Pinochet: Duas Visões Quadrinísticas Sobre o Genocida
/por Marcão Maciel
Em 11 de setembro de 1973 o Chile sofreu um golpe de estado que marcaria para sempre o destino do país. Neste dia, o chefe das Forças Armadas, Augusto Pinochet, depôs o presidente Salvador Allende - democraticamente eleito – e lançou as bases de uma das mais duras e sanguinárias ditaduras da América Latina. A data seria lembrada ainda pelo dramático suicídio de Allende, que inauguraria 17 anos inesquecíveis e traumáticos para o povo chileno.
As estimativas relativas ao número de vítimas atribuídas ao governo ditatorial são incertas e constantemente revisadas. Qualquer que seja a contagem, entretanto, os números são estarrecedores. São mais de 3.200 mortos e desaparecidos; além de 38 mil pessoas torturadas. A título de comparação – sempre levando em conta que não se pode mensurar o valor de uma vida – a ditadura brasileira teve “apenas” 434 pessoas mortas e desaparecidas. Dadas as consideráveis dimensões de nossa população, as cifras chilenas chocam ainda mais.
Diante de tamanho sofrimento, é natural que os eventos ocorridos entre 1973 e 1990 ainda ressoem fundo na literatura, cinema e música do país. Com os quadrinhos não é diferente. É possível encontrar diversas publicações que referenciam o período autocrático de forma direta ou indireta, com enfoque no principal artífice dos acontecimentos desencadeados no setembro negro chileno: o general Augusto Pinochet Ugarte. Resolvi analisar duas delas: Os Fantasmas de Pinochet (Planeta Cómic, 2021) e Pinochet Ilustrado (Reservoir Books, 2018).
A primeira obra, de Francisco Ortega (argumento) e Félix Vega (desenhos), traça um interessante panorama da vida do tirano, desde seu nascimento até um hipotético juízo final – no sentido jurídico e não apocalíptico do termo – para julgar sua culpa ou improvável inocência. Ortega repassa a vida do cidadão mais detestado do Chile – aquele que muitos não ousam sequer dizer o nome – com base em ampla pesquisa e documentação. O retrato construído ajuda a entender um pouco das motivações por trás do odiável personagem.
Contada de forma não cronológica, a origem não tão secreta do militar envolve sua visita – ainda garoto – a Santiago, acompanhado de sua mãe. Nessa ocasião, o infante sofre um delírio que o leva a visualizar, como monstros, alguns manifestantes socialistas. Tomado de pavor, ele foge para a rua e é atropelado. As consequências do acidente são graves e a criança Pinochet leva quase três anos para se recuperar. Por pouco sua perna não é amputada e sua ultraconservadora mãe atribui a cura um milagre divino oriundo da fé católica. Eis aí a montagem de dois pilares importantes para compreender a trajetória do militar: ódio cego contra a esquerda e fervor devocional. Sim, pelo visto, não é só no Brasil que anticomunistas costumam caminhar de mãos dadas com fanáticos religiosos. Exemplo sintomático de desejos futuros e irresistíveis, o jovem Pinochet também é retratado como torturador de pequenos animais. Por essas e outras, que relatarei abaixo, talvez não seja um exagero que o autor tenha colocado o próprio capeta como um dos melhores amigos de Pinochet, sempre a seu lado nos momentos decisivos de sua carreira como rei dos facínoras.
Repleta de fatos surpreendentes, esta espécie de biografia não autorizada do líder chileno revela o senso de canalhice de Pinochet, sempre pronto para surfar nos ventos da história e extorquir o máximo para seu proveito pessoal. Amostra importante disso é a própria conjura que levou ao infame golpe de 1973. Por incrível que possa parecer, Pinochet não queria fazer parte do processo de ruptura, realizado pelos comandantes da Marinha e da Aeronáutica. Ameaçado de morte caso não se juntasse aos conspiradores, Pinochet virou o jogo: alegando precedência por ser o chefe do Exército, força armada mais antiga do Chile, apresentou-se como líder máximo da junta militar. Resumo da história: deu um golpe nos golpistas e mostrou quem era o velhaco-mor. O gibi toca ainda em pontos sensíveis e ainda não totalmente cicatrizados da história sul-americana, como a cooperação chilena com a Inglaterra durante a Guerra das Malvinas, muito para o prejuízo da Argentina.
Mas em 1987 os chilenos não teriam motivos para maiores preocupações, pois naquele ano Superman viria para salvar a pátria andina. Ou quase. Preocupado com as violações de direitos humanos e as ameaças contra atores críticos ao regime, Christopher Reeve foi ao país para demonstrar solidariedade. O comentário do ditador acerca da visita do norte-americano foi “Você não é Superman...Superman não existe. És somente um ator de segunda, com um único sucesso, que veio em socorro de um monte de outros atores de segunda”. Ao que o diabo, sinistramente, responde: “Deixa comigo. Esse Superman não voltará a voar”.
Talvez um dos episódios mais impressionantes da carreira do ditador tenha sido aquele relacionado a seu contato com sociedades ocultas. Embora seja difícil de acreditar, Pinochet, Allende e Fidel Castro faziam parte da mesma loja maçônica. A traição de Pinochet aos aliados, jamais perdoada, é apontada como um dos motivos da queda do ditador. A reconciliação de Pinochet com a maçonaria – evento recheado de contornos do tipo “teoria da conspiração” – só se deu quando o general entregou ao grupo o Cálice dos Jesuítas, artefato de valor artístico e histórico imensuráveis, que misteriosamente desapareceu da Catedral Metropolitana de Santiago em 1982.
Ademais do roteiro baseado em ampla bibliografia, o quadrinho tem ainda a participação mais que competente do desenhista Félix Vega, que consegue realizar bela e convincente retrospectiva da vida do infame ditador, numa atmosfera sombria. Os piores pesadelos cometidos e sonhados Pinochet se tornam realidade com o pincel carregado de Vega, especialmente na tensa sequência final, em que o ex-presidente enfrenta seu juízo final, tendo como testemunhas de acusação os cadáveres de suas incontáveis vítimas. Seu advogado é Satanás, agora atuando como advogado do diabo.
No caso de Pinochet Ilustrado, a abordagem é totalmente diversa. Se, na primeira obra, privilegia-se o tom grave e histórico, no gibi de Guilllo a proposta é privilegiar a ironia e extrair algum humor – se é que isso era possível – dos tempos de ditadura. Segundo o autor, seu objetivo era “desenhar para espantar o mal de si e de seu país”. Publicando no formato de charges de página inteira na revista Apsi, o quadrinista valeu-se do popular conto “A Roupa Nova do Rei” para criar um personagem chamado “Reizinho”, que funcionaria como espécie de alter-ego do líder chileno. Guillo afirma que desenhou “Reizinho” com características diferentes daquela do ditador para evitar correlações diretas e preservar-se de eventuais atentados contra sua integridade física. Isso é história para boi dormir. Qualquer um capaz de somar dois mais dois perceberia quem era o protagonista real do quadrinho.
Melhor que descrever as charges, acredito que seja mais apropriado mostrar as mais representativas, que falam por si só:
Com um traço simples e olhar acurado, Guillo conseguiu fustigar a ditadura chilena sem violência, mas com uma mordacidade certeira para falar de temas ainda muito doloridos.
Falar de um assunto tão triste e ainda hoje não totalmente superado me fez – e isso era inevitável – lembrar da situação atual do Brasil, que enfrenta a ameaça e o delírio golpista do presidente Jair Bolsonaro. Conhecer um pouco mais de como o período autocrático afetou nosso vizinho sul-americano serviu de alerta para a necessidade de estarmos vigilantes para salvaguardar a ordem democrática vigente, porque o pior ainda pode estar por vir. Se o Chile foi liderado por um ditador calculista que eliminava inimigos com frieza antártica, o Brasil, por sua vez, está às voltas com um governante que reúne todos os piores adjetivos que poderíamos desejar: acéfalo, mal-intencionado e sedento por sangue. Em suma, temos no comando um dos maiores filhos da puta jamais paridos em terras tupiniquins. Assim, todo cuidado é pouco.
PS: No dia que Pinochet morreu, 10 dezembro, comemora-se o Dia dos Direitos Humanos, data estabelecida pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Isso é uma referência à data em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada. Coincidência pouca é bobagem.