quadrinista que merece atenção: Lu Cafaggi – cujo belo  e vaporoso traço deu um rosto para todo o evento. Lu se destacou junto com seu irmão - Vittor Cafaggi – pela produção do primeiro álbum da Graphic MSP, intitulado Laços, e que teve também uma continuação recente.

A razão de eu não conseguir participar das palestras foi a continuação da saga logística de visitar todos os estandes e mesas de artistas antes de comprar qualquer coisa. A essa altura, já previa que alguns lançamentos se esgotariam antes que eu terminasse e por isso concebi um plano para adiantar o processo: eu iria pular toda banca que vendesse prints de Guerra nas Estrelas ou cujo trabalho fosse um quadrinho de zumbi. Isso garantiu que no domingo, o último dia, eu já pudesse ir atrás do que eu iria comprar após realizar um verdadeiro tetris monetário em que encaixava a intenção de compra com a realidade orçamentária. Mas o domingo não viria antes de mais uma rodada de cerveja no “maleta”, novamente acompanhado dos amigos e rodeado das celebridades dos quadrinhos... surreal descreve bem o sentimento.

Dia 15 de Novembro

Levemente de ressaca e já com um cheirinho de saudade no ar. É assim que se inicia o dia 15 de Novembro, o último do FIQ. E ele teve a temperatura um pouco mais amena e a quantidade menor de pessoas dava uma agrádavel sensação de conforto. Dei início às compras com o novo (e lindo) álbum de Lélis, Goela Negra, publicado pela editora Mino - e corri pra que ele assinasse sua obra com uma de suas miniaturas de aquarelas. O processo está filmado e poderá ser visto em breve aqui na Raio Laser. De Lélis passei para a mesa de Marcelo D´Salete, onde comprei seu último livro, Cumbe, e levei para assinar, bater um papo e observar o pincel seco do autor construir sua arte em seu peculiar traço sujo e direto. O combo de autógrafos termina com o paraibano Shiko, um dos autores com mais quadrinhos circulando pelo evento. Da sessão de autógrafo no stand da Mino, eu saí com quatro títulos deste desenhista de traço belo e formalista, porém de alma agressiva e explícita. Após a sessão, dei prosseguimento às aquisições escolhidas após o levantamento extenso dos dias anteriores. Mais na frente vamos publicando resenhas desse material, mas pela foto dá pra se ter uma ideia do espírito da coisa. 

Shiko

O domingo fecha com a aguardada mesa redonda da escritora Gail Simone. Em sua palestra ela fala de sua experiência ao sair do salão de beleza em que trabalhava para sua seção de crítica e humor no site Comic Book Resources, e como virou uma das escritoras proeminentes do feminismo dentro da indústria dos quadrinhos. Seu blog intitulado “Women in refrigerators” se tornou sinônimo da denúncia da utilização instrumental das personagens femininas a favor do protagonista masculino dentro das grandes editoras e sua passagem por títulos como “Birds of Prey”, “DeadPool”, “Secret Six”, “Wonder Woman” e “Batgirl” a transformou em uma estrela conhecida por seu estilo bem humorado e atual (mesmo que bastante formalmente convencional, na opinião pessoal deste narrador). 

Gail Simone

Mesmo não tendo acompanhado todo o evento, não foi difícil perceber como a temática se desenvolveu em suas mesas redondas e atrações. A sexualidade livre e prazerosa de Chaykin não passa muito longe da liberdade feminista de Simone, ou da presença maciça de novos rostos de diferentes nacionalidades, todos buscando seu espaço nesta mídia que há muito deixou de ser de massa, mas que ainda tem frescor o suficiente para se reinventar para o futuro. No fim das contas, o FIQ não deixa de ser um refúgio, uma ilha em que se reúnem os últimos sacerdotes de uma religião em franco processo de esquecimento. Porém, como em Hicksville, as pessoas responsáveis por resguardar estas histórias e a maneira de contá-las vão cumprir seu dever com prazer e partilhando de um sentido comunitário em torno das HQs que vai contra este movimento consumista internacional onde todo o fluxo do desejo é transferido para uma megacorporação midiática. Enquanto houver FIQ, haverá pequenas publicações e um público caridoso para consumi-las. Como em Hicksville, o FIQ é uma cidade pequenina onde todos leem gibis. Onde todos partilham de uma ligação afetiva com a narrativa de imagens reprodutíveis – dos clássicos obscuros do início do século XX até os super-heróis que assolam todos os países. Somos todos consumidores e guardiões dessas histórias. 

Se você gosta de quadrinhos, de todo gênero, não deixe de visitar o FIQ pelo menos uma vez na vida! Com certeza você vai achar algum bairro nessas ruas apertadas e abarrotadas de gibis onde vai se sentir tão em casa que seu peito dói quando termina. 

Eu irei em todos!

Até o próximo FIQ! 

Raio Laser's Comics' Quicky #01






















por Ciro I. Marcondes

Escrevi aqui sobre alguns dos quadrinhos nacionais que me chegaram em mãos recentemente. Tem mais coisa por vir, mas a ideia é fazer uma tentativa de mapear (sem obrigação de regularidade, sem obrigação de cobrir tudo, sem seguir lançamentos e sem deadline) uma fração da imensa quantidade de coisas que se tem produzido em HQs em nosso país, seja em publicações luxuosas, coisas independentes, zines ou online. Nesta primeira versão da nova seção, privilegiei alguns artistas daqui de Brasília, não apenas pra ser um pouco bairrista, mas também porque a cidade está se tornando um celeiro interessante de quadrinistas. Quem quiser nos enviar suas produções, basta nos escrever em “contato”, ok?

BátimaAndré Valente (Samba, 2011): Haveria com certeza algum jeito de interpretar sociologicamente essa pérola-express que é o gibizinho (lembram dos gibizinhos da Turma da Mônica? Esse é um Mini-samba) Bátima. Afinal, é sobre um cara classe-C que trabalha o cão (estaria vestido “simbolicamente” de Batman pra mostrar o “herói da vida real” que é) num McDonalds e manda cartas pra mãe fingindo ser um redator da Globo. Porém, conhecendo o autismo artístico (não se enganem. Isso é uma qualidade rara) de André Valente, prefiro ver esta pequena história pelo prisma de sua verve non-sense. Prefiro vê-la (não sei bem explicar por quê) como salto sem volta na sensorialidade psicótica de um sujeito ainda mais miserável, enlouquecido pela cultura pop e pela solidão. Um sujeito sem arestas egoicas que escreve cartas para uma mãe inexistente, sobre um emprego inexistente, processando o derretimento de seu aparelho psíquico. E tudo teria começado quando ele foi batizado “Bátima” (como alguns são batizado “Mai Conjecso” ou “Cridence”) após seu nascimento.


Não fui euAndré Valente (2011): Se André Valente é um quadrinista que possui certo autismo artístico, é porque em suas histórias eventualmente há um elemento que nos escapa, um ponto cego onde apenas habita o artista, e nunca o leitor. Isso seria decepcionante se ele não preenchesse todo o resto com referências e solidez cultural que escapam à maioria dos quadrinistas brasileiros, fazendo-nos ter que investigar entrelinhas em quadrinhos simples, mas engenhosamente despojados, com senso de humor que mistura “O Pasquim” com “Além da imaginação”, bastante refinado. Esta aparentemente modesta coletânea “Não fui eu”, que se inicia com Sol e Lua àMéliès, traz uma ótima amostra do equilíbrio quadrinístico e do desequilíbrio mental de Valente, com destaque para os lindos painéis do primeiro capítulo da novela gráfica “Coelho”, e para a surrealista “Uma espinha”, que poderia ser a história longa que o Laerte nos deve há muitos anos.

Peixe fora d’águaDiego Sanchez e Laura Lannes (Org., 2011): Esta publicação independente reune mais de 20 artistas diferentes e com certeza é uma iniciativa louvável e bem-feita. O problema é que, sustentando essa postura “do it yourself” que vem junto com a pecha de “peixe fora d’água”, quase todos os quadrinhos, sketches e poemas dão essa impressão de mal-acabado, de orgulho de ser tosco, de sumir no non-sense por falta de ideias ou medo delas. A quantidade de metalinguagem inócua e piadas internas acaba comprometendo o trabalho todo. Há uma variedade interessante de estilos e técnicas gráficas, mas a maioria do material sofre com essa síndrome de não querer produzir nada relevante, de um niilismo inútil. Quadrinhos com baixa autoestima. Não é à toa que a melhor série do livro é “Them wishing wells”, de Guilherme Lírio e Vidi Descaves, bem sacada, feita com desenhos de palitinhos. Logicamente, vale destacar “Certa manhã acordei de um sonho agitado”, em que a quadrinista Laura Lannes (talentosa) acorda no corpo do pintor Francis Bacon, além de uma paródia inteligente de Batman feita por Diego Gerlach. Mas, francamente, quem ainda está afim de ler mais uma paródia do Batman?

Garoto Mickey – Yuri Moraes (Dobro quadrinhos, 2011): Quando dou aula de roteiro cinematográfico, acho que a lição mais valiosa que passo é a seguinte: “se você não tem nenhuma ideia para criar um roteito, não faça um roteiro sobre como você não tem nenhuma ideia para criar um roteiro”. Acho que essa simples lição limaria metade dos artistas contemporâneos, e esse seria um mundo melhor. Garoto Mickey não é uma novela gráfica ruim, que fique claro. Yuri Moraes tem claro domínio e consciência narrativa, além de um traço expressivo e simpático. A história é dividida em duas partes muito claras: primeiro, uma espécie de revisão autobiográfica que tem força especial nas agruras melancólicas da infância, quando ele fazia uma HQ porradeira da qual todos gostavam, substituída pelo eterno carma do quadrinho autoral. A relação com o amigo um tanto obtuso e imbecil, abandonada na idade adulta, acaba sendo um ponto de verdade na HQ, além de insights de linguagem e algumas ironias bem marcadas. Mas parece que tudo se perde e a procura por uma psicologia de si mesmo ganha absurda autoindulgência, com o autor querendo antecipar as próprias críticas que as pessoas fariam à HQ, numa obsessão em prever e tapar seus próprios defeitos, o que se transmite, evidentemente, para os defeitos da HQ. A segunda parte, quando essa autojornada cínica se converte numa história de ação absurda e até piegas (com o autor fazendo questão de deixar claro que está fazendo algo piegas – como não?), é que a coisa se esfarela completamente e as virtudes da HQ se perdem. Não o talento de Yuri Moraes, é claro. Mas afirmar-se como loser numa HQ não torna ninguém menos loser, que fique claro.

Valente para sempreVitor Cafaggi (Pandemônio, 2011): Na contramão de uma tendência muito experimentalista de boa parte dos quadrinhos brasileiros contemporâneos, Valente vence pela simplicidade. Na forma de uma tira tradicional, num traço simples em preto-e-branco (mas confiante e cheio de expressões), o talento de Vitor Cafaggi para representar ideias parece orgânico e fácil, como se simplesmente tivesse estado a vida toda ao lado dele. E assim é a vida do cachorro Valente, seus amigos, amores e desamores: simples, natural, intenso, vivo. Publicada pela Pandemônio, na antiga forma retangular e monocromática com que antigos gibis de Garfield e Mafalda saíam, esta coletânea (de tiras ainda saindo na Internet) é um presente ideal para corações românticos. Uma HQ que, ao optar por navegar, confiante, pelas águas dos clássicos, dirige-se rumo ao triunfo.

Duo.toneVitor Cafaggi (2011): É estranho que a minha reação a Duo.tone, após ter lido Valente, tenha sido de ligeira frustração, já que esta é uma publicação de fôlego um pouco maior, coloridinha e mais longa, com certeza de maior ambição. A revistinha (legal chamar assim, porque de fato é isso que essa HQ é), de leitura fácil e despojada em linguagem simples (mas bem dosada em sequências silenciosas, serializações, metarrequadros, diálogos naturais e outros recursos) é certamente adorável, e tem potencial encantador para o público infantil. Mas confesso que, ao contrário do Valente, onde a gente se envolve e se emociona, aqui tanta fofura e ternura infantil causam um tanto de desconforto, uma certa ingrisia que vai se desatinando em mau-humor. Uma coisa assim, leite de pêra e ovomaltino. Eu aprecio histórias de growing pains, mas a primeira delas, do menino loirinho, é muita dor pra pouca desgraça, o que me fez preferir a segunda, toda silenciosa, do garoto japonês cool e intrépido, em que Cafaggi arrisca mais na sua habilidade narrativa, e faz uma homenagem menos piegas ao contato que um quadrinista tem, na infância, com o mundo dos super-heróis.

Mix tapeLu Cafaggi (2011): Estes outros quatro mini-gibis trazem essa proposta lírica de emular quatro fitinhas K-7, abordando os temas do som a da música de uma maneira completamente contrária ao que se poderia esperar de tal empreitada (ou seja: ideias tímidas se afogando num mar citações e referências). Ao contrário, fã de fitinhas K-7 como sou (passei a adolescência gravando-as pras minhas garotas favoritas), respirei com alívio ao ver que o trabalho de Lu Cafaggi compõe um delicado tributo à própria memória, à sinestesia de nossos passados, sendo um deles (o melhor) uma pequena sinfonia (muda – e isso me afeta!) de sons preferidos; o segundo a memória de uma pessoa guardada no som de um piano; a terceira (mais fraca) um diálogo imaginário com a cantora Patti Smith; e a última a experiência onírica de uma doce super-heroína. O aspecto fosco, de um violeta apastelado, monocromático, faz a experiência de ler quase táctil. Uma HQ especial, à altura do trabalho que Lu Cafaggi, Mariamma Fonseca e Samanta Coan realizam no blog Ladys Comics.

Kowalski #2Gabriel Góes (Org., Samba, 2011): Esta revista é um spin-off do grupo Samba, daqui de Brasília, que já constitui uma geração completa de quadrinistas talentosos e realiza um dos trabalhos mais interessantes das HQs nacionais atualmente. Participam dela, além de Gabriel Góes, editor e criador do personagem-título, Lucas Gehre e Gabriel Mesquita (os outros caras da Samba) e convidados de peso. Aos poucos, na medida em que as publicações do grupo vão aparecendo, uma estética em princípio caótica e desajeitada vai se organizando. Fruto do casamento herético dos quadrinhos com as artes plásticas, a geração Samba desenvolve uma relação muito visual com os quadrinhos, com a narrativa muitas vezes servindo como serialização para impressões imagéticas, profanas, coisa de pesadelo mesmo. Para tornar isso uma práxis refinada, os caras bebem de tudo: cinema, fotonovela, pin-ups. A capa de Eduardo Belga, surreal e obscena, dá uma amostra das ambições do grupo. Esta número 2 dá continuidade e aprimora as ideias da número 1, com alguns feitos mais narrativos, como a paródia “Cidadão Z”, de André Valente, que horroriza com a figura controversa de Ziraldo, fazendo-o beber de seu próprio veneno e estilo (do mesmo jeito, mas mais irônico, que Valente havia feito com Maurício na número 1); e uma das primeiras histórias de maior consistência (hmm..) “filosófica” do grupo, “Quando éramos cavalos”, de Góes e Mesquita, que conta o mundo horrendo e impressionista (cheio de personagens fofinhos de outros gibis) de um sujeito que presencia um suicídio.


Mas eu ainda acho que o grande destaque é a série do próprio personagem que dá título à revista, algo que parece um produto puro, bruto, saído da mente... diferente de Gabriel Góes. Kowalski e seus amigos são cartoons junkies, que assaltam para fumar crack ou cheirar pó, e Góes serializa essas histórias num traço infantil e perturbador, com quadros minúsculos e tortos, sendo a própria viagem do leitor montar estes efeitos rítmicos. “Kowalski” é sim um tipo de monstruosidade crua e imoral, parecendo uma versão nada idealista do clássico Freak Brothers, do genial Gilbert Sheldon, mas Góes aos poucos acrescenta mais sacadas e refinamentos a essa série, mesmo que ainda não seja possível (se é que um dia será) entender o que esse universo quer dizer. Vale destacar também a série “A casa das mulheres-pássaro”, de Gehre, um prostíbulo de action-figures (os antigos “bonequinhos”) e a série de impressões visuais, circulares, de Gehre e Mesquita, sobre seres em decomposição. Eu tiraria duas tentativas de séries narrativas: a fotonovela (sei que dá trabalho, mas não tá engrenando) e “A estrada do diabo”, que, apesar de graficamente interessante (mas muito derivado de Clowes e Lynch), é menos impactante do que parece querer ser.

Sim – Gabriel Góes (Projeto 1000, 0005, Barba Negra/Cachalote, 2011): Góes é um ilustrador de mão cheia, e uma de suas maiores virtudes é mudar de estilo sem perder sua marca pessoal. Seja no traço torto e macabro de Kowalski, seja numa história em 3-D, num cartaz de festival de rock, ou numa história de livro-jogo, sua personalidade, ainda que coerentemente adaptada aos diferentes gêneros, está sempre visível, sempre imediatamente identificável. Sua habilidade como narrador e quadrinista ainda é um ponto a emergir completamente, e esta Sim é prova de que sua versatilidade onírica e seu imaginário claustrofóbico vêm ganhando camadas e camadas de densidade.  Como de praxe nesta grande iniciativa da editora Barba Negra e seu Selo Cachalote, esta é uma HQ sem palavras. Góes, metamorfoseado numa criatura antropomórfica e primitiva (cabeça de lobo e um tacape na mão), atravessa paisagens psicodélicas e alucinatórias, como se avançando em camadas mais profundas ou desdobramentos de dimensões de si mesmo, cruzando com figuras míticas, arquetípicas. Esta HQ, que se experimenta numa leitura rápida, pode ser pensada toda num sentido jungiano, um tipo de representação mítica e lisérgica, mas vou deixar essa análise pra lá. O que vale mesmo é a robustez do traço e dos grandes requadros panorâmicos de Góes, imagens inalcançáveis e errantes.

Desvio – Daniel Gisé (Projeto 1000, 0003, Barba Negra/Cachalote 2011): Desvio, do mesmo projeto que Sim, curiosamente parte de uma premissa semelhante, mesmo que o resultado seja muito diferente. O fato de, quando obrigados a construírem uma série sequencial sem palavras, quadrinistas tendam a representar o mundo dos sonhos e delírios, geralmente encaixando mundos dentro de mundos, deve dizer algo muito importante sobre a linguagem visual muda. Sem a correção das palavras, as imagens têm o poder de correr soltas, transportarem-se de um mundo para o outro, num livre fluir de formas e cores. Desvio é mais causal do que Sim, e Gisé modela uma estranha história envolvendo dois recém-casados, uma psicótica, um lenhador gay e outras coisas, num traço clássico, fino, lembrando uma HQ dos anos 50 (onde se imagina ser também a época da história). A virtude está em, no meio de ações que subitamente se tornam imaginação e sonhos, o encadeamento sem palavras da HQ ainda manter os pés no chão, numa organização de alta compreensibilidade, criando uma aura de enigma não muito fácil de ser alcançada, mesmo que o final não ofereça respostas.  QHQ