O Ditador Frankenstein e Outras Histórias de Terror, Tortura e Milicos: Apresentação

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É com orgulho que a RAIO LASER publica a apresentação, feita por nosso escriba Márcio Jr. e editor da MMarte, da coletânea de Julio Shimamoto a ser lançada na CCXP 2019. (CIM)

por Márcio Jr.

I

São Paulo, 1969. Àquela altura, Julio Yoshinobu Shimamoto já era um destacado diretor de arte em publicidade – profissão que sempre pagou melhor que as histórias em quadrinhos. O Brasil, por sua vez, enfrentava o período mais sombrio da ditadura militar, desde que o Ato Institucional nº 5 fora promulgado em 13 de dezembro do ano anterior pelo Marechal Costa e Silva, então presidente da República. Uma República nada republicana, diga-se de passagem.

Shima. Foto por Márcia Yumi.

Shima. Foto por Márcia Yumi.

Ao final de uma manhã qualquer, próximo ao horário de almoço, Shima deixava o escritório da Standard Propaganda quando foi informado que dois senhores o aguardavam. Mal sabia ele que seu compromisso de dirigir as fotos para uma campanha publicitária da Gelatina Jell-O seria indefinidamente adiado. De forma nada amistosa os homens se identificaram como agentes federais. E atiraram o artista num camburão.

O trajeto se mostrou sinuoso e ameaçador, mas o destino final seria ainda pior: a sede da Operação Bandeirante (Oban), órgão repressor bancado por empresas brasileiras e multinacionais, cujo objetivo era localizar e capturar militantes considerados subversivos. Um centro paramilitar de tortura que teve no Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra seu mais notório integrante. A questão agora era descobrir que ato terrorista havia cometido para ser jogado naquela minúscula e imunda cela de dois metros de comprimento por um de largura.

O “crime” de Shima logo veio à luz. Ele havia participado de uma vaquinha para ajudar o amigo e colega de profissão Carlos Henrique Knapp, publicitário exilado pela ditadura, que passava dificuldades na Alemanha. Para o regime autoritário, razão mais que suficiente para manter o pacato caipira – como Shima gosta de se definir – por cerca de duas semanas na Oban, sendo posteriormente transferido para o DOPS, onde ficou mais alguns dias.

O período trancafiado na Oban foi duro e sem contato algum com família, amigos ou advogados. Para todos os efeitos, Shimamoto havia desaparecido. O cubículo em que estava detido era sujo, áspero, sem luz e com piso de concreto em péssimas condições. Uma torneira amarrada com barbante não oferecia mais que parcas gotas de água, num triste arremedo do que seria higiene pessoal. O banheiro era um buraco no fundo da cela. Tudo para dobrar a moral dos prisioneiros. De noite, o vento frio atravessava as grades e congelava os ossos de Shima, estirado no chão e protegido por míseras folhas de jornal. Ao menos não fora torturado. Ou quase.

O redator publicitário Marcius Cortez, que dividiu parte da clausura com Shimamoto, dá detalhes de uma noite na Oban em seu livro O Golpe na Alma (2008): “(...) a noite mais longa que já vivi. Uma noite ocupada, das dez horas até os primeiros clarões do dia pelos mais terríveis gritos de dor que um ser humano pode presenciar. Esses gritos vinham do primeiro andar e, evidentemente, que os policiais não trancavam a porta para assim também nos torturar (...)”. O relato de Cortez é exasperante.

Após a detenção no DOPS, Shima foi libertado. Mesmo sem sofrer tortura física, foi impossível escapar incólume de tamanha violência e covardia. Nos meses seguintes, adquiriu uma espécie de síndrome de perseguição. “Em todos os lugares que ia, me sentia vigiado. Fui ficando paranoico”, revela o quadrinista. Na primeira oportunidade surgida, trocou São Paulo pelo Rio de Janeiro, onde vive até hoje.

 

II

Os quadrinhos autorais brasileiros vivem uma aguda contradição: se por um lado atravessam um glorioso momento de maturidade artística e sofisticação editorial, por outro, gozam de um público consideravelmente reduzido. Ao migrarem das bancas para as livrarias e gibiterias – com edições baratas e semi-descartáveis transmutando-se em luxuosas publicações – perderam seu caráter de mass media. Qualquer título que ultrapasse a marca de dois mil exemplares vendidos pode ser considerado um blockbuster da área. Nem sempre foi assim.

Pode parecer estranho, mas os quadrinhos no Brasil já foram populares. Mesmo aqueles produzidos aqui, por artistas nacionais. É importante assinalar que o mercado de HQs sempre foi uma arena cruelmente injusta para os quadrinistas locais. Grosso modo, as grandes editoras preferiam republicar material enlatado a criar um mercado para os autores do país. Lucro fácil é palavra de ordem. E colônia é colônia.

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Mesmo diante de todas estas dificuldades, o quadrinho brasileiro resistia nas bancas, alcançando um público leitor na casa das dezenas de milhares – algo muito distinto da elitização dos dias atuais. E, entre as décadas de 1950 e 1990, o gênero terror cumpriu um papel de destaque neste panorama. Em seu livro História e Crítica dos Quadrinhos Brasileiros (1990), o saudoso pesquisador Moacy Cirne atesta: “(...) o material americano, depois de 1954, começa a rarear devido a problemas internos (o macarthismo e os relatórios de pedagogos contra a violência nos comics). Abriu-se, então, um espaço para o quadrinhista brasileiro explorar o gênero, consumido em larga escala por nossos leitores.”

Em um ciclo que durou aproximadamente quatro décadas, mestres como Jayme Cortez, Flavio Colin, Nico Rosso, Mozart Couto e Watson Portela deixaram marcas indeléveis na HQ brasileira. Nesta constelação, Julio Shimamoto é uma das estrelas de maior brilho e, certamente, a mais longeva. Aos 80 anos de idade, Shima segue em franca produção, tendo participado de todos os períodos do quadrinho nacional desde sua estreia, ainda na década de 1950.

Se num primeiro momento o quadrinho de terror aqui produzido se restringia a emular a matriz norte-americana, logo estaria prenhe de uma incontornável brasilidade. Gradativamente, as páginas seriam tomadas por sertanejos e cangaceiros, crendices do interior e a violência dos grandes centros urbanos, religiosidade popular e rituais afro-brasileiros. Tudo temperado com o erotismo típico de um país tropical. É óbvio que os desmandos do regime ditatorial iniciado no fatídico ano de 1964 não passaria incólume pelas tintas de nossos quadrinistas.  

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Além da contradição citada anteriormente, o quadrinho brasileiro contemporâneo vive um melancólico cisma: ele praticamente desconhece seu riquíssimo passado popular. São várias as causas para este lamentável estado de coisas, mas uma delas diz respeito à própria natureza deste “quadrinho de banca”.

Ao contrário das longas narrativas que dominam a produção atual, o usual eram HQs curtas, compiladas em gibis em preto e branco – o que barateava os custos de impressão. As revistas iam para os jornaleiros e ficavam disponíveis pelo tempo médio de um mês. Depois de recolhidas, fim de papo. O melhor que poderia acontecer seria um retorno em pacotes promocionais. Mas não raras são as histórias de incineração de encalhes. Histórias em quadrinhos eram compreendidas como um produto descartável. A ideia de HQs e autores permanecerem em catálogo só passou a existir recentemente, quando as livrarias se tornaram seu novo lar. O resultado é que o acesso a essa vasta produção – que atravessou todo o século XX – é bastante complexo. Edições de época são disputadas a tapa entre colecionadores. O trabalho de sites clandestinos que digitalizam edições antigas tem sido de grande ajuda para os pesquisadores, ainda que pareçam despertar pouquíssimo interesse em novos leitores.

A peculiar condição do mercado de banca implicava uma outra acepção do próprio conceito de autoralidade. Se hoje é comum os autores disporem de centenas de páginas para criarem longas histórias pautadas por seus próprios interesses (e com pouca interferência editorial), antes os quadrinistas deveriam seguir as diretrizes das revistas onde seriam publicados. A ideia de autopublicação era carta fora do baralho. Ou se trabalhava para uma editora, ou nada. Daí as providenciais fugas para o mercado publicitário. Logo, a autoralidade naqueles tempos era um fenômeno que emergia de uma produção que se pretendia industrial. E, neste panorama, Julio Shimamoto é um autor de rara expressão.

 

III

Brasil, 2019. Como em um pesadelo de filme de horror, fantasmas e esqueletos da ditadura militar brasileira saem de armários e covas para nos assombrar. A extrema-direita assume o poder numa eleição questionável, para dizer o mínimo. A censura volta a grassar nas artes e educação. O ataque às conquistas democráticas é tão constante quanto a inadmissível glorificação da violência como método. Um novo AI-5 é clamado, sem a menor cerimônia, por membros do governo. O fascismo exibe suas presas e nos intoxica com seu hálito pútrido.

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2019 também é o ano em que Julio Yoshinobu Shimamoto, o mestre Shima, completa oito décadas de vida – seis delas dedicadas a excelentes serviços prestados ao quadrinho nacional. Toda comemoração é pequena diante de sua importância para o meio. Mais que isso, Shima parece ser, sozinho, a ponte entre o passado e o presente da HQ brasileira. A graphic novel Cidade de Sangue – lançada ano passado e inteiramente desenhada com maçarico e ferro de solda sobre papel de fax – não deixa margem para dúvida. Aos 80, o quadrinista esbanja vigor.

O Ditador Frankenstein e Outras Histórias de Terror, Tortura e Milicos é uma antologia que reúne12 HQs desenhadas por Shimamoto – 11 delas produzidas entre 1978 e 1982, ou seja, em pleno regime militar. Não deixa de impressionar, portanto, a coragem dos autores e editores em desafiar o autoritarismo então vigente, cutucando a onça com vara curta. Todas as HQs se enquadram no gênero terror, mas têm como tema a violência de Estados autoritários, o sadismo de torturadores, a censura e um inabalável anseio por liberdade. Tal e qual o incensado longa Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, aqui o fantástico atende à sua mais nobre função: discutir o real.

“O Ditador Frankenstein” – HQ que abre e dá nome a este livro – é uma delirante epopeia revolucionária escrita por um dos mais notáveis roteiristas do quadrinho brasileiro, o premiado autor literário Luiz Antonio Aguiar. Ao longo de 56 páginas, a bizarra trama oferece campo fértil para que Shima lance mão de seu agressivo uso de pena e pincel, equacionando de forma soberba as massas de luz e sombra em cada prancha. Seu storytelling claro e preciso nos conduz fluidamente pela narrativa, pontuada por páginas de design impactante. Aquela em que decupa o assassinato da guerrilheira Natália merece lugar especial no panteão das mais potentes e poéticas já produzidas. No Brasil e no mundo.

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Shimamoto é, antes de tudo, um expressionista. Apesar do domínio absoluto de anatomia e perspectiva, dobra as formas para extrair delas sua máxima dramaticidade. Closes, supercloses e enquadramentos inusitados amplificam exponencialmente a tensão, eletrizam as cenas. É o artista do movimento frenético, da ação explosiva. Tudo vibra numa página de Shima.

Tal e qual “O Ditador Frankenstein”, “Esquadrão dos Mortos!” e “Atentados” exibem toda a perícia quadrinística de Shimamoto. Escritas por Basílio de Almeida – pseudônimo utilizado pelo renomado cartunista Luscar –, as HQs são protagonizadas pelo jornalista alcóolatra Jonas Beltron. À margem de suas desventuras, uma sutil denúncia da censura do período: o repórter nunca conseguia publicar fidedignamente suas melhores matérias por serem consideradas “fantásticas demais”. São também da lavra de Luscar o flerte com a ficção científica “A Revolução dos Insetos!” – onde o sempre experimental Shima produz etéreos meios-tons diluindo nanquim em água sanitária – e “No Centro da Cidade!”, HQ breve que articula zumbis e grupos de extermínio em várias camadas de leitura.

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O Brasil inteiro conhece o humorista Reinaldo Figueiredo como o presidente Itamar Franco do programa Casseta & Planeta. A par desta gigantesca popularidade, Reinaldo é um dos grandes cartunistas do país, tendo começado sua carreira no seminal tabloide O Pasquim, onde a satírica “A Maldição do AI-5” foi originalmente publicada. Com colaboração do também cartunista Nani no roteiro, a HQ exibe um Shimamoto mais detalhista que o de costume, emulando os quadrinhos norte-americanos aqui editados pela revista Kripta.

A bem da verdade, “A Maldição do AI-5” não foi publicada no Pasquim propriamente dito, mas sim no Pingente – suplemento que vinha encartado no jornal. O Pingente, a propósito, teve seu cancelamento decretado graças a uma charge de Shima (a partir de uma ideia de Nani) intitulada “A Fuga”. No desenho, José, Maria e Jesus – retratados como porcos – fogem do Egito, em clara alusão à crise no mercado frigorífico causada pela Peste Suína Africana. Foi o bastante para deflagrar a ira do jurista e líder da direita católica, Sobral Pinto. A Codecri, editora responsável pelo Pingente, resolveu não peitar a parada e o suplemento foi pro ralo.

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A clássica história sobre vingança vinda do além é o mote de “Sessão de Tortura”, único roteiro feminino presente na antologia, cortesia da escritora Maria Emília Kubrusly. O destaque aqui fica para o clima gore e a dor palpável dos torturados.

A estrutura de produção que dividia roteiro e arte no trabalho de dois profissionais distintos era a tônica dos ditos gibis de banca. Todavia, não era excepcional um mesmo artista acumular as duas funções. Shimamoto foi pródigo também neste modelo, como comprova “A Moça do Cemitério”, um improvável conto político-erótico-espírita, única HQ da editora paranaense Grafipar compilada neste volume. A maioria das histórias aqui selecionadas foram publicadas pela carioca Vecchi, graças ao heroico trabalho editorial de Otacílio d’Assunção Barros, o lendário Ota. Para se ter uma dimensão do volume de trabalho, naqueles idos a Vecchi publicava mensalmente mais de quatrocentas páginas de quadrinhos nacionais. Uma marca impressionante.

Muito em virtude da popularidade alcançada pelos filmes de terror da produtora britânica Hammer Films, nos anos 1970 a Marvel começou a lançar diversos títulos estrelados por monstros clássicos, como Drácula, Frankenstein e Lobisomem. Devido às baixas vendagens, o gibi da Múmia logo foi cancelado. No Brasil, contudo, o título era um sucesso, o que levou a Bloch Editores a continuá-lo com produção inteiramente nacional. Julio Shimamoto foi o desenhista escalado para a missão, dando vida aos roteiros do mítico Rubens Francisco Lucchetti, entre outros.

Como quadrinista, uma das características mais emblemáticas de Shima é se apropriar dos roteiros que recebe, acrescentando-lhes sua própria voz. Com a Múmia de Kharis não foi diferente. Descendente de samurais, Shima impingiu ao personagem uma pitoresca maestria em artes marciais. Sua Múmia lutava karatê, kung fu e o que mais fosse necessário, transformando o título num saboroso quadrinho infanto-juvenil, situado na fronteira entre o terror e a aventura.

Com os prazos estourando e sem um novo roteiro em mãos, Shima assumiu a tarefa de escrever as duas HQs aqui reunidas. Na primeira delas, um retumbante quebra-pau entre a Múmia e o monstro de Frankenstein. Como resultado, Kharis vai parar no Polo Norte, onde enfrenta o diabólico General Zumbi em “A Múmia Ataca os Zumbis do Pântano Perdido”. Os gibis da Bloch eram impressos em efusivas cores planas. Daí o meio-tom que as HQs apresentam em nossa edição, a pedido do próprio Shimamoto.

Completam a antologia duas HQs que, ironicamente, podemos considerar gêmeas. “O Gêmeo” foi originalmente publicada pela editora Outubro, em 1960. Os paralelos com a Revolução Cubana são evidentes. Sob o título de “O Monstro e o Gêmeo” a história ganha vida nova 19 anos depois, agora pela Vecchi. Trabalhando sobre fotocópias do original, Shima atualiza texto, letreiramento e sua própria arte, adicionando traços e sombras. Comparar as duas versões é um verdadeiro deleite quadrinístico.

 

IV

O Ditador Frankenstein e Outras Histórias de Terror, Tortura e Milicos é uma edição necessária. Triplamente necessária.

Primeiro, porque celebra os 80 anos de vida de um dos maiores patrimônios das histórias em quadrinhos brasileiras, Julio Shimamoto. Aqui, em um pequeno recorte, ficam evidentes seu talento e genialidade irrefreáveis, bem como as marcas de uma trajetória dedicada, de corpo e alma, a uma arte que sempre foi marginal.

A importância do livro se faz presente também ao lançar luz sobre a tradição do quadrinho popular brasileiro, abrindo possibilidades de diálogo com a produção contemporânea.

Mas acima de tudo está o estridente alerta contido nesta antologia. Doze HQs que deveriam ser registro e lembrança de um período historicamente superado se mostram, infelizmente, mais atuais que nunca. Que os monstros a nos assombrar retornem para suas fétidas criptas e de lá jamais se levantem. E que o terror exista tão somente nas páginas das boas histórias em quadrinhos.

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