Por
Ciro I. Marcondes
1: Sobre o Herói grego, os Super-Heróis e o atirador do Colorado
|
Herói grego por Pichard |
O herói na antiguidade clássica era uma figura
legitimamente criada pelo imaginário popular. Sua função, enquanto criação
coletiva de um mundo pré-científico (ou melhor dizendo, pré-logosófico), em que
religião, arte, filosofia e ciência se misturavam, era a de tornar cognoscível
um sistema ético, metafísico, político, estético e religioso para o povo.
Figuras como Aquiles, Ulisses e Heitor não eram apenas “histórias” que serviam
para o povo se entreter, mas verdadeiras estruturas míticas de significação do
mundo. A partir da instituição da filosofia, especialmente socrática, estas
figuras vão assumindo caráter cada vez menos inspirador no sentido educacional,
e passam a ser tornar personagens de literatura. Vale lembrar as palavras de
Harold Innis: “Os poemas homéricos foram o trabalho de gerações de recitadores
e menestréis, refletindo as demandas de gerações de público para quem esses
poemas foram recitados”.
|
why so NOT serious? |
Quando comparamos os super-heróis
com os heróis gregos, como o faz, de um jeito mais ou menos irresponsável, Stan
Lee, há um erro e um acerto: o acerto é que o super-heróis também são, de algum
jeito, criações coletivas, moldadas num imaginário comum, que, através de
diferentes artistas e com intensa participação de um público, acabam assumindo
arquétipos sociais. O erro, entretanto, não pode ser desprezado. Os
super-heróis aparecem em uma época já hiper-midiatizada, em que as criações da
indústria claramente são modelos autorreferentes, cuja função quase exlcusiva é
retroalimentar as próprias estruturas e funções da indústria. Foi assim com os
quadrinhos, assim é com o cinema. Assim é com as adaptações de super-heróis
para o cinema. Os super-heróis foram criados especialmente como propaganda de
guerra, e sugiro expressamente que leiam o
artigo que escrevi a respeito. A
inspiração para suas atuações nas sociedades contemporâneas nada têm a ver com a inspiração que o herói antigo tinha para
os gregos. O super-herói nada inspira a não ser uma relação especular com sua
própria estrutura midiática e industrial, sendo o público uma parcela ativa e
participante deste jogo. Dentro destes
limites, eles podem gerar histórias incríveis, algumas intensamente
inteligentes, e é como produtos dentro deste universo hipermidiático do
pop
que devem ser pensados e apreciados. Fora isso, super-heróis são inverossímeis em sua mais crua natureza, e dar atenção demais a eles é dedicar muita energia a uma coisa escancaradamente alienante. Um culto extremado, que passe a colocá-los
como modelos para representações da vida real é um culto ao próprio dinheiro
que é o desdobramento inicial de todo seu processo constitutivo. Não podemos
esquecer as palavras do velho Milton Santos:
|
Picareta? |
O consumo é o grande emoliente,
produtor ou encorajador de imobilismos. Ele é, também, um veículo de
narcisismos, por meio de seus estímulos estéticos, morais, sociais; e aparece
como o grande fundamentalismo do nosso tempo, porque alcança e envolve toda
gente.
|
Why so GODDAMN serious? |
Eu sempre fui leitor e apreciador
de quadrinhos de super-heróis, mas entendo que eles servem para serem
consumidos, e não para que me inspirem coisa alguma. Na verdade, em termos de
“inspiração”, é mais comum que o tiro saia pela culatra. O caso do atirador do
Colorado é epistolar. Não podemos fechar os olhos e pensar que ele era apenas
“mais um maluco” e que o filme do Batman não teve nada a ver com isso. Sim, ele
era “mais um maluco”, mas um maluco que se dizia “ser o Coringa”, inspirado em
um filme em que o Coringa é retratado como um niilista cruel e psicopático que
quer “apenas ver o mundo queimar”. Certamente não foi a unica causa, e não tenho nada contra o filme, que é particularmente
bom, mesmo que eu ache que esse Coringa do Nolan não traduza a essência do que
o Coringa é para o Batman dos quadrinhos. A questão é: no mundo real, não
existe e nem pode existir nenhum Batman para nos salvar de psicopatas
niilistas. E, no mundo real, conforme o caso do Colorado bem demonstra,
psicopatas niilistas estão aí, à espreita, para atirar em todo mundo. Não
devemos nos encantar tanto com a cultura pop. Não vamos inverter esses valores.
Mendigos não se parecem com zumbis. Zumbis é que se parecem com mendigos.
Pensem nisso.
2: Sobre Bane e “A queda do
Morcego”
O bom desempenho do personagem
Bane em
O cavaleiro das trevas ressurge confirmou algo que eu já pensava
e desconfiava havia um bom tempo: o grande qualidade da saga
A queda do morcego (
Knightfall), tão execrada e questionada à sua época,
humilhada por seu suposto viés exclusivamente comercial, vinculado à estratégia
de “matar um personagem” para aumentar as vendas dos quadrinhos e depois
ressuscitá-lo. Isso me faz pensar no quanto fãs de quadrinhos às vezes gostam
de repetir bravatas e fixar pontos-de-vista por medo de encarar ideias novas ou
puro e simples chauvinismo.
Li
A queda do morcego no
meio de minha adolescência, nos anos 90, com assiduidade e veneração que acho
que nunca foi repetida em minha trajetória como fã de HQs. Esta não era apenas
uma pequena história de um novo vilão que simplesmente aparece do nada e
“quebra” o Batman. Esta era uma história de um personagem radicalmente novo,
intensamente natural ao universo de Batman, ousado, corajoso e obcecado, com
robusto mito de origem: Bane teria nascido e sido criado na pior prisão do
mundo, e perturbadoramente uma única ideia fixa o motivara a sair e argutamente
planejar uma longa ação de desmantelamento humano: matar o Batman. Porém, Bane
se prova um personagem de inteligência ferina e diferentemente psicopática, e
usa as próprias aporias de Batman para miná-lo psicologicamente, até que seu
aspecto físico também esmoreça, e a obsessão do vilão sobrepuje a obsessão do
herói.
Não é à toa que Bane seja o vilão
escolhido para finalizar a trilogia de Nolan, planejada para capturar um aura
mais hiper-realista de Batman, iniciada com as fabulosas novelas gráficas dos
anos 80. Bane – e valem os créditos para os tão frequentemente desacreditados
Chuck Dixon e Doug Moench – é a cristalização mais imediata deste
conceito, traduzido em sua incorporação
ao cânone do herói, quando nenhum personagem que não figurasse nos primeiros
anos de existência de Batman nos quadrinhos tivesse conseguido isso. Nolan
percebeu que a argúcia hiper-realista, monstruosa porém factível, primada pela
força obsessiva do vilão, seria a qualidade que ele buscava para finalizar a
trilogia com um personagem que ancorasse Batman ainda mais no chão. Dito isso,
vale pensar no quanto, às vezes, enquanto patrulhadores xiitas de nossos
personagens, deixamos passar grandes ideias, que ainda existem, e que escapam
diante dos nossos olhos, simplesmente pelo fato de acreditarmos que todas as
boas histórias já foram contadas.