Coringa: quatro observações impopulares

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por Ciro I. Marcondes

Isso era originalmente um post de Facebook com pouca ambição. Algumas pessoas me insistiram que eu eternizasse essas palavras na Raio Laser (ironic mode on). Dei uma recauchutada nas apressadas palavras originais a acrescentei mais um ponto (o terceiro), talvez o mais importante. (CIM)

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1) Uma imitação maneirista da estilística de um Scorsese dos anos 70 que beira a ação de um copy cat obsessivo, claramente numa crise identitária por não conseguir desenvolver uma dicção própria. Como se fosse uma ideia fundada naquele sonho de todo adolescente que começa a descobrir o mundo de bom cinema justamente com esse diretor: "ah, se o Scorsese fizesse um filme do Batman, seria muito foda". Infelizmente, esses adolescentes nunca saíram desse estágio, nunca perceberam o quão ridícula é essa ideia, e se tornaram público pra que essa aberração fosse criada.

Às vezes o filme denuncia sua própria farsa

Às vezes o filme denuncia sua própria farsa

2) E é isso mesmo: o maneirismo do filme - com seu tão visível desequilíbrio na organização das cenas, que não chegam a formar organicidade ou ideias completas -, apenas um macaqueamento de uma estética deslocada no tempo e no espaço, não permite que reconheçamos traço autoral ou artístico. Apenas o que se antevê é uma intenção de pertencimento a um clube seleto (de esportes por exemplo), cumprindo todos os rituais de iniciação e burocracia, porém sem as credenciais centrais da questão: preparo, originalidade, força expressiva orgânica. Fiquei chocado com o quanto esse filme parece feito por algoritmos programados para um palíndromo entre "art house" e "oscarizável", com uma pitada de horror porque, como sabemos, o horror está na moda. Mas o mais chocante é que ele não foi de fato feito por algoritmos, mas por pessoas que hoje já acham mais conveniente se comportarem como algoritmos. É o mau gosto (estético, político, cinematográfico) que emerge em todo ambiente (Veneza, Oscar, o que for) com toda cara de pau e sem-vergonhice, cínico, sabendo ser mau gosto e se comportando como tal, sem medo de alguém denunciar "o rei está nu", porque, afinal, o filme pode simplesmente responder "está mesmo, e foda-se". Lembrou o aspecto "cagando e andando" do discurso do Bolsonaro na ONU. Um mau filme – grosseiro, confuso, dissimulado – que insiste mil vezes ser uma obra profunda e relevante, com requintes de produção e uma atuação centrípeta, fazendo todos acreditarem em sua claramente artificial artisticidade. É o mentiroso que mentiu para si mesmo, como dizia Guy Débord. Espécie de versão 4.0 da Sociedade do Espetáculo.

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3) Para mim, o Coringa sempre foi não um símbolo, mas apenas um signo cru, semioticamente falando. Não se limita a uma substituição discreta de referentes na realidade, mas sim funciona (exatamente de acordo com o baralho de jogo) como uma carta de valência ilimitada – pode ser trocada por qualquer outra – que empurra as histórias do Batman para potencialidades explosivas, imprevisíveis: contra uma narrativa de formação, contra uma racionalidade psicológica, contra um naturalismo que esteriliza estas múltiplas possibilidades do personagem. Gosto muito da abordagem da Era de Ouro (Kane/Finger), sombria o suficiente, associado à demência, às drogas, ao crime não como prática de subversão “política”, mas como subversão da própria ordem mais mecânica de realidade em si. Não há origem social que se justifique por maus tratos e psicopatologia inventada, não há atuação deformativa que sobreponha essas camadas de mau gosto grosseiramente vomitadas pro histórico do personagem como se ele pudesse ser apenas um pobre diabo cuja merda do mundo lhe cai diretamente nos miolos. Não há origem possível para o Coringa (não por acaso, detesto A piada mortal que deve ser o gibi mais fraco de Alan Moore) – ele deveria ser um signo livre que flutua numa semiose de demência surrealista, de violência performática, de devaneios possíveis dentro do jogo de arquétipos que está instalado na “mitologia” que se criou ao redor do Batman. Não há Arthur Fleck. O filme acaba sendo sintoma de uma sociedade que não consegue mais deixar de narrativizar tudo, de se deixar levar por um pensamento cronológico, sintático, histórico. A carta do Coringa pode ser tudo no mundo, exceto Arthur Fleck. Por isso, defendo ativamente o personagem vivido por Heath Ledger: ali há somente o Coringa. Em Coringa, há apenas um carinha chamado Arthur Fleck. Apenas para fechar este ponto, deixo um trecho do clássico Jung e o Tarô, de Sallie Nichols, onde ela discorre com propriedade sobre o Louco/Coringa: “Às vezes, quando perdemos uma carta, pedimos ao Coringa que a substitua, função que se adapta muito bem à sua coloração variegada e ao seu amor de arremedo. Na maior parte do tempo, entretanto, ele não serve a nenhum propósito manifesto. Talvez o conservemos no baralho como uma espécie de mascote, como as cortes de antanho conservavam o seu bobo. Na Grécia, acreditava-se que o fato de ter o bobo em casa afastava o mau-olhado. A retenção do Coringa em nosso baralho servirá, porventura, a uma função similar, de vez que as cartas de jogar, segundo se afirma, são “as figuras do diabo.” Ou seja: mantemos o Coringa no imaginário para podermos descartá-lo como vil/inútil. Instrumentalizá-lo pode ser a maior das covardias.

“Contra tudo isso que está aí”: deu no que deu

“Contra tudo isso que está aí”: deu no que deu

4) Ah, sim, há ainda uma "mensagem política". Na verdade, um atirar pra todos os lados, completa cacofonia de ideias, que fazem os filmes do Nolan parecerem ter nascido no próprio seio do Iluminismo. Tem elementos: um certo anarquismo (ou, melhor dizendo, "anarco-capitalismo", tão atual, pra ser mais preciso), "contra tudo isso que está aí" (mirando sistema financeiro, mas claramente fortalecendo-o , tal qual um ouroboros, no arremedo de "síntese final" do discurso do filme); um aceno para a noção de que a psicopatia é inevitável e até desejável, diante de um mundo com circunstâncias tão cruéis; além de uma óbvia mensagem que sinaliza que, caso essas coisas estejam mesmo erradas, a solução é apelar para o fascismo (aka a ascensão de Batman). Pra qualquer lado que se olhe, é uma tragédia ética. A ausência de discurso é o mais perigoso dos discursos.

Aliás, considero também uma tragédia que a ideia dos super-heróis tenha chegado no paroxismo que é Coringa. Pra mim, entender o que ele significa pra indústria cinematográfica atual e para o nosso próprio imaginário contemporâneo, é o que separa homens de meninos.

A ideia de um "elseworlds" onde o Batman é o vilão e o Coringa o herói não é ruim não, mas não foi desta vez.