Em defesa do gibi fasciculado e outras cositas más
/por Marcos Maciel de Almeida
Colecionar quadrinhos é um hábito substancialmente diferente hoje que quando comecei, 35 anos atrás. Naquela época esse tipo de entretenimento era muito mais acessível por diversos fatores. E os principais dentre eles são, necessariamente, interdependentes: formato e preço. Os gibis de massa do início dos anos 80 – e aqui incluo desde linha infantil e infantojuvenil da Editora Abril, passando pelas edições eróticas e de terror de editoras como a RGE, Vecchi e Grafipar – eram produtos praticamente descartáveis, com papel jornal e dimensões reduzidas. O objetivo deste tipo de publicação era chegar ao máximo de pessoas. Altamente disseminados e com presença massiva nas bancas, as revistas em quadrinhos desse período tinham tiragens gigantescas e preços razoáveis, razões pelas quais havia grande rotatividade no número de leitores e intensa possibilidade de renovação dos mesmos, dadas as facilidades de acesso a este tipo de material.
Hoje o cenário é totalmente diverso. As tiragens são mínimas e, tirando as seções de quadrinhos das grandes livrarias, o local de excelência para a compra de gibis é a internet. Claro que os gibis vendidos em banca ainda representam parcela importante das vendas, mas cada vez mais o hábito de ir às bancas para comprar revistas é um costume em extinção. Quem acompanha esse mercado certamente já escutou a máxima “quanto maior a tiragem, menor o custo de impressão e – por consequência – o preço”. Seguindo essa lógica, o que assistimos nas últimas décadas foi a drástica redução no número de revistas impressas acompanhado do inexorável aumento dos preços. Isso fez com que, gradualmente, as revistas em geral – não apenas quadrinhos – fossem perdendo espaço nas bancas e se tornassem mercado de nicho. Não é difícil perceber que as bancas hoje estão ou desaparecendo ou se tornando pontos de venda de produtos acessórios como capinhas de celular e outros tipos de bugigangas. Sem ter onde encontrar seu gibizinho – sempre mais caro – vai ser difícil para a molecada se transformar em público consumidor, o que reduz tiragens e acarreta aumento dos preços, num círculo vicioso nada alvissareiro. Mas essa é outra história.
Outro fenômeno bastante comum – não exclusivo do Brasil – é a preferência pela aquisição das edições encadernadas em detrimento das chamadas “soltas”. Verdade seja dita, essa tendência demorou a se cristalizar. Tudo bem que quem compra antes as mensais tem o material em primeira mão, mas saber que logo na sequência virá o encadernado – normalmente acompanhado de páginas extras, por um preço mais convidativo – faz com que leitores menos ansiosos percebam, na ponta do lápis, que as revistas soltas não valem mais tanto a pena. Além disso, os formatos convencionais das revistas brasileiras, normalmente no estilo “mix”, ou seja, contendo diversos títulos diferentes, num esforço para viabilizar a publicação de vários personagens, mostra-se pouco atraente. Quantas vezes já não quis retirar as páginas de determinada revista para ficar só com as que me interessavam? Era apenas uma questão de tempo até que a maioria se desse conta que – inclusive por razões de espaço – era mais interessante partir para os formatos encadernados, muito mais elegantes na estante. O que nos leva para o próximo ponto.
O lançamento – praticamente consolidado – de edições encadernadas luxuosas, normalmente em capa dura, “salvou” o mercado de HQs no Brasil e no mundo. Convenhamos, foi uma grande sacada das editoras. Com as vendas em franca decadência, em grande parte devido ao crescimento incontrolável dos onipresentes “scans”, o mercado percebeu que deveria fazer um aceno aos fãs que ainda tinham – bem lá no fundo do coração – um apreço maior pelas edições impressas. Como isso aconteceu? Na verdade, foi uma jogada bastante simples: oferecer ao leitor material exclusivo, que deixasse aquela coceirinha na cabeça. Algo do tipo “se você é um colecionador que se preze, tem de adquirir essa versão aqui, afinal ela foi feita especialmente para fãs diferenciados”. Eis aí o sinal verde para a chegada das edições omnibus, absolute, complete e etc. Claro que isso dá margem para muita propaganda enganosa. Comprar um gibi chamado edição definitiva (“Olá, Promethea da Panini”) e descobrir que, na verdade, serão dois volumes é o fim da picada. Mas estou fugindo do ponto principal. O que interessa, na realidade, é dizer que as editoras conseguiram sair da UTI com a chegada das edições capa dura.
Paradoxalmente, a internet ajudou bastante nesse ressurgimento das HQs. Afinal, se você era fã de verdade, esse fato não deveria ficar restrito ao seu clubinho de amigos. Como dizia a cafona canção do Roupa Nova, você tinha que gritar para que todo mundo pudesse ouvir sobre seu amor e condição de fã inveterado. E com o auxílio das redes sociais, seus problemas haviam acabado. Todo mundo saberia que você era foda, afinal sua estante estava abarrotada de todos os principais clássicos, porque você, meu caro, é true. Não é igual a essa galera que nunca leu formatinho. Você estava lá desde o começo. Nada mais justo que pudesse sair do anonimato e se sobressair em relação ao pessoal que veio por causa dos filmes. A partir desse momento, começam a chover lançamentos com uma pegada mais exibicionista que colecionista. Edições capa dura de numeração infinita com lombadas formando desenhos mirabolantes estão aí para não me deixar mentir. Tem até gente, do calibre do quadrinista e youtuber norte-americano Ed Piskor, que defende o fato de a lombada já ter roubado o protagonismo da capa. Em suma, ideias como essa mostraram ser mais uma “bola dentro” das editoras no sentido de garantir sua sobrevivência.
Tudo isso para dizer que – por essas e outras – nosso querido gibizinho “solto”, fasciculado ou lombada canoa, como queiram, está com os dias contados, o que é uma pena. Ficou corriqueiro ver leitores se desfazendo das edições finas pelo simples fato que elas deixaram de ser cool. Como diria um amigo meu, colecionador das antigas, ao me presentear com diversas minisséries fasciculadas: “estou abandonando o formato”. Respeitei a decisão, mas não deixei de notar uma certa empáfia, típica daqueles que cospem no prato onde comeram. Pobre formato lombada canoa. Não tem o prestígio de uma lombada facilmente reconhecível na estante, tampouco a resistência de uma capa dura. Apesar disso, o gibi fasciculado não pode ser menosprezado, pois ainda tem seus encantos.
Em primeiro lugar, o gibi “solto” é um retrato do seu tempo. Não que qualquer gibi não seja isso também, mas os gibis finos carregam em si traços mais marcantes do zeitgeist. Seja por suas propagandas bizarras, colorização artesanal, capas ou mesmo pelas – infelizmente descontinuadas – seções de cartas, essas edições são recortes mais fidedignos de suas épocas. Refletindo com meus botões, me vêm à mente recordações de períodos mais ingênuos e – frequentemente – constrangedores que somente os gibis soltos podem nos proporcionar. Quem não se lembra das imagens de heróis nas contracapas dos comics norte-americanos dos anos 90 na campanha para aumentar o consumo de leite e fortalecer os ossos? Ver o bigodinho de leite na máscara do Homem-Aranha era impagável.
Propagandas em gibis: Retratos inequívocos de uma época.
Num gibi encadernado é possível corrigir eventuais erros surgidos nas edições originais. Nos gibis fasciculados nem sempre há tempo disponível para tanto. Pela natureza de sua produção – massiva e em tiragens mensais ou mesmo quinzenais – não é difícil achar exemplos que mostram como o gibi fino estava na linha de frente no sentido de oferecer visão mais transparente do mundo editorial. Caso emblemático nesse sentido foi a publicação de Elseworlds 80-Page Giant #1 (junho de 1999). Esta edição, que continha a história “Letitia Lerner, Superman's Babysitter” foi retirada de circulação por apresentar um bebê Superman se divertindo dentro de um forno microondas. Inocência, falta de noção ou desatenção dos editores? Não sei dizer, mas o episódio ilustra como o gibi fino permite acesso privilegiado a produtos mais crus e menos pasteurizados. Em suma, ele nos entrega “the real thing”.
Outro fator de atração são as capas. Na edição encadernada você tem de dar a sorte de que justamente sua capa favorita seja a escolhida pelos editores. E, ainda assim, ela será retocada. Não se pode ignorar também que os gibis finos são ideais para uma leitura rápida e descompromissada. Seus cerca de vinte minutos de duração são perfeitos para uma ida ao banheiro. Tente fazer isso com uma edição omnibus. Não dá. Seu gibi sairá – quando não avariado – vilipendiado por essa experiência nefasta.
Mas o grande motivo para manter quase intacta minha coleção desse tipo de publicação é que nada substitui o prazer de ler um gibizinho fino deitado na cama. Além da sensação de leveza – ipso facto – não existe o perigoso risco (inerente à leitura de absolutes e afins) de que um calhamaço despenque em sua cabeça, na eventualidade do aparecimento de uma dormida não programada.
Não serei o último dos moicanos para morrer abraçado com os gibis mensais. Mesmo porque faz muito tempo que não os compro. Mas certamente não vou me desfazer daqueles que já carrego comigo há algumas décadas. Para além do valor afetivo intrínseco, acredito que ainda funcionem como retratos inequívocos de seu tempo. Suas páginas amareladas e – por vezes – amarrotadas, com capas repletas de vincos, são marcas do tempo que lhe conferem charme e materialidade. Manusear esses gibis é uma viagem no tempo, que remete a momentos mágicos e marcantes de minha vida. É nessas ocasiões que reativo meu amor incondicional pela nona arte, que me transporta para um lugar único. No fim das contas, concluo que não importa se as HQs são formato americano, formatinho, fasciculadas ou encadernadas. O importante é o prazer que proporcionam. Mas o vazio deixado pelos gibis finos – que estão às portas da morte – dificilmente será preenchido.
Referências:
Barnett, David. Why are comics shops closing as superheroes make a mint?
Bigarelli, Barbara. O que falta ao mercado de quadrinhos no Brasil.
Cartoonist Kayfabe. Wizard 17, January 1993.
Júnior, Gonçalo. Livrarias em alta; bancas em baixa.
Yuge, Claudio. Comércio brasileiro de HQs recorre à tecnologia para enfrentar o coronavírus.