Fun Home, autoficção de Alison Bechdel, é uma obra-prima sobre sexualidade e morte

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por Ciro I. Marcondes

“O fim da mentira dele foi o início da minha verdade”. Esta frase, presente no romance gráfico Fun Home – Uma Tragicomédia em Família, da autora Alison Bechdel, pode resumir bem as intenções que circundam esse denso e cultuado quadrinho. Relançado em 2018 no Brasil pela editora Todavia, ele é um marco em certa intelectualização da mídia, e trouxe matizes mais contrastadas ao gênero da autobiografia. 

Signo de maturidade, este é um verdadeiro bildungsroman (“romance de formação”) não apenas para a história de autodescoberta de sua autora, mas também para as narrativas gráficas como um todo. Suas páginas, em aquarelas de um azul cinzento com expressivo nanquim, se tornaram referência obrigatória na grande virada que o romance gráfico americano sofre a partir dos anos 1990. Sua sutil simbologia hoje é lida nas escolas, tal qual os livros clássicos que a autora referencia ao longo do texto. 

Fun Home saiu originalmente em 2006, e foi o primeiro quadrinho de Bechdel fora das tiras. Antes disso, ela havia trabalhado intensamente (desde o início dos anos 1980) na longa série Dykes to Watch Out For, uma espécie de sitcom interminável sobre um grupo de lésbicas que acompanha eventos políticos e sociais nos EUA, além de seus próprios problemas pessoais, através das décadas. Hoje é considerado um pioneiro em representações LGBTQ realistas na cultura pop, além de ser uma obra sarcástica e deliciosa de se ler.

O primeiro romance gráfico de Bechdel, no entanto, sustenta um tom completamente distinto. “A mentira dele”, que mencionei, se refere à vida do pai da autora, Bruce Bechdel, um homem enigmático e austero que escondia a própria homossexualidade, e que parecia compensar a falta de liberdade sobre sua natureza com uma obsessão por ornamentos refinados para casas, jardins e roupas. 

Sua meticulosidade com a aparência das coisas se aproximaria de uma “encenação” ou “floreio” das questões que realmente o incomodavam. Bruce era um homem da war generation, e tudo o que fazia parecia um equilíbrio frágil entre o passado e o futuro dos costumes americanos. Ele morreu atropelado aos 44 anos, o que faz com que a autora inicie uma série de hipóteses sobre um possível (e dramaticamente calculado) suicídio.

Se “a mentira dele” é um lado da história, a “minha verdade” é outro, focando no processo de construção da identidade de Alison, especialmente na averiguação e posterior realização também de sua homossexualidade. Há um momento em que ela admite a relação de especularidade invertida com o pai: enquanto ele era um homem que aparamentava seu exterior com uma estética e ornamentos que desviavam a atenção sobre sua vida secreta, ela, minimalista, rejeitava essa ficcionalização da vida, e assumiu seu lesbianismo aos pais, via carta, antes mesmo de ter qualquer relação homossexual. 

Autoficção e morte

A ficção, porém, é de suma importância para Fun Home. Primeiro porque a autora constrói o romance gráfico como um tipo de memorabilia intermitente que vai e volta no tempo, abusando de recursos narrativos sofisticados que combinam o caráter “literário” do texto com ilustrações cheias de colagens complementares e detalhes nos requadros. 

Há uma recursividade que justifica o narrar e o mostrar da história. Fun Home é textualmente rico e até verborrágico, mas jamais funcionaria sem o completo domínio que Bechdel possui sobre as possibilidades de se representar em quadrinhos. Como a maior parte do texto nos letreiros está no modo dissertativo, é difícil se afastar do aspecto investigativo da trama, que se questiona a todo momento sobre estar certa ou não a respeito da narrativa construída em torno da psicologia e da morte do pai. Assim, Fun Home se assume como autoficção no mais profundo sentido do termo.

Além disso, a ficção está, da mesma forma, presente na forte relação da obra com a literatura, já que ambos, pai e filha, eram leitores vorazes do cânone, e a autora procura investigar o passado e a psicologia de Bruce também através de sua biblioteca. Cada capítulo procura exaurir um aspecto do passado por meio de uma metatextualidade, ao produzir uma interpretação da vida em família por meio de trechos de Camus, Fitzgerald, Joyce, etc. 

A leitura a partir de Proust é particularmente elucidativa, pensando os jardins de Bruce como próximos ao jardim de Swann e às analogias que o escritor francês fazia entre a botânica e o mundo dos ornamentos (literários inclusive) e as reminiscências deixadas pelo tempo. A diferença é que, ao contrário da sutileza de Proust, Alison Bechdel evidencia também os aspectos incongruentes, engraçados e mórbidos de sua história. Fun Home pode ser macabro, mas também divertido.

A literatura, portanto, é mais um tipo de refração especular na obra, onde a verdade se esconde e pode no máximo ser pensada e repensada em cadeias interpretativas. Fun Home tem esse nome porque o pai da autora herdou uma funerária (“funeral home”) de seu próprio pai, e a presença de um imaginário mórbido é uma constante na família. A morte, no fim das contas, e sua estranha relação com o renascimento (das flores, por exemplo), é um tema central para esse quadrinho. 

A maneira como a morte de Bruce liberou a vivificou a verdade em Alison pode até ser uma arbitrariedade da autoficção, mas funciona perfeitamente nesta leitura. Por essas e outras razões, justificadamente, esse romance gráfico encontrou um lugar indispensável no cânone da história das HQs.

Publicado originalmente na coluna ZIP, do Portal Metrópoles, em 07/03/19