O CAVALEIRO DAS TREVAS DE GROO: COMO TRANSFORMAR UM IMAGINÁRIO DE IDIOTIA EM SOCIOPOLÍTICA - PARTE 1

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por Ciro Inácio Marcondes

Quem me conhece sabe que sou um grande fã de Sergio Aragonés e Mark Evanier, e esta não é a primeira vez que resolvo dedicar algumas palavras às histórias de Groo. Considero que o trabalho dessa dupla de autores tem o faro certo para preservar os aspectos interessantes e até filosoficamente instigantes do gênero espada/feitiçaria, e ao mesmo tempo expor certo ridículo do pessimismo “barbárico” de Robert E. Howard, com toda aquela conceituação estranha de que a barbárie subsiste à civilização e que seria o “estado natural” do ser humano. Se o bárbaro é o ser humano “puro” (agh), ele deve se parecer mais com Groo do que com Conan, e é aí que a coisa fica interessante mesmo.

O título deste texto é um click bait safado mesmo, mas ele preserva o embrião de uma ideia que tive há muito tempo, ao ler a edição número 19 da publicação O Humor Inteligente de Groo, o Errante, da Abril (saiu por aqui em 1991. O original é de 1988). A história que abre essa edição se chama “A Aldeia de Malefá”, e é uma ótima amostra sobre como, desde os primórdios, Arogonés e Evanier sabiam que as paródias de Groo poderiam de fato render uma reflexão (“inteligente”) sobre os meandros da civilização e da barbárie, não exatamente no teor essencialista e fatalista de Howard, mas sim construindo parábolas que explicassem modelos de sociedade correspondentes à nossa, e não às civilizações que inspiraram a Era Hiboriana. (nada contra Howard, entretanto. Curto muito).

Capa da edição brasileira onde está “A Aldeia de Malefá”.

Capa da edição brasileira onde está “A Aldeia de Malefá”.

Certo, Groo também faz valer o princípio howardiano de misturar povos da antiguidade clássica, pré-colombiana, medieval e até paleolítica para criar um tipo de cosmos “antigo” (às vezes nem tão antigo, pois os autores se valem muito de sociedades tribais, orientais e outros povos contemporâneos considerados “exóticos” que servem a esse fim nas histórias. Tudo bem, Aragonés não é antropólogo). Na verdade, isso faz parte da diversão: o delinear dos costumes, indumentária, arquitetura e possibilidades de interação social entre esses povos é uma das atrações maiores de Groo, especialmente pelo detalhismo obsessivo com que o desenhista ilustra essas coisas todas. Groo também diz respeito à pervasividade das programações culturais, e é sobre isso que quero me deter.

“A Aldeia de Malefá” é uma história muito curta (22 páginas), mas ilustra bem a capacidade que os autores têm em erguer uma crítica incisiva a certos aspectos da nossa sociedade por meio de uma paródia que mistura duas estruturas básicas de humor: primeiro, o senso de absurdo em geral que paira sobre as tramas, que é sentido reductio ad absurdum de quase toda história de Groo; segundo, e isso certamente se deve à origem de Aragonés na vinheta muda da MAD, é a gag, seja ela visual (estilo Buster Keaton) ou verbal (estilo Irmãos Marx). Esta fórmula, por manjada que seja (o próprio Evanier chegou a dizer que Groo é um gibi “de uma piada só”. Eu diria duas...) tem a mesma valência do blues ou do punk rock, em sua simplicidade econômica, capaz de se reinventar em uma miríade de formas (basta ver, em outra analogia, como o prisma de cores se estrutura a partir da recombinação apenas das três primárias).

Nesta história, o reductio ad absurdum ocorre quando Groo chega à malfadada aldeia pregando que vai caçar peles para vender, e o povo da cidade entende que ele quer extrair as próprias peles dos cidadãos. Isso gera uma reação em cadeia: os anciãos da cidade pregam para que se convoque o exército, e se dirigem ao rei, que decide (como sempre, para qualquer problema) aumentar os impostos. Começa então uma alta de preços na cidade, agravada pela ameaça da chegada do exército, que assusta as mulheres, base da manufatura têxtil, para fora da aldeia. Isso faz com que agricultores de lã, carne e outros serviços percam seus empregos. A especulação imobiliária faz com que as casas dos habitantes da aldeia percam valor, trazendo escroques e aproveitadores de cassinos e prostíbulos (dentre eles o próprio Evanier ilustrado) para comprar os estabelecimentos a preços baixos. Com a efetiva chegada do exército, a cidade está mergulhada no caos. É neste momento que chega Groo, e a história acaba.

“A Aldeia de Malefá”: embrião das grandes histórias de Groo nos anos 2000.

“A Aldeia de Malefá”: embrião das grandes histórias de Groo nos anos 2000.

Evanier chega a Malefá trazendo os agentes do caos!

Evanier chega a Malefá trazendo os agentes do caos!

Esta história bem simples, arguta e engraçada serve como tubo de ensaio para o que a dupla de autores vai trabalhar de maneira bem mais desenvolvida em A Grande Crise (The Hogs of Horder, 2009/10, que saiu no auge da “grande recessão”), elevando esses princípios basilares de humor colegial de Groo a uma espécie de forma de arte. Voltaremos a isso adiante. Por ora, basta dizer que Aragonés e Evanier otimizam, em “A Aldeia de Malefá”, um princípio muito factível para as realidades econômicas: a reação em cadeia de especulação a partir de certa aleatoriedade. Ainda que a quebradeira de bancos ocorrida entre 2008-2009 em nada tenha sido aleatória, histórias como estas de Groo mostram de maneira direta e didática as relações econômicas imanentes que vão se desmantelando em cadeia quando esta chamada “civilização” está apoiada somente em capital especulativo, compra de títulos e até moedas virtuais.

Como bem sabemos, O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight Returns, 1986) é a história do Batman que trouxe incrível sofisticação artística ao personagem, não apenas inserindo a mentalidade do herói no campo da psicopatia, mas também tensionando os limites de uma sociedade mergulhada em extremos, cujas respostas para diversos questionamentos levantados pelos personagens resvalam no fascismo e na tecno-obediência, no vandalismo e na formação de cultos. Além disso, o primor artístico do trio Miller/Varley/Janson, com temporalidades sofisticadas nos recordatórios, transições de todos os tipos entre os quadros, e uma precisão narrativa poucas vezes vista em quadrinhos, ajudou a demonstrar que um argumento básico vindo de um imaginário pulp e tosco (super-heróis) poderia se transformar num dínamo de significações bem mais complexas. A partir daquele momento, um gibi poderia falar de qualquer coisa, da maneira que bem entendesse.

Como eu já disse, o título deste texto é também uma piada. Há poucas coisas que alinham o que vou dizer sobre essas histórias “maduras” de Groo dos anos 2000 com o Cavaleiro das Trevas. Especialmente, não existe nenhuma inovação artística em si. Uma história do Groo de 2007 ou 2009 tem os mesmos dois tipos de piada que tinha em 1988. Mas uma coisa é certa: com esse embrião em “A Aldeia de Malefá”, Aragonés/Evanier vislumbraram as incríveis parábolas políticas, muito mais ambiciosas e sofisticadas em termos de como explicar os meandros de processos como o aquecimento global ou a crise financeira de 2008/2009, do que qualquer um poderia imaginar para um gibi de Groo. Nas histórias que vou analisar, o próprio bárbaro trapalhão funciona como espécie de “McGuffin” para disparar crises políticas, ecológicas, econômicas e guerras, tornando-se uma metáfora fantasma das forças invisíveis que norteiam “civilização e barbárie”.

Isso é bom? Para os puristas, talvez a dupla não devesse meter seu nariz em questões tão espinhosas num quadrinho que sempre prezou pela despretensão e pela gag vulgar, mas “A Aldeia de Malefá” e outras histórias mais antigas não me deixam mentir: Aragonés e Evanier sempre foram politizados. E não perdem a graça. Este texto é o terceiro e último de uma tríade que planejei escrever no contexto da pandemia, sobre guerras e crises econômicas, passadas e presentes. O “Cavaleiro das Trevas de Groo” é composto por três histórias selecionadas desta prolífica fase de reflexões sociais a que os autores se dedicaram na década de 2000, muitas delas ainda muito pertinentes para o nosso mundo de hoje, que está mergulhado em notícias falsas e nas ações de incels messiânicos conspiracionistas. Segue a análise de uma delas abaixo, e as outras duas virão em outra postagem.  

“A Aldeia de Malefá”: Groo e a civilização

“A Aldeia de Malefá”: Groo e a civilização

A Epidemia

Vale a pena se fixar nessa história A Epidemia primeiro por razões mais do que óbvias. Publicada pela Dark Horse em 2007 na edição Groo 25th Anniversary Special, saiu aqui pela Mythos em 2008 (Groo – 25 Anos de Desastres), na mesma edição em que foi publicada Inferno na Terra, que será analisada a seguir. Muito fortuitamente, Aragonés e Evanier fazem o bárbaro chegar a uma vila assolada por uma epidemia de gripe, onde ele encontra o Sábio, que, como sabemos, a despeito de suas máximas ironicamente redundantes e óbvias, representa, no universo de Groo, uma consciência mais logocêntrica, de um certo tipo de racionalidade iluminista, ou algo que o valha...

“A Epidemia”: visionária história de Groo que anteviu o que estamos miseravelmente vivendo.

“A Epidemia”: visionária história de Groo que anteviu o que estamos miseravelmente vivendo.

O paralelo com a situação atual (pandemia do Coronavírus), numa história já tão distante no tempo, chega a ser assustador, mas apenas ratifica a capacidade que a dupla Aragonés/Evanier tem em fazer leituras incisivas sobre contextos geopolíticos de cenários que ainda podem acontecer. Groo (assim como ocorrerá em Inferno na Terra) acompanha o Sábio para tentar encontrar uma solução para o problema da epidemia, e curiosamente, vai se deparando com contingências que em muito se assemelham à disputa de narrativas científico-culturais que vemos ser travadas em guerras de memes e notícias falsas que abundam na nossa atual tecno-civilização em vias de total colapso. Vale listar algumas destas curiosas anedotas e tentar entender em que espectro das infowars Aragonés/Evanier se situariam em cada caso:

·       O vírus veio do contato da vida silvestre com os homens, e pode ter sido criado em laboratório: Groo e o Sábio têm contato com a primeira infectada, que diz ter contraído a enfermidade ao “dar beijinhos” num macaco de estimação. O bárbaro então se lembra que trabalhou numa espécie de laboratório clandestino onde um tipo meio “cientista louco” procura desesperadamente testar uma cura para prisão de ventre em macacos presos em gaiolas. Desta precária experiência “científica” realizada num rincão escroto do mundo, nasceu a epidemia. Ainda que os autores desta vez não localizem a origem da enfermidade na China (que, no mundo de Groo e de Conan, é o país Khitan) como farão em A Grande Crise, não surpreende a suposição de que novos vírus emergem de experiências duvidosas, laboratórios espúrios, em más condições científicas. Não fica claro, na história, no entanto, se as intenções do cientista eram efetivamente espalhar uma moléstia com fins políticos (como propagandeiam por aí cruzados conspiracionistas de uma retórica alt-right).

“O vírus foi criado em laboratório pelo chineses” gagagaga.

“O vírus foi criado em laboratório pelo chineses” gagagaga.

·       As pessoas não conseguem parar de se beijar: Neste sentido, os autores se voltam aos meios de transmissão da doença, que são próximos ao que vivemos hoje no drama do Coronavírus – transmissão pela saliva, beijos, relações humanas, enfim. O Sábio procura alertar a população que medidas preventivas sacrificiais precisam ser tomadas, como por exemplo, distanciar umas das outras e pararem de se beijar, além de usarem máscaras (2007, pessoal). A decepção é total diante da irredutibilidade obtusa da população. O Sábio coloca na equação a incapacidade que povo tem em realizar ações preventivas de longo alcance, quando necessidades urgentes que dizem respeito ao dia-a-dia tomam toda a força vital dessas pessoas. Ou seja, aqueles que vivem apenas o presente sem uma possibilidade existencial/econômica de ter o privilégio de planejar um futuro. O famoso vender o almoço pra comprar a janta. O curioso é que Aragonés/Evanier incluem nessa urgência descontrolada fatores afetivos (beijar) e sociais (aglomerar), algo que ficou patente no comportamento egoísta e autocentrado do cidadão brasileiro na pandemia do Coronavírus, num misto curioso de (des)ordem social messiânica e total incapacidade de organização enquanto nação ou mesmo sociedade.

Pedir aos sacerdotes pro povo usar máscaras! hahahah

Pedir aos sacerdotes pro povo usar máscaras! hahahah

·       A destruição das florestas para abrir pasto: Certo, esta é uma questão contemporânea que diz respeito à industrialização predatória do consumo de carne, e pouco teria a ver com um mundo barbárico/medieval com baixa emissão de CO2 como o de Groo. Forçando um pouco a barra, porém, Aragonés/Evanier colocam a cura para a epidemia numa floresta tropical habitada por índios que bem poderiam ser brasileiros Tupi-Guarani, carregando aquele tradicional bastião “bom selvagem” de protetores da mata. A questão é que a área florestal onde vivem as frutas que contêm a cura para a epidemia está sendo derrubada para virar pasto. Isso fica um pouco fora de contexto, já que os autores levantam uma crítica à produtividade do agronegócio sem que isso tenha maior intercalação com o resto da trama. A Epidemia, é verdade, é bem menos sofisticada que as histórias a seguir, e parece mais um enfileiramento de bandeiras (às vezes aleatórias) do que uma trama-base que se fia em eventos, estrutura, conflito e reações mais complexas de causa e efeito, como é o caso das duas seguintes.

Ainda há espaço pra um discurso ecológico…

Ainda há espaço pra um discurso ecológico…

·       O descaso do clero e da nobreza: Como é de praxe nas histórias de Groo, governantes são mesquinhos, agem impulsivamente, pensam sem consequências e empurram problemas para reinos vizinhos, geralmente provocando guerras. O que vemos no mundo de hoje, onde praticamente tudo que diz respeito à pandemia (do desenvolvimento da vacina, a curas milagrosas, ao questionamento de métodos preventivos recomendados pela ciência, à origem da doença, etc.) passa a ser mediado por interesses político-hegemônicos das infowars, de certa forma aparece preconizado, ainda que de maneira um tanto simplória, também nesta história. O Sábio e Groo vão ao clero para solicitar que os religiosos orientem a população a tomar medidas preventivas. Porém, tanto clero quanto nobreza estão interessados apenas em curar a si próprios, e manter seus currais de poder. Nada de novo no front.

Governantes, vacina, cura…

Governantes, vacina, cura…

·       Curas milagrosas e a politização da medicina: A história termina com a seguinte “moral”: “a ganância é uma moléstia em si mesma”. É o mote principal de A Epidemia, já que os médicos, que poderiam colaborar para restaurar a “sanidade sanitária” da população, estão interessados em manter as pessoas doentes e perpetrar eternamente tratamentos caros e ineficientes. A própria ordem científica é criticada por afirmar que uma cura definitiva “levará tempo demais”, etc. A mensagem do Sábio é clara: é preciso vontade política, econômica, conjunturas entre a pesquisa e a sociedade, além da colaboração do setor privado, para que eventos de grande porte como a cura de uma epidemia possam acontecer. No caso dessa anedota, aqui no Brasilzão jeca nosso de cada dia, nosso “líder” negacionista ofereceu ao povo uma panaceia inútil (abandonada em qualquer outro país) que inacreditavelmente continua sendo receitada por médicos que parecem tão burros/vis quanto ele, enquanto milhares de pessoas morrem por dia.

Médicos negacionistas e charlatões: a gente vê por aqui.

Médicos negacionistas e charlatões: a gente vê por aqui.

CONTINUA NA PARTE 2, SEMANA QUE VEM