Lucca Comics: cinco dias alucinantes
/por Marcos Maciel de Almeida
O festival Lucca Comics and Games (LCG) é considerado o maior evento dedicado a quadrinhos da Itália. Não é para menos. Todos os anos a cidade de Lucca, localizada na região da Toscana, atrai cerca de 250 mil visitantes (quase o triplo da população local) ávidos para conhecer e consumir fumetti, games, RPG, bonecos, fantasias e itens correlatos. Os cosplayers também são uma atração à parte. É praticamente impossível não esbarrar com pessoas uniformizadas com roupas caras, desconfortáveis, criativas ou simplesmente ridículas.
O tema desse ano era “Becoming Human”. Segundo Mario Pardini, presidente da Lucca Crea Srl e organizador do evento, a ideia era “redescobrir nossa própria humanidade e tirar um pouco os olhos do computador e do celular, para encarar o rosto das pessoas que estão perto da gente.” Num festival que – infelizmente – ficará marcado pelas imagens de um solitário senhor discutindo com jovens fantasiados de nazistas, as palavras de Pardini calaram fundo e serviram de alerta para os perigos que a apatia de nossa sociedade atual está ensejando.
Todos os anos, a LCG oferece uma infinidade de opções para os fãs de cultura pop. A edição de 2019 não foi diferente. Contei uma média de 40 atrações diárias – considerando aquelas voltadas especificamente para o público de HQs – para cada um dos cinco dias. Tinha de tudo: palestras, exposições, mesas-redondas, debates, entrevistas, sessões de autógrafos, editoras procurando novos talentos e etc. Bem, não vou fazer uma lista exaustiva de tudo que rolou, porque isso pode ser facilmente acessado em https://www.luccacomicsandgames.com/it/2019/comics/programma/. Diante de tantas opções, difícil foi encontrar tempo para cumprir uma agenda minimamente satisfatória. Vou tentar descrever minha experiência nas linhas abaixo. Já adianto que não ficarei muito longe do universo dos quadrinhos. Sorry, gamers.
Lucca é uma espécie de oásis para fãs do gênero. A cidade é totalmente cercada por muros, que são uma atração por si só. A estrutura de proteção confere à comuna (município) uma aura simultaneamente acolhedora e claustrofóbica. A alta fachada das casas aliada à densa ocupação habitacional lança sombras constantes sobre os pedestres que atravessam as ruas – na realidade becos – que cortam a cidade. Espaços abertos são miragens a serem degustadas por aqueles ansiosos pelo “fugere urbem”. Nesses locais são colocados pavilhões de editoras, pequenas comic shops e mega empresas que querem associar sua marca ao festival.
Talvez a grande atração do evento seja ele próprio. A disposição dos pavilhões, que se espalham pela parte murada, enseja uma espécie de “caça ao tesouro” pelas ruas da cidade. É como voltar à infância e sair percorrendo ruas desconhecidas em busca do Santo Graal, ou seja, o gibi que falta na nossa coleção. É um festival grande e bem organizado, que envolve toda a comuna. Os próprios muros da cidade abrigam inúmeras atrações, como exposições de veículos de guerra, concursos de cosplay, atividades para crianças e demonstrações de artes marciais. Os cinemas, por exemplo, durante o dia exibem pré-estreias e documentários de interesse dos fãs de quadrinhos. Até mesmo as igrejas servem de espaços para palestras.
A impressão que se tem é que a cidade vestiu a camisa do evento, claro que não movida por simples altruísmo, mas – óbvio – motivações financeiras. A chegada dos hunos, digo turistas, significa maior circulação de substanciais aportes financeiros para a região e vizinhança. E essa vontade de participar de alguma forma de evento atrai boa parte dos comerciantes da cidade, desde a padaria chic descolada até a casa de bolos da nonna Francesca. Os resultados são, em algumas ocasiões, elegantes e, em outras, desastrosos, como podemos ver nas imagens a seguir:
É claro que a convenção não é nenhuma unanimidade. Percebi que grande parte dos habitantes locais havia evaporado da cidade, talvez para buscar paragens mais tranquilas. É um motivo plenamente justificável, afinal Lucca vira de cabeça para baixo. São hordas e mais hordas de bárbaros transitando pelas ruas da cidade. Não é todo mundo que tem paciência para encarar efeitos como trânsito engarrafado, aumento da poluição visual e lotação dos estabelecimentos comerciais. Aqueles que permanecem, entretanto, parecem simpatizar com o evento. Pude ver isso ao perceber o sorriso de satisfação da balconista fantasiada de batgirl na sorveteria e as garçonetes cantalorando a música preferida de seu anime que – imagino – o patrão só permita colocar no sistema de som do restaurante uma vez por ano.
Atrações Prioritárias
Diante da impossibilidade de conferir todas as atrações do evento, optei pelas que considerava prioritárias. Entretanto as coisas não eram tão simples quanto pareciam e havia surpresas prontas para derrubar qualquer planejamento. Uma delas era o fato de que as editoras haviam levado suas grandes estrelas para sessões de autógrafo e muitos dos nomes não constavam na programação. Aí era aquela coisa: eu parecia uma bolinha de pinball batendo de lado em lado: esbarrava com (Tanino) Liberatore, virava as costas e topava com o Jason (de Shhhhh), apenas para dar meia volta e ficar cara a cara com (José) Muñoz. Recuperado desse momento de estupor, tentei voltar a programação original e reservar um tempo maior para tentar conversar com alguns dos quadrinistas presentes. E havia muitos, de renome internacional: Chris Claremont, Erik Larsen, John Bolton, Jim Starlin, além do veteraníssimo Don Rosa. E sim, havia brasileiros: os onipresentes gêmeos Bá e Moon também estavam lá ralando o côco para atender aos incontáveis pedidos de sketches e autógrafos do público italiano.
Ausência sentida foi a de nomes ligados à BD franco-belga. Não saberia explicar bem o motivo. Embora os italianos não sejam muito chegados dos franceses e possa existir certa rivalidade entre Lucca e Angoulême pelo título de maior convenção do gênero na Europa, o fato é que a participação de quadrinistas das pátrias de Spirou e Tim Tim foi bastante tímida. Tirando o Jordi Lafebre, não lembro de ter visto muitos outros por lá. A falta de stands de gigantes como Humanoides Associés e Glénat já era esperada, afinal o italiano não se interessa muito pela língua gaulesa. Mas mesmo quem queria comprar obras dessas editoras traduzidas para o italiano precisou suar a camisa.
Falando em compras, a vida é feita de escolhas e eu poderia ter voltado de lá com uma série de gibis assinados por novos mestres da HQ italiana como Manuele Fior, Barbara Baldi, Squaz e Andrea Serio. Mas pensei bem e decidi ater-me ao objetivo prioritário para o evento: finalizar a coleção italiana original de Ken Parker de 1977. Essa foi a alternativa escolhida por motivos muito justos: espaço limitado na mala e restrições de caráter orçamentário.
Após o inevitável preju no bolso, resolvi dedicar-me às atrações que já estavam incluídas no pacote. Mergulhei em diversas mesas-redondas com artistas de diversas nacionalidades e vertentes. Os nomes desses debates, na verdade, não eram muito interessantes e serviam apenas como gatilho para inspirar os autores a falarem, como sói acontecer. Numa delas, por exemplo, misturaram Chris Claremont e Jesse Jacobs para falar sobre “Criatividade e modelos do passado: qual é o equilíbrio?”. Em outra, intitulada “Masters of Erotica” colocaram (Paolo) Serpieri e Emanuele Taglietti para discutir - adivinha? – erotismo e pornografia nos quadrinhos.
Um dos grandes méritos do festival é tentar – e conseguir – agradar vários gostos e públicos. Aspirantes à carreira quadrinística, por exemplo, se esbaldaram com palestras sobre como se lançar no mercado internacional, proferidas por gente do calibre de Marco M. Lupoi, Diretor Editorial da Panini Itália. Como se poderia imaginar, o grande problema é conseguir dar conta do recado e assistir a tudo que se pretende, tendo de fazer escolhas dramáticas entre ver a palestra do simpático Jim Starlin ou da rising star Emil Ferris. Oh dúvida cruel.
Outros locais de interesse eram os cinemas, com ingressos liberados para o pessoal que havia comprado o ingresso do festival. Foi possível ver, por exemplo: pré-estreias de películas como o novo Exterminador (cara, que filme ruim!), uma produção apresentada por Lorenzo Mattotti (La famosa invasione degli orsi in Sicilia); a versão estendida de O Iluminado, este para promover o lançamento de sua continuação Doctor Sleep; além de um documentário muito bacana chamado Cercando Valentina – Il mondo di Guido Crepax, de 2019. Mas é claro que também tem as roubadas. Acabei esperando na fila errada, durante uma hora, para uma palestra que na verdade era com o Hirohiko Araki, de Jojo´s Bizarre Adventure. Em meio a fãs histéricos, tive que aguentar chuva e uma cambada de adolescentes fumando do meu lado. Vida dura.
É claro que estou reclamando de barriga cheia. Ter participado do festival foi realizar um sonho antigo e trazer na bagagem uma experiência única. Se estiver se programando para dar um pulo na edição de 2020, dê um toque. Pode ser que a gente se esbarre por lá.