OS SERTÕES E KARDEC: DUAS (RE)ENCARNAÇÕES DE CARLOS FERREIRA E RODRIGO ROSA
/por Márcio Jr.
Adaptações literárias em quadrinhos estão longe de ser novidade no Brasil. A Ebal, por exemplo, começou a publicar sua Edição Maravilhosa em 1948. De lá para cá, este subgênero atravessou altos e baixos. O último ciclo de efervescência data de pouco mais de uma década, com a abertura de programas estatais como o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) à adoção de HQs baseadas em clássicos da literatura nacional – como ferramenta paradidática.
As editoras lutavam (e seguem lutando) por seu quinhão. Todos estavam interessados em ter algum título selecionado – o que implicava em um sensível aumento da tiragem para atender à compra do governo. O resultado foi um boom de adaptações. Obviamente, efeitos colaterais se fizeram sentir: uma considerável quantidade de picaretagem caça-níquel foi publicada. Graças ao talento da dupla gaúcha Carlos Ferreira (roteiro) e Rodrigo Rosa (desenhos), Os Sertões: A Luta – novela gráfica gestada a partir do seminal livro de Euclides da Cunha – não engrossa este amargo caldo. Muito pelo contrário.
Lançada originalmente em 2010 pela Desiderata, a HQ acaba de ganhar nova edição pelo selo Quadrinhos na Cia. Oportunidade única para quem ainda não conhecia esta peculiar abordagem da saga de Antônio Conselheiro.
Carlos Ferreira é um hábil roteirista. Consciencioso, tem absoluta clareza de que a escrita dos quadrinhos não se dá – a priori – pela palavra, mas sim pela imagem. Quando o material de origem se trata de um verborrágico documento histórico – tal e qual o gigantesco tomo de Euclides da Cunha – isso se converte em um raro acerto. O produto final de sua sensível perspectiva é uma obra autônoma, eminentemente quadrinística, que nasce do livro Os Sertões, mas não se sujeita a ele.
A simbiose entre Carlos e o desenhista Rodrigo Rosa é impressionante. Rodrigo é, hoje, o homem à frente da Figura – casa editorial que tem publicado no Brasil autores do calibre de Breccia, Oesterheld e Toppi, ajudando a corrigir ausências inadmissíveis em nosso mercado. Porém, antes de ser reconhecido como editor, o porto alegrense já era artista mais que tarimbado no meio da ilustração e dos quadrinhos brasileiros. Seu nome é selo de qualidade em HQs adaptadas de clássicos literários.
A marca gráfica de Rodrigo Rosa não é o desenho exuberante ou um estilo inconfundível a olhos leigos. Rigor, solidez e emoção dão o teor de seus traços, sempre a serviço da narrativa. Em Os Sertões, lança mão do pincel seco nas sequências em flashback, estabelecendo uma atmosfera de expressionismo árido prenhe de brasilidade. E a clareza de seu storytelling remete a mestres da narrativa gráfica, como o italiano Ivo Milazzo. A maneira como a dureza do preto e branco do álbum se transmuta em cores ocres ao final da HQ é memorável. Não só pela beleza plástica, mas pela carga dramática que confere ao desfecho da história.
Em Kardec – publicado pela Barba Negra em 2011 e relançado agora pela editora Chave – Rodrigo reafirma suas características e sua qualidade. Nada de arroubos gratuitos ou estridentes. Seu desenho sóbrio ganha um espectral meio-tom entre o claro e o escuro, entre a luz e as trevas. Nada mais adequado ao tema da HQ: a transformação do cético educador francês Hippolite Léon Denizard Rivail no célebre autor de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec.
Eis o desafio aqui enfrentado pela dupla de autores – novamente em fina sintonia: não apenas produzir uma biografia em quadrinhos de Kardec, mas torná-la objeto de interesse para além dos muros do espiritismo. Não é tarefa para qualquer um.
O recorte biográfico adotado na HQ acompanha o ceticismo de Hippolite ser vencido por uma experiência reveladora. O fato é que esse caminho, apesar da potência pessoal, não carrega grandes dramas ou reviravoltas. A estratégia adotada por Carlos e Rodrigo para converter isso em uma história em quadrinhos instigante se deu por intermédio da própria linguagem dos quadrinhos. As sequências silenciosas – como a que abre o livro –, os saltos temporais, as viagens oníricas, a digressão final. Tudo isso imprime drama quadrinístico onde o tédio literário poderia reinar com facilidade.
Duplas criativas são exceção no atual panorama do quadrinho autoral brasileiro – usualmente centrado na figura do quadrinista que escreve e desenha. Carlos Ferreira e Rodrigo Rosa, por serem das mais interessantes, bem que poderiam nos brindar com novas obras. Enquanto isso não ocorre, as reedições de Os Sertões e Kardec chegam em boa hora.
Quase uma década depois de seu primeiro lançamento, as HQs preservam força e vigor. E se atualizam de forma intrigante. Mais que nunca o Brasil de Canudos se faz presente entre nós. Por outro lado, as experiências editorais que deram à luz os dois livros – Desiderata e Barba Negra, ambas com a fundamental participação do editor e roteirista Lobo – já desencarnaram. Saber que eles renascem agora através de outros selos nos faz entrever que a luta pelo quadrinho brasileiro pode vencer o esquecimento e, quiçá, a morte.