GUARDIÕES DO SUL: NEOCOLONIALISMO, ETNOGêNESE E PORRADARIA
/por Marcão Maciel
A primeira vez que passei os olhos na capa de “Guardianes del Sur” chamou a atenção o grande número de personagens indígenas. Lembrei imediatamente de Novos X-men e seu elenco multiétnico, mas desta vez a equipe seria formada apenas por “Pássaros Trovejantes”. Não identifiquei naquele momento, mas algo na capa era bastante familiar e evocava o bom e velho comic book norte-americano. Tempos depois me veio à cabeça a capa clássica da Liga da Justiça Internacional # 1 nos traços de Kevin Maguire. Mesmo assim, restava algo ali que evocava uma sensação difícil de definir. Como podia um quadrinho made in Chile soar tão americano? Ou seria o contrário? A única certeza é que havia alguma coisa estranha no ar e que somente a leitura poderia trazer alguma resposta.
Para quem não sabe, um dos povos originários do Chile são os mapuche, responsáveis pela façanha de ser o único grupo indígena capaz de obter autonomia territorial frente ao império espanhol. Guardianes del Sur fala deste conflito e reúne uma superequipe formada pelos lendários heróis de carne e osso que botaram o colonizador para correr – ao menos temporariamente. Nomes como Lautaro, Caupolican, Galvarino e Janequeo simbolizam o espírito de luta e resistência de um povo que sacrificou três quartos de sua população nas campanhas de combate contra a máquina conquistadora do invasor europeu.
Mas não se sinta culpado se você nunca tinha ouvido falar nisso. Muitos fatos memoráveis da América Latina são praticamente desconhecidos para além das fronteiras dos povos envolvidos. Mas graças ao trabalho de pesquisa dos autores (Sebastián Castro e Guido Salinas) e de vários colaboradores do gibi, um pedaço desse passado começa a vir à tona para o grande público. Lembra quando você lia Lobo Solitário e consultava aquele glossário no final para descobrir um bando de palavras únicas e intraduzíveis? Da mesma forma, Guardianes del Sur possui deliciosas referências a uma cultura simultaneamente próxima e distante da nossa, ansiosa por ser conhecida. É um mergulho num oceano de informações de uma história que pertence a todos latino-americanos, mas que permanece praticamente ignorada na memória de povos que chamam uns aos outros de “hermanos”.
O surgimento do povo mapuche é um exemplo do que se convencionou chamar de etnogênese, ou seja, a emergência de nova identidade étnica para determinado grupo humano, por exemplo por meio do autorreconhecimento de uma diferenciação própria em relação a outros grupos. E a etnogênese mapuche ocorreu por meio da transição da etnia reche – grupo com distribuição pulverizada pelo território chileno e caracterizado pela presença de inúmeros centros de poder – para o povo mapuche, mais coeso e organizado sob uma unidade macrorregional. E qual foi o gatilho para essa mudança? Acertou quem disse: a guerra entre colonizadores e colonizados, que ajudou a formar uma identidade que tinha como fator de aglutinação a oposição à alteridade representada pelo huinca (forasteiro). Por mais paradoxal que pareça, o espírito de resistência dos indígenas ao enfrentar a sanha colonizatória trouxe a reboque a transformação de sua sociedade, atuando como forte vetor de aculturação.
Misturando elementos ficcionais e históricos, a HQ constrói uma narrativa pretensamente documental que desemboca nos momentos decisivos da Batalha de Tucapel (1553), em que os mapuches obtiveram importante vitória contra o Governador do Chile. Embora importante, este evento foi apenas um dos capítulos do longo processo anti-colonizatório chileno, que só chegou a seu desfecho na década de 1810, época do alvorecer da independência, tocado pelas mãos de figuras como José Miguel Carrera, Bernado O’Higgins e José de San Martin.
Calcada no formato comic norte-americano, Guardianes del Sur coleciona a série homônima fasciculada em 4 edições. A publicação conta no início dos capítulos a origem de cada personagem e uma aventura solo, que culminam num gran finale com a reunião do supergrupo. Com tons marcadamente maniqueístas, Guardianes peca por não explorar melhor as nuances do conflito contra a metrópole ibérica e por passar batido por fatos relevantes como a fagocitose - nem sempre pacífica - praticada pelos mapuches contra outros povos. Enfim, a divisão bem demarcada dos personagens em papéis de mocinhos e bandidos não deixa as coisas mais empolgantes. Mas esse não é o principal aspecto que chama a atenção no gibi, que segue uma fórmula bastante tradicional, quase receita de bolo.
É interessante notar que - numa publicação que se pretende como libelo pela liberdade, resistência e luta contra a opressão - ainda ressoe o neocolonialismo evidenciado pela recriação dos heróis chilenos a partir da estética do formato tradicional do comic norte-americano. Capas, cenas e diálogos clássicos do quadrinho made in USA são replicados à exaustão num modus operandi que vai além da simples homenagem. Mais eficiente talvez fosse criar uma história que replicasse o ideário superheroístico a partir de elementos genuinamente latino-americanos, seja por um desenho/colorização que fugisse ao status quo tradicional ou ainda pela busca de um estilo narrativo menos padronizado. Da maneira que foi feito, tem-se impressão que os autores simplesmente trocaram um colonizador por outro.
Tudo bem que todos temos nossos defeitos e lemos muito gibi de hominho a vida inteira, mas os autores não precisavam ficar esfregando isso na cara o tempo todo. A chuva de referências a personagens e cenas clássicas é torrencial e se torna repetitiva, quase estéril. O efeito teria sido mais eficaz se tivesse sido utilizado com parcimônia. Ao invés de estimular o surgimento de uma bem-vinda mítica própria, os super-heróis chilenos emulam suas contrapartes ianques, num desfile vazio de easter eggs feito sob medida para alegrar o nerd babão.
Parece tristemente irônico que a estória sobre a etnogênese mapuche tenha – em pleno século XXI – caído nos braços da tradicional fórmula superheroística ianque. Poxa vida. Como teria sido genial se os autores tivessem honrado a etnogênese mapuche e criado a história segundo critérios artísticos genuinamente nacionais, a partir da riquíssima mitologia mapuche. Tendo dito isto, estou ciente da minha posição relativamente cômoda de crítico e da máxima fatídica: “falar é mais fácil que fazer”.
Minha menção aos X-men no primeiro parágrafo não foi gratuita. Além das diversas referências diretas ao grupo, Guardianes del Sur se apresenta como um gibi ideologicamente similar ao fazer um aceno para a importância da diversidade e representatividade. E a fase de Chris Claremont é considerada uma vanguarda neste sentido, ao apresentar personagens de várias partes do mundo e aproximar a luta dos mutantes àquela de diversas minorias, como os negros, homossexuais e – claro – indígenas. Guardianes del Sur poderia ter aproveitado melhor esta reflexão, mas parece se sentir mais confortável em simplesmente lançar seus personagens em mais uma aventura recheada de pancadaria que em realmente debater a situação de vulnerabilidade e quase marginalidade da cultura mapuche no Chile contemporâneo. Pouca atenção também é dada ao papel das mulheres do grupo, relegadas à coadjuvância. Claremont, por sua vez, escreveu sobre mulheres fortes, que foram esmiuçadas por fora e por dentro (reparou que sempre tinha um vilão telepata maroto pronto para perscrutar os corações e mentes de nossas garotas?). Se bem que, verdade seja dita, os próprios X-men também tiveram vários problemas no quesito representatividade, como no caso nos traços faciais da Tempestade: finos e pouco realistas para uma mulher negra africana. Mas isso é outra história.
Apesar de tudo que disse, não quero deixar uma impressão totalmente negativa para quem nunca leu Guardianes. Minha análise se focou mais nas potencialidades não realizadas do gibi, sem avaliar o que ele efetivamente é. Tomado como um gibi de super-heróis, Guardianes está acima da média do que se encontra por aí. A narrativa é envolvente e o desenho desce redondo. Em suma, o saldo final não faz feio. Deixando de lado maiores reflexões filosóficas e a presença latente do puro DNA do comic norte-americano, a experiência de leitura é bastante satisfatória.
Atualmente a situação dos mapuche é bastante precária, já que perderam boa parte de suas terras originais e chafurdam num conflito fundiário bastante desigual. Expatriados em sua própria terra, são flagelos dos mapuche o racismo; a violência e a miséria. Expulsos de seu habitat natural, os mapuche foram obrigados a se tornar camponeses sem nenhum know-how para este fim. De forma similar ao pós-abolição da escravatura no Brasil, povoado por milhares de ex-escravizados sem condições técnicas mínimas de inserção no mercado de trabalho, a máquina de criação de pobres no Chile também atuou de forma eficiente, despejando no meio rural pessoas que – por falta de meios – se tornariam indigentes instantâneos.
Apesar dos problemas supra mencionados, Guardianes del Sur é uma leitura que vale a pena, especialmente para conhecer uma história dramática que também é nossa, mas para a qual nunca havíamos sido apresentados.
Referências:
BOCCARA, Guillaume. Etnogénesis mapuche: resistencia y restructuración entre los indígenas del centro-sur de Chile (siglos XVI–XVIII). Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/12303
MOLINA, Paula. Mapuches en Chile: 4 claves para entender el centenario conflicto que enfrenta al pueblo indígena y el Estado (¿y podría cambiar algo con una nueva Constitución?). Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-53673734