Paralelas: Inuyashiki x Parasyte
/por Marcos Maciel de Almeida
A ideia desta nova seção é comparar obras que podem ter passado despercebidas pelo grande público. Especialmente porque – dado o atual cenário do mercado brasileiro de gibis, caracterizado por uma enxurrada de títulos nas bancas e livrarias – nem sempre é possível acompanhar tudo que está acontecendo, seja por falta de grana, tempo ou especialmente porque a revista em questão desapareceu sem deixar maiores vestígios. Os títulos escolhidos podem ou não ter pertinência temática. Serão de qualquer tipo, lugar ou época. O escriba Raio Laser da vez é quem definirá qual será a relação entre as obras.
Para estrear a coluna, escolhemos dois mangazinhos publicados nos últimos anos: Inuyashiki (Panini, 2017) e Parasyte (JBC, 2015), ambos com 10 edições cada. Começaremos fazendo uma pequena análise individual das obras, para, na sequência, elencar semelhanças e diferenças. Esperamos que gostem!
Inuyashiki – Aposentado e perigoso
Criado por Hiroya Oku, o mangá conta a história de um senhorzinho zero à esquerda, que tocava a vida do modo mais medíocre que você possa imaginar, até que – como só acontece nos quadrinhos – o insólito aparece. Neste caso, o bom velhinho – o Inuyashiki do título – dá o azar (sorte talvez?) de ter seu corpo acidentalmente destruído por alienígenas. Com total desconhecimento da morfologia humana, os extraterrestres reconstroem o idoso, que se torna uma máquina capaz de feitos inacreditáveis. O problema todo é que isso também aconteceu com mais um sujeito, Shishigami, que – para o desprazer da população japonesa – revela-se um escroto de marca maior.
É claro que os dois renascidos vão se enfrentar e tudo mais, mas o que realmente responde pelo bom nível do gibi é a habilidade do mangaká em trabalhar a chegada até esse clímax inevitável. Colaboram bastante para isso as contínuas intervenções de personagens tridimensionais, que poderiam ser nossos vizinhos e colegas de trabalho. Em mãos menos capazes, a história certamente descambaria para um roteiro preso ao dualismo maniqueísta, mas – para nossa alegria – podemos desfrutar de diversos e interessantes pontos de vista sobre o conflito entre os protagonistas. O percurso até essa rota de colisão é pontuado por passagens violentas e viscerais, que evidenciam o desejo do autor em despertar catarse no leitor, cuja experiência poderá ser qualquer descrita por quaisquer das sensações, menos a de indiferença.
Boa sacada do autor foi imaginar uma realidade em que o vilão consegue adentrar os celulares das vítimas e atacá-las tão facilmente como se tivesse meramente girado uma maçaneta. E, sim, trata-se de uma sutil metáfora para os malefícios que esse aparelhinho viciante e aparentemente imprescindível tem trazido para nossa sociedade. A capacidade de Shishigami de invadir eletronicamente a casa das vítimas é um bom exemplo de como as máquinas estão cada vez mais tomando as rédeas de nosso cotidiano a despeito de nossa vontade. Duvida? Tente impedir seu celular de fazer uma atualização do sistema operacional. Não conseguiu? Nem eu.
Agora, tenho de confessar que todo esse poder do Shishigami me deu uma baita inveja. Imagina conseguir fazer o que ele faz e localizar o endereço físico de todas as pessoas que se utilizam do anonimato na rede para falar e praticar barbaridades? Sabe aqueles sujeitos que são muito valentes para dizer tudo que pensam porque têm a certeza de que não poderão ser encontrados? Bem, digamos que neste mangá o ditado popular “quem fala o que quer, ouve o que não quer” será pago com juros e correção monetária.
Parasyte – Nowhere to run. Nowhere to hide.
Esse gibi é daquele tipo que você começa com grande má vontade, seja pelo fato de a arte ser comum demais, ou em razão de os protagonistas serem um tanto quanto sacais. Quem insiste, porém, é recompensado ao encontrar uma trama bem urdida e instigante, com personagens interessantes, que surgem no momento certo, como se fizessem parte de uma dança exaustivamente ensaiada.
Parasyte fala sobre uma invasão alienígena ocorrida no Japão. Para azar da população, os bichinhos são parasitas e vão – claro – se instalar nos corpos dos humanos. Nas vezes em que a entrada do parasita ocorre do modo normal, o invasor consegue dominar o cérebro do hospedeiro. No entanto, há ocasiões em que a vítima consegue manter o controle mental, restando ao sanguessuga nada mais que dominar determinada parte do corpo. Foi o caso do protagonista, o aparentemente insosso Shinichi, que mantém suas faculdades mentais em detrimento da perda do controle da mão direita, novo habitat natural de seu parasita de estimação, batizado de Miggy. Sim, eu também sei que é um nome idiota.
Em sua jornada de adaptação à nova “vida a dois”, Shinichi vai encontrar inúmeros desafios e outros seres parasitados, de todas as espécies, tipos e índoles. Um dos grandes temas transversais do mangá é a luta pela sobrevivência. Teriam os humanos mais direito à vida que a raça invasora? É legítimo matar para se alimentar? A vida dos seres racionais tem primazia sobre a dos demais? Estes são alguns dos debates levantados pelo autor Hitoshi Iwaaki, cuja qualidade maior é tocar o quadrinho de modo altamente despretensioso.
A escatologia é uma constante da história. E isso não surpreende tanto. Afinal, o principal alimento das pessoas infectadas são carne e sangue humanos. Assim, há profusão de cenas de assassinato, canibalismo e decapitações prontinhas para agradar aos gore lovers de plantão. Para se ter uma ideia, dado o nível de violência dos ataques, a mídia – acreditando serem ações perpetradas por serial killer – apelida o suposto autor dos massacres de assassino do moedor de carne.
A fluida narrativa é permeada por momentos de suspense que puxam o tapete do leitor nos momentos mais inesperados. A aparente calmaria de determinadas cenas esconde a tempestade de mutilações que está prestes a dobrar a esquina. Todos são potenciais vítimas e qualquer lugar pode tornar-se palco deste teatro do terror. O próprio protagonista não é intocável, muito pelo contrário. O sujeito sofre tanto que durante o transcorrer das páginas passamos a duvidar se vai sobrar alguma coisa dele para contar a história, tão grande é o número de situações nas quais leva a pior.
O final da minissérie, ambíguo e imprevisível, premia quem acompanhou a jornada dos personagens, que demonstram grande evolução. Bom exemplo nesse sentido é a transformação da companheira de Shinichi, que passa de namoradinha sem sal para mulher decidida, numa espécie de empoderamento feminino avant la lettre.
Pontos de convergência e divergência
Os mangás se aproximam na escolha da temática que fornece o mote inicial para as tramas: a presença alienígena na Terra. Em Inuyashiki, entretanto, a participação dos ETs é meramente incidental. Eles sequer aparecem. Nada é dito sobre suas motivações ou objetivos. Não se sabe se vieram para cá em missão exploratória ou se foi um pit stop para ir ao banheiro. Essa falta de maiores explicações me agrada como leitor, porque deixa a história em aberto para que o público preencha as lacunas.
Em Parasyte a coisa muda de figura. Os forasteiros aparecem em toda sua pompa e circunstância, embora não haja maiores explicações sobre sua origem, chegando inclusive a ser sugerido que seriam terráqueos advindos das camadas subterrâneas. É interessante notar que, diferentemente do que estamos acostumados a ver, eles não demonstram ter pretensões de dominação, buscando apenas meios para conseguir sobreviver. O gibi nos remete a um duelo darwiniano encabeçado por espécies racionais. Enquanto, em Inuyashiki, os aliens parecem estar se lixando para o destino do planeta, em Parasyte demonstram bastante preocupação com a capacidade destrutiva dos seres humanos. Em outras palavras, no final dos anos de 1980, época de publicação de Parasyte no Japão, o autor da série já levantava a bandeira dos cuidados com o meio ambiente, consumo consciente e vegetarianismo.
Há um intervalo de duas décadas entre a publicação original das obras. Um aspecto que evidencia essa pequena, mas significativa diferença temporal é o estilo de desenho utilizado. Em Parasyte, a estética é mais convencional e há menos recursos gráficos. Em Inuyashiki, a arte de Oku é um capítulo à parte. Extremamente detalhista, recorre a técnicas interessantes, como o desenho mesclado com fotografias, criando um efeito que aumenta o realismo da obra, sem prejuízo do aspecto lúdico. Ainda que tenha sofrido com a qualidade do papel escolhido pela editora, nosso bom e velho papel jornal, a excelência das ilustrações não se faz de rogada e salta aos olhos.
Inuyashiki fala principalmente sobre segundas chances e redenção. O renascimento do idoso permite que ele possa dar vazão à sua bondade e dignidade intrínsecas, qualidades nunca antes percebidas por sua família. Tido como o protótipo do loser, Inuyashiki consegue dar a volta por cima não porque deseje reconhecimento, mas porque buscou fazer o que lhe parecia correto. A evolução do caráter heróico de Shinichi, de Parasyte, entretanto, é construída de forma diferente. Shinichi se encaixa mais no perfil de vítima das circunstâncias. Levado por uma onda de situações extremas, ele torna-se o herói relutante que é forçado a agir não por opção pessoal, mas em razão de não existirem alternativas.
Considerações finais
Agarrar com unhas e dentes as novas oportunidades que a vida nos dá é a tônica de Inuyashiki. Tentar fazer a diferença e seguir no caminho do bem ainda quando todos acreditam que você é um fracassado é a provação que algumas pessoas têm de superar para conseguir a tão almejada paz de espírito. Já em Parasyte, a jornada do herói não é marcada pela proatividade, pelo contrário. Sem poder escolher qual caminho seguir, Shinichi é obrigado a continuar lutando para tentar salvar a pátria, não porque queira ajudar ao próximo, mas por uma estrita questão de sobrevivência das espécies.