SUPER-HERÓIS, ARTE E CRIVELLA: LINHAS CRUZADAS
/por Márcio Jr.
Histórias em quadrinhos são arte? A pergunta é recorrente, ainda que mal colocada. Quadrinhos são, antes de mais nada, um meio de comunicação – dotado de estrutura e sintaxe particulares. Media, em última instância. Logo, histórias em quadrinhos não são necessariamente arte. Mas podem ser. Assim como o cinema, a TV e a literatura. Há, entretanto, uma questão ulterior: qual a real importância das HQs serem arte? Isto é, atingir o tal “estado de arte” é o máximo que os gibis podem oferecer?
A última semana assistiu a um bizarro evento envolvendo histórias em quadrinhos na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Na noite de 5 de setembro, o prefeito Marcelo Crivella determinou o recolhimento do volume 66 da Coleção Oficial de Graphic Novels Marvel, contendo a série Vingadores – A Cruzada das Crianças. Escrito por Allan Heinberg e desenhada por Jim Cheung, trata-se de (mais) um gibi genérico e indistinto de super-heróis. Não li. Não vou ler. E sequer conheço alguém que tenha lido.
O motivo de tanto alvoroço provocado pela supostamente descartável HQ da Marvel é a presença de uma cena homoafetiva na história. Dois super-heróis trocam um beijo. Não sei quem são. Crivella também não. Mas a imagem está lá e foi o suficiente para deflagrar a demagogia neopentecostal obscurantista do prefeito. Boçalidade autoritária típica dos tempos que o Brasil atravessa.
O editor da Veneta, Rogério de Campos, publicou em seu perfil no Facebook: “Defender um gibi da Marvel contra a censura do Crivella é um pouco parecido com defender a Pepsi da acusação feita pelo Olavo de Carvalho de que o refrigerante é fabricado com células de fetos abortados. Tanto a Marvel quanto a Pepsi são inimigas da humanidade. Mas, antes de tudo, sou radicalmente contra a censura, mesmo que seja censura de gibi que considero muito ruim.” Concordo com ele. Em tudo.
Rogério tem uma das mais impressionantes folhas corridas de serviços prestados aos quadrinhos no Brasil. Em editoras como Conrad e Veneta, publicou por estas plagas quadrinhos incríveis e necessários. Muita arte foi impressa graças aos seus esforços. E, ao longo das décadas em que trabalhou como editor, um norte: o combate à HQ industrial, principalmente os super-heróis. Ano passado publicou, pela Ugra Press, um livreto formidável: Super-Homem e o Romantismo de Aço. Leitura imprescindível que estabelece sólidas relações entre os fortões de capa e o fascismo. E que ajuda a explicar o conservadorismo recalcado de boa parcela de leitores do gênero. Já perceberam a quantidade de fãs de Batman/Conan/Justiceiro que votaram em Jair Bolsonaro?
Mas, como diria Raymond Williams e sua turma dos Estudos Culturais – estendendo-se ainda ao campo da Cultura Visual – esforços autônomos e contra-hegemônicos são possíveis. Ainda que raros.
A primeira reação ao ataque do pulha Crivella partiu da própria Bienal do Livro, que lançou mão da Constituição e não acatou as determinações de recolhimento da obra. Quem dera o Santander tivesse feito isso quando do incidente envolvendo a exposição Queer Museum. Em seguida, veio a atitude do público: com as repercussões do ocorrido, o gibi se esgotou rapidamente. Sinal claro de tomada de posição. Note-se que estamos falando de uma das mais inexpressivas edições da coleção em capa preta da Salvat – que, inclusive, está descontinuada, inundando o país inteiro com encalhes.
Crivella, como era de se esperar, não deixou barato. Fiscais da prefeitura têm feito “vistorias” em busca de irregularidades nos estandes da Bienal. Por irregularidades entenda-se qualquer traço – principalmente no tocante à sexualidade – que não reze a cartilha do mais baixo moralismo neopentecostal. Nunca tratei o golpe sofrido por Dilma Roussef como impeachment. Logo, me parece fantasioso acreditar que ainda vivemos num regime democrático.
Num destes complexos fenômenos que surgem nas fissuras das dinâmicas sociais, o gibi da Marvel tornou-se resistência. Foi encampado pela comunidade LGBT como símbolo e instrumento de luta. Também tem sido usado por aqueles que se opõem à censura – que, em velocidade vertiginosa, vem colocando as sujas manguinhas de fora. E segue adiante, como nesta imagem criada por um morador do Rio, onde o casal gay da HQ foi colocado num buraco de rua em clara provocação ao prefeito Crivella, desafiando-o a resolver – com a mesma urgência e determinação mostradas em relação ao gibi – um problema real da cidade.
A afirmação de Rogério de Campos de que a Marvel é inimiga da humanidade vem embebida em altas doses de iconoclastia. Mas não deixa de ser real. A Marvel é o capitalismo. Não sejamos ingênuos a ponto de acreditar que a diversidade de seus filmes e quadrinhos nasce do respeito e apreço pela alteridade e pela vida humana. São experiências que avançam quando economicamente bem-sucedidas – como nos filmes –, e recuam quando não dão lucro – o caso dos gibis. Deste modo, a questão não é a intenção da empresa – patrocinadora da campanha de Donald Trump, não podemos esquecer – mas sim como segmentos da sociedade podem se apropriar de seus produtos, dando a eles novos significados. Foi o que aconteceu com Vingadores – A Cruzada das Crianças.
Não me parece um exagero afirmar que alguns quadrinhos de super-heróis alcançaram status de obra de arte. São poucos e A Cruzada das Crianças não está entre eles. Tenho, inclusive, dúvidas se esta é uma HQ decente do gênero. Não pretendo descobrir. Tampouco vem ao caso. O fato é que o gibi da Marvel é a publicação mais relevante da Bienal do Livro do Rio de Janeiro. E seus efeitos concretos na vida do país foram infinitamente mais longe do que se poderia imaginar. Mesmo para a arte.