Chico e Rita: do Cubop ao Oscar




Chico e Rita, de Fernando Trueba e Javier Mariscal, está sendo lançada em duas formas artísticas ao mesmo tempo: uma HQ de 200 páginas e uma animação que já concorre ao Oscar, em sua categoria, neste ano de 2012. Se a animação é sem dúvida maravilhosa, a HQ não fica atrás e ressalta a arte de Javier Mariscal de modo mais artesanal e aurático.

Esse lado mais “cru” do desenho de Mariscal na HQ harmoniza bem com a atmosfera da história: em uma Havana pré-revolução (1959), dois músicos, um pianista e uma cantora, iniciam uma relação simultaneamente amorosa e profissional. Sonham com a fama em Nova York, onde o jazz de figuras como Charlie Parker e Thelonious Monk chegava ao auge, e a música cubana (o “cubop”) ganhava espaço.

Chico e Rita é uma história de amor, sonhos e música. A representação da ensolarada Havana e de uma Nova York fria e escura é precisa, bem como a dos personagens que as habitam, muito bem construídos. Os diálogos aproveitam o forte espanhol dos cubanos, e a coloração da HQ ressalta “com mucho gusto” a belíssima tonalidade de sua pele.


Em tempo, há um lado político nas obras que merece ser mencionado. Está presente tanto na HQ quanto na animação: mas, como em toda boa obra de arte, sem maniqueísmos. De um lado, a Cuba pós-revolução irá desestimular o jazz americano quando Chico retorna a Cuba; por outro, Rita, já consagrada nos EUA, não pode hospedar-se nos hotéis onde se apresenta. O mesmo preconceito que sofreram músicos geniais (e também negros) como Duke Ellington.

Contradições históricas dos dois países, e que não reduzem as obras (nem a HQ e nem a animação) quando abordadas por Fernando Trueba e Javier Mariscal: deixam-nas mais interessantes.


HQ em um quadro: Batman ouve Charlie Parker, por Gerard Jones e Mark Badger





















Bruce "bopster" Wayne (Gerard Jones e Mark Badger, 1995): Nas últimas semanas fez-se algum barulho com uma imagem do Batman "mandando ver" na Mulher-Gato, talvez com desnecessária repercussão (na minha opinião um tipo obsessivo como o morcegão teria toda sorte de transposição e recalque libidinal, talvez encaixotando tudo num compartimento inconsciente obscuro, resultando numa assexualidade tipo... Michael Jackson?). Resolvi então acrescentar um comentário sobre outra possibilidade não-usual para o herói a partir de uma minissérie já bastante esquecida, publicada pela DC em 1995, no título "legends of the dark knight", reservado para histórias fora de cronologia . Batman: Jazz foi escrita por um roteirista pseudo-rebuscado (Gerard Jones) e um artista "bom em algum mundo ligeiramente diferente, no multiverso" (Mark Badger). Mesmo assim, vale dar uma sacada no argumento original/insólito da série: Batman vai até a uptown de Gothan para investigar as tentativas de assassinato contra um velho jazzista que seria uma sobrevivente versão do grande e revolucionário bopper, criador do jazz moderno, Charlie Parker.

É verdade que as linhas de argumento em si são bem canhestras, mas, para fãs de jazz, a HQ proporciona a chance de se ver Batman envolvido numa trama que leva o leitor a um pequeno passeio pelos fundamentos, linguagem e personagens (como Dizzy Gillespie, primeiro pintado como possível e vaidoso vilão, e depois como redentor) preceptores da era moderna, assim como a embarcar, dentro de um gibi de heróis, no tipo de narrativa paranoide, lúgubre e noir (outra referência mal-utilizada é Cidadão Kane) que envolve a rocambólica literatura sobre Jazz (cf. Cortázar, Morrison, Kerouac). Afinal, pensando de novo em mundos paralelos, a cidade de Gothan City talvez fosse mais legal não como uma coisa néon e cyberpunk-gay (como nos filmes de Joel Schumacher) ou como metrópole vazia e tecnocrática (como nos de Christopher Nolan), mas sim um local charmoso e violento cujas contradições sombrias estariam mais enraizadas na alma e chagas da cultura negra americana. Uma cidade mais romântica que gótica, com blueses e jazzes. 

É por isso que se destaca este quadro, de uma página toda com pequenos meta-requadros, em que Batman, após insidioso convite, como gentleman, adentra em um pequeno club para ver tocar o estranho e espelhadamente deslocado homem que salvara no dia anterior. É muito comum que, dentro do clichê, se traduza o jazz como uma dialogada  língua musical dos sentimentos. Partindo disso, o bebop tão famoso do sax alto de Parker soa como um tipo de confidência torturada, que alterna entusiasmo esfuziante de coisas como a noite, o calor de um shot de heroína e fulgor sexual com a devassidão langorosa da ressaca, do abismo, do mundo obscuro da depressão. Pensar que um tipo visivelmente junkie (pensa aí qual é a adesão do morcegão) como Batman fosse se encontrar no universo íntimo do jazz não poderia deixar de ser verossímil, e é por isso que este quadro, dentro das limitações da história, impacta: o herói se deixa hipnotizar, como uma criança quebrando seu espelho lacaniano, descobrindo um duplo fraturado no mundo exterior. Ele goza, e relaxa. (CIM)

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