O assassinato político mais popular da história dos EUA: uma entrevista com Derf Backderf sobre Kent State
/por Bruno Porto
Um bate-papo com o premiado quadrinista Derf Backderf durante o Festival de Angoulême 2020 sobre sua próxima graphic novel, Kent State: Four Dead in Ohio, que recria o episódio em que soldados da Guarda Nacional estadunidense abriram fogo contra estudantes que protestavam contra a Guerra do Vietnã, resultando em 4 mortos.
Ao final da manhã do primeiro dia da 47ª edição do Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, passo pelo estande da editora francesa Çà et Là, na tenda Le Nouveau Monde, e Derf Backderf está terminando de autografar um exemplar de Trashed, sua graphic novel de 2015 inspirada na época em que trabalhou como lixeiro. Me posiciono atrás do sortudo único leitor daquele momento – nos dias seguintes, haveria uma fila constante de pessoas com uma ou mais cópias de seus livros na mão. Nos últimos anos, o festival tem arrastado algo em torno de 200 mil visitantes pelas estreitas ruas e ladeiras desta pequena cidade murada, entre os quais cerca de 6 mil quadrinistas. Backderf é um dos mais prestigiados não-europeus presentes. Seu livro mais conhecido, Meu amigo Dahmer, onde relata sua amizade adolescente com aquele que se tornaria um dos mais famosos serial killers dos EUA, Jeff Dahmer, foi premiado em Angoulême em 2014 e adaptado para o cinema três anos depois.
Quando o satisfeito proprietário da dedicace se afasta do estande, digo-lhe que provavelmente não se lembraria de mim mas havíamos sido apresentados na edição retrasada do festival. Ele confere meu crachá de Presse Internationale para não cometer nenhuma gafe e gentilmente retruca: "é claro que me lembro, Bruno, é bom revê-lo". Na edição de 2018 do festival, o amigo comum Marcello Quintanilha – também publicado na França pela Çà et Là – nos apresentou após uma sessão de desenho ao vivo em que ambos participaram na tenda do Espace SNCF, que eu fotografei, e bebemos algumas (muitas) cervejas no bar da área VIP do local.
Talvez ele não se lembrasse realmente de mim naquela hora, mas quando voltei no dia seguinte com um exemplar de Meu amigo Dahmer nas mãos e encontrei a fila de autógrafos encerrada, virou-se para a pessoa da editora que tentava me despachar com o je suis désolé de praxe e intercedeu a meu favor, no mais clássico sotaque do Centro-Oeste estadunidense: It's aaawright, this is Bruno.
Nos cruzamos umas outras duas vezes no vai-e-vem frenético de um dos maiores festivais de quadrinhos do mundo mas não tivemos oportunidade de trocar mais do que algumas palavras. Ele estava todos os dias no estande autografando por pelo menos três horas e participou de duas mesas redondas, enquanto eu cobri exposições e fiz algumas entrevistas com quadrinistas europeus para o canal Eurocomics. Na penúltima tarde do festival, estava recarregando as energias com o café da sala de imprensa e meu olhar cruza com o de Derf, em uma mesa próxima, checando e-mails no celular. Digo-lhe que estou ansioso pelo seu próximo livro, Kent State, que equivocadamente achei que já estaria pronto para o festival. Estava me preparando para sair – havia marcado uma entrevista com o editor dos quadrinhos digitais da Dupuis – quando ele me acena para sentar. "O que gostaria de saber?", indaga. Pergunto se posso gravar. Suure, diz ele.
“Kent State foi uma tragédia em 1970 nos Estados Unidos, no auge da Guerra do Vietnã”, ele começa. “Houve um grande protesto em uma universidade, chamada Kent State University, que ficava muito perto de onde eu cresci, em que um grupo de soldados disparou contra uma multidão de quinhentos estudantes, matando quatro e ferindo outros nove. Esse momento foi uma das primeiras vezes, e certamente a primeira na história moderna do país, em que o governo apontou suas armas para seus próprios cidadãos”. Faz uma pausa. “Foi um evento que ecoou por décadas, e ainda o faz”, entristece-se.,
Ele é sincero em sua tristeza. Quatro mortos e nove feridos não é exatamente uma tragédia para os padrões brasileiros, atualmente com mais de 65 mil assassinatos por ano. Só no Estado do Rio de Janeiro, no ano passado, 1.810 pessoas foram mortas por disparos feitos por policiais. Pelos menos cinco eram crianças de 8 a 11 anos, e 19 eram adolescentes. Pergunto quantos anos tinha quando Kent State aconteceu.
“Eu tinha dez anos”, responde. “Os soldados que atiraram estavam no vilarejo onde eu morava antes de irem para a universidade, chamados por causa de uma greve de caminhoneiros. Então eles ocuparam nossa cidade, e eu costumava ver aqueles soldados e todas as suas armas, era assustador… E então eles foram para Kent, e abriram fogo…”
Atualmente, Kent State é a segunda maior universidade pública do Estado de Ohio, superada apenas pela Ohio State University, localizada na capital Columbus. Segundo Derf, poucos dias antes da tragédia contada em seu livro, a Ohio State fora palco de tumultos e confrontos violentos entre milhares de manifestantes, policiais e patrulheiros rodoviários. “Foi muito maior que os protestos em Kent. Ohio State tinha mais que o dobro de alunos, e era um campus urbano cercado por densos bairros estudantis impossíveis de se isolar”. No tumulto, radicais incendiaram prédios universitários, causando grande prejuízos, e a opinião pública se voltou contra o então governador, Jim Rhodes. “Quando a crise em Kent explodiu alguns dias depois”, Derf continua, “ele aproveitou a oportunidade para salvar a cara e provar a si mesmo que era um bonzão da lei e da ordem. Rhodes enviou a Guarda Nacional com força esmagadora para acabar com o protesto na Kent, mesmo que a Patrulha Rodoviária pudesse facilmente ter lidado com isso! Vidas foram perdidas porque um político matreiro quis se exibir… É difícil de acreditar!”, lamenta.
Enquanto ele fala, me passam pela cabeça alguns dos recentes episódios na cena política brasileira - como o governador fluminense Wilson Witzel dizendo que durante seu mandato a polícia “vai mirar na cabecinha e... fogo!”, ou comemorando com pulinhos e soquinhos no ar a morte do sequestrador de um ônibus na Ponte Rio-Niterói, abatido por um sniper - mas me contenho. Ele prossegue: “Enfim, essa é uma grande história, isto é, é uma história realmente dramática, trágica, muito emocional. Então, pesquisei bastante e a contei através dos olhos e das experiências das quatro pessoas que foram mortas, destes quatro estudantes. Muito ainda está sendo discutido, cinquenta anos depois, porque os soldados nunca se pronunciaram, houve um grande acobertamento, os políticos se envolveram, [o presidente Richard] Nixon... E agora, veja bem, aqui estamos, você sabe, nós meio que voltamos para o mesmo lugar, e não apenas nos EUA, isso está acontecendo em todo lugar!”.
Menciono os últimos casos de repressão policial em países da América Latina, dando Chile e Brasil como exemplos, e simultaneamente lembramos da própria França - onde estávamos naquele momento. Aquela edição do Festival de Angoulême ficaria justamente marcada por diversos protestos e paralisações “ilustradas” por cartazes e placas apresentando o gato Fauve, mascote do Festival, e outros personagens de HQs com um dos olhos enfaixado ou sangrando (abaixo), em referência a um lamentável símbolo da violência policial: atirar balas de borracha nos olhos de manifestantes. “Você tem esses enormes protestos, e a polícia fica mais brutal cada vez que há um protesto... Estamos muito, muito perto de outro Kent State. Portanto, [essa HQ] é um alerta que considero relevante. É importante lembrar quando você ameaçou seriamente as pessoas que estão no poder. As consequências podem ser amargamente altas”.
Comento como em casos como estes a importância da narrativa do que realmente aconteceu estar claramente estabelecida, principalmente porque o assunto deve voltar à tona no cinquentenário do acontecimento, em 4 de maio deste ano. “Sim, a História pode ser sempre reescrita para atender seus propósitos: ‘O que fizemos foi justificado’. Teve muito disso em Kent State. Alguns meses após o tiroteio, fizeram uma pesquisa e 65% das pessoas consideraram que era algo justificável os soldados terem aberto fogo. Foi o assassinato mais popular da História dos Estados Unidos”. E contra manifestantes que não estavam usando violência, certo? “Bem, você sabe”, ele concede, “eles não foram totalmente não-violentos... Mas a maioria das pessoas que foram baleadas, mais da metade delas, eram apenas estudantes entrando nas salas de aula, eles não estavam nem protestando. Das treze pessoas que os tiros atingiram, onze foram baleadas nas costas. E os guardas disseram que foi legítima defesa! Então, a menos que os estudantes estivessem correndo de costas em direção aos guardas para atacá-los, é difícil argumentar neste sentido”, ironiza. “Esses jovens estavam apenas começando a vida, você sabe como é quando você está na faculdade: tudo está à sua frente, você está se encontrando, e então BAM!!!, são esmigalhados pela História”.
Pergunto se ele se lembrava de ter visto, na época, reportagens nos jornais e revistas que focaram em quem eram os estudantes que morreram, como ele estava fazendo. “Um pouco, mas não tanto quanto eu estou fazendo aqui”, responde. “Conversei com os amigos e alguns dos familiares ainda vivos dos estudantes, então eu realmente entendi como eram essas pessoas naquela época. Falei com seus colegas de quarto, ou com as pessoas com quem saíam, com quem escutavam música, essas coisas. É um tipo de olhar diferente sobre essas crianças. Eles eram crianças notáveis, todos os quatro. E suas vidas foram apagadas. É horrível. E, você sabe, meus filhos têm essa idade agora, eles estão na faculdade. Eu não consigo imaginar recebendo essa ligação. E mesmo assim [suas famílias e amigos] foram submetidos a ataques horríveis depois... A mães de um destes jovens recebeu uma carta manchada de fezes, e recebiam telefonemas vis, desagradáveis, com coisas como ‘eles mereciam, você é escória por ter um filho tão blá blá blá. Você está sofrendo com a perda de seu filho e, de repente... Não é como o tipo de coisa online de hoje, mas de certa forma era pior porque era pessoal! Eles estavam falando com você no telefone ou gritando com você na rua! É horrível!”.
A descrição daquele bullying à moda antiga me lembrara algo. Comentei que Meu amigo Dahmer também é um alerta sobre as pessoas que simplesmente caem nas falhas do sistema, nunca sendo notadas, até que seja tarde demais. Ele concordou, e conversamos um pouco sobre a pesquisa feita para o livro (“Foi IMENSA!”) e a fidedignidade aos fatos. Ciente de seu histórico de três décadas de trabalho em redações de diversos jornais, perguntei se achava que uma graphic novel baseada em fatos reais precisa necessariamente abordar os dois lados de uma história, ou se bastava o ponto de vista que o autor escolheu. “Depende do que você está tentando realizar”, respondeu. “Eu mostro pelo que esses quatro jovens passaram, e há também um soldado. Eu tenho o depoimento de um soldado. Ele não se sai particularmente bem, mas são suas palavras, seu relato. Então, eu tenho o ponto de vista deles. Mas quando olho para isso, não vejo qual é o outro lado. Não houve feridos entre os soldados, que tinham armas, tanques, helicópteros, gás... E os estudantes, tinham o quê? Pedras? Então, o que pode se tentar equilibrar [na narrativa]? E tudo o que eles estavam fazendo era protestar contra a guerra. Algumas vezes ficou um pouco fora de controle, mas era tudo o que estavam fazendo. Existe maneiras melhores de lidar com isso do que atirar nas pessoas”.
Em outubro do ano passado, a editora que publica Kent State, Abrams ComicArts, colocou algumas Advance Review Copies do livro à disposição em seu estande na New York Comic Con. Na época, Derf comentou que “essas são cópias cagadas em papel vagabundo, mas se você não pode esperar pela coisa pronta, vá lá – desde que prometa comprar o livro de verdade”. Vale seguir o conselho e aguardar o lançamento: a arte de Kent State é o que de mais sofisticado Backderf produziu até o momento. Se nas suas graphic novels anteriores o autor retratou, em grande parte, apenas ambientes e personagens relativamente familiares e de certa forma até mesmo intimistas, a escala do conflito, o aparato armamentista da Guarda Nacional e uma variedade maior de cenas de ação o fizeram adotar escolhas gráficas – como enquadramentos mais abertos e uma gama maior de tons de cinza – fora do que ele e seus leitores possivelmente tem como zona de conforto.
“Foram quatro anos [de trabalho] no total, com os dois primeiros sendo principalmente para pesquisa”, ele conta. “Mesmo quando eu comecei a desenhar, você sabe, eu ainda gostava de continuar seguindo as coisas... Às vezes você consegue uma entrevista que não tinha antes e diz "que merda, eu tenho que mudar essa cena agora!"... Não houve muito disso, meu Deus, você pode pesquisar uma história para sempre! E poderia ficar um livro de 800 páginas, mas aí quem iria ler?”. Quanto tempo levou para fazer o lápis e a arte-final? “Primeiro você faz todos os lápis, depois passa nanquim em tudo, e depois faz todos os acabamentos. Levou dois anos para desenhar, desde que comecei a fazer os thumbnails, que é como escrevo, fazendo pequenas miniaturas das páginas, pequenos desenhos e escrevendo os diálogos… Depois, o lápis, e a tinta, e os acabamentos…” Ele suspira, abre um pequeno sorriso triste. “Foram dois anos difíceis, eu gostaria de ter tido mais um ano [para terminar]”.
Na fase de acabamento, onde aplica os tons de cinza nas ilustrações, Derf manteve uma produção média de cinco páginas por dia. Durante 2019, trabalhava até o cansaço o derrubar. Estava tão ocupado em aprontar as 252 páginas de quadrinhos (o livro tem 288 páginas no total) para o lançamento antes do cinquentenário da tragédia que não pode produzir uma imagem especialmente para a capa: “É uma página, uma cena, de dentro. Eu estava tão ocupado terminando o livro que disse para usar essa imagem… porque essa é a melhor, dos soldados abrindo fogo. Eles disseram OK, coloriram, fizeram o design… ficou bom, não ficou? Há imagens piores, da carnificina, mas você sabe, ninguém quer isso na capa…”. Disse-lhe que achava que a capa sintetizava o ponto principal do livro, que é o ataque dos soldados. Já tinha visto que a capa francesa seguia o mesmo design, então perguntei se ele costuma opinar sobre as capas das edições estrangeiras de seus livros. “Bem, sim e não. Você sabe, a Abrams, minha editora nos EUA, controla isso. Eles não querem que as pessoas mexam nas capas. De vez em quando, um editor mexe, e eles checam comigo. Eu digo OK ou, você sabe, não. Algumas vezes eu disse que não”, ri. “Se vão fazer algo com Meu amigo Dahmer, por exemplo, como sangue pingando, é um ‘Não’. Alguns tentaram, então eu disse que Não, Não, Não... mas na maior parte do tempo eles deixam em paz”.
Seu celular toca, ele diz que precisa ir. Apertamos as mãos e pergunto se já está trabalhando em algo. “Só em sobreviver a turnê de lançamento do livro”, responde. Kent State: Four Dead in Ohio tem lançamentos marcados para o início de abril na The Strand Bookstore e no The MOCCA Comics Fest em Nova York. Antes disso, em 17 de março, a Society of Illustrators inaugura em sua galeria novaiorquina uma mostra dos rascunhos, lápis e artes finais do álbum, que segue até 13 de junho. Ainda em abril acontecem diversos lançamentos em Ohio e, em maio, Derf Backderf passa pelo Canadá (Toronto Comics Arts Festival e Vancouver Comics Arts Festival) e pela Holanda (Stripdagen Haarlem Festival); em junho por Paris e Chicago; e em julho pela San Diego Comic Con.