GAROTA EU VOU PRA CALIFÓRNIA - PARTE 1: CARTOON ART MUSEUM

por Bruno Porto

O Cartoon Art Museum começou a tomar forma em 1984, com editores e colecionadores usando seus acervos pessoais de artes originais e publicações para montar exposições em diversos locais de San Francisco. Três anos depois, uma doação do quadrinista Charles Schulz permitiu que o museu se estabelecesse em uma área da cidade rica em espaços culturais, como o Yerba Buena Gardens, o Museu de Arte Moderna de San Francisco e o Museu da Diáspora Africana, ocupando três endereços diferentes até 2015. Em 2017, o museu foi reaberto em seu endereço atual, próximo ao Fisherman’s Wharf, um tradicional destino turístico de San Francisco.

ENTRADAS DAS SEDES DO CARTOON ART MUSEUM EM 2010 E EM 2023.

Nestas quase três décadas de existência, o museu acumulou um acervo de mais de 6 mil artes originais de quadrinhos, charges e cartuns, além de uma coleção permanente de materiais de produção de desenhos animados da Disney, Warner Bros, Hanna-Barbera, Filmation e Nevlana Studios, entre outras. O acervo é, em sua imensa maioria, de origem estadunidense — com certa ênfase em tiras de jornais — e foi construído através de doações das coleções de quadrinistas como o próprio Charles Schulz (1922-2000), Jerry Robinson (1922-2011), Mort Walker (1923-2018), John Severin (1921-2012), Bil Keane (1922-2011), Morrie Turner (1923-2014) e Alex Anderson (1920-2010), entre outros, além de chargistas como Bill Crawford (1913-1982), Dick Wright (1944), Rob Rogers (1959) e Mike Luckovich (1960). Esse material já deu origem a cerca de 200 exposições, algumas itinerantes, e duas dezenas de publicações do próprio museu, que podem ser encontradas em sua lojinha ou na sala de leitura.

EXPOSIÇÃO COMEMORATIVA DOS 60 ANOS DO RECRUTA ZERO EM 2010.

Eu havia visitado o endereço anterior do museu em setembro de 2010, aproveitando uma participação no júri do Adobe Design Achievement Awards que acontecera na vizinha San Jose. Na ocasião, acontecia uma exposição comemorativa dos 60 anos do Recruta Zero (60 Years of Beetle Bailey: A Tribute to Mort Walker); uma segunda mostra que considerei um tanto superficial pela grande diversidade de trabalhos reunidos (Storytime! Graphic Novels for Kids of All Ages); e uma terceira que me deixou encantado por me apresentar ao trabalho da quadrinista, animadora e ativista Nina Paley: Before Sita Sang The Blues: Spotlight on Nina Paley.

QUADRINHOS, CARTUM E ANIMAÇÃO DE NINA PALEY EM 2010.

O título é uma referência ao (sensacional) primeiro longa-metragem em animação de Paley, que conquistara o Grand Prix desta categoria no Festival de Cinema de Animação de Annecy em 2008, somado a dezenas de outras premiações nos Estados Unidos, Canadá, Argentina, Egito, Rússia e vários países europeus. Além de desenhos, cenários e células de animação do filme — que traça um paralelo da vida da autora com o épico sânscrito Ramayana — estavam expostos justamente originais de tiras, ilustrações e cartuns da autora. Humor inteligente com as neuroses cotidianas, traço bastante simpático, mas o que mais me impressionou foi a postura em distribuir suas obras com licenças abertas — Copyleft — permitindo a alteração e reprodução por qualquer pessoa, desde que todas as versões modificadas e trabalhos derivados tenham seus direitos livres mantidos. A legenda de uma das tiras de Nina's Adventures, de Janeiro de 1994, é sensacional:

Essa tira, como todo o meu trabalho, é livre para ser copiado e reciclado em novos trabalhos. Apesar do símbolo © do qual eu costumava ser devota, essa imagem é agora CopyLeft (tecnicamente está sob uma licença Creative Commons Attributions Share-Alike, o que significa que você está livre para copiar, remixar, compartilhar e vender cópias desde que você assegure esta mesma liberdade. A única restrição neste trabalho é que não haja mais restrições). Eu os encorajo a fotografar essas imagens, desde que não usem flash, que pode danificar os originais.

Os originais não são a mesma coisa que as imagens. As imagens são gratuitas, copie o quanto você quiser. Os originais — esse papel e tinta e corretor branco que você vê à sua frente — são únicas, e suas moléculas não podem ser substituídas. Os originais ficam mais delicados com o tempo, e também ficam mais valiosos. Quanto mais pessoas virem cópias desses desenhos, por mais eu posso vender esses originais. Então, por favor, copie, copie, copie! (Mas sem flash).

Neste Ted xTalk Copyright is Brain Damage de 2015, ela justifica holisticamente sua decisão:

Aquele espaço expositivo da 655 Mission Street é bem diferente do atual, localizado no térreo de um prediozinho de tijolos na 781 Beach Street. As três longas galerias de paredes de cor neutra deram lugar ao que podemos chamar de dois grandes vãos abertos interligados, além de uma sala anexa, que, quando da minha visita em Agosto passado, abrigavam sete (!) mostras de micro, pequeno e médio porte.

EDWARD GOREY E MEGGIE RAM (FOTO DO CARTOON ART MUSEUM).

As duas micro-exposições, cada uma ocupando trechos de uns três metros de parede, eram Edward Gorey Al Fresco, com cinco obras do ilustrador, escritor e animador estadunidense Edward St. John Gorey (1925-2000), e Emerging Artist Showcase: Meggie Ramm, com sete páginas do primeiro álbum em quadrinhos da personagem BatCat. Cada qual com seu pequeno texto contextualizando o que estava sendo mostrado, abertamente de forma introdutória.

RÉPLICAS DOS UNIFORMES E OBJETOS DOS FILMES DO BATMAN.

Cada uma das mostras de médio porte ocupavam uma sala inteira. The Batman Armory: Movie Costumes and Props from The Bronze Armory Studios, composta por réplicas de bat-objetos e dos trajes do Homem-Morcego usados em filmes por Michael Keaton, Val Kilmer, George Clooney, Christian Bale e Ben Affleck, estava na sala anexa próxima à entrada do museu, utilizada para eventos como lançamentos de livros e recepções.

A TREASURY OF ANIMATION: CARTELA DE TÍTULO DE TWIN TROUBLES, DO PEPE-LEGAL, E CENÁRIO DE A WITCH’S TANGLED HERE, DO PERNALONGA, AMBOS DE 1959.

A Treasury of Animation reunia um bem selecionado e diverso material de longas e curtas de animação — como rascunhos, desenhos, células, cenários, cartelas de título, partituras, manuais e fotografias — dos anos 1920 até o presente. Legendas e gráficos explicavam cada etapa do processo de animação, e um monitor exibia desenhos animados de diversas épocas e técnicas. Vale mencionar que o curador do museu desde 2005, Andrew Farago, é autor dos livros Batman: The Definitive History of The Dark Knight in Comics, Film, and Beyond; Totally Awesome: The Greatest Cartoons of the Eighties; e Teenage Mutant Ninja Turtles: The Ultimate Visual History, premiado com o Harvey Awards de 2015.

DESENHOS DE MURAKAMI WOLF SWENSON PARA AS TARTARUGAS NINJA (1990) E DE UB IWERKS PARA OSWALDO O COELHO SORTUDO (1929); DESENHO E CÉLULA DE ANIMAÇÃO DE 13 GHOSTS OF SCOOBY-DOO (1995).

As mostras que mais me interessaram, no entanto, eram as de pequeno porte. Duas delas, em sequência, estavam logo na entrada do museu, com originais do livro infantil Thor and Loki: Midgard Family Mayhem, do cartunista Jeffrey Brown (autor de Darth Vader e Filho e A Princesinha de Vader) e de revistas da Marvel. Esta última ocupava duas paredes do museu, num total de quinzes pranchas originais de páginas, capas, arte-finais de anúncios e provas de impressão diversas.

ORIGINAL DE JEFFREY BROWN PARA THOR AND LOKI: MIDGARD FAMILY MAYHEM (2023); PRANCHAS DAS CAPAS DE GUARDIÕES DA GALÁXIA (1990), COM ARTE DE JIM VALENTINO E MIKE ZECK, E DE DR. ESTRANHO (1989), COM ARTE DE JACKSON GUICE; PROVA DE COR DE MARVEL TALES (1989), COM ARTE DE TODD MCFARLANE.

A terceira, Fight with Art: Contemporary Comics from Ukraine, ocupava a sala central do museu, Reunindo reproduções de seis artistas gráficas ucranianas — Kateryna Kosheleva, Inga Levi, Tania Pryimych, Yulia Vus, Masha Vyshedska e Dartsya Zironka, nascidas entre 1986 e 1997 — a mostra foi organizada pelo coletivo artístico polonês FestivALT e pelo Muzeum Komiksu de Cracóvia, com curadoria de Artur Wabik, para marcar um ano da invasão russa na Ucrânia.

COM O CURADOR DO CARTOON ART MUSEUM, ANDREW FARAGO.

Andrew Farago me contou que foi contactado pelos organizadores sobre a possibilidade de expor os trabalhos no museu e que achou importante dar visibilidade não apenas ao trabalho das artistas — que ele, assim como eu, não conhecia e o impressionou muito — mas também com um leilão de obras que levantou fundos para entidades que vem auxiliando mulheres, crianças e animais no país. Você pode inclusive comprar o catálogo digital da mostra, com todos os trabalhos expostos, bem como fazer quaisquer doações para as artistas pelo site do museu.

DUAS DIVINDADES DO NOVO PANTEÃO UCRANIANO, DE DARTSYA ZIRONKA (TOPO), E OS ELEGANTES LAYOUTS DE KATERYNA KOSHELEVA.

Expostas lado-a-lado, as impactantes ilustrações de cunho realista de Dartsya Zironka e Kateryna Kosheleva se destacam tanto pelo uso engenhoso das cores como pelo aspecto Sci-Fi dos personagens, diferenciando-as dos demais trabalhos da mostra.

TANTO MASHA VYSHEDSKA (TOPO) QUANTO INGA LEVI DOCUMENTAM COM GRANDE EXPRESSIVIDADE AS HISTÓRIAS DOS QUE DEIXARAM A UCRÂNIA, E DOS QUE FICARAM.

Masha Vyshedska, Inga Levi e Yulia Vus adotam, cada qual em seu estilo, relatos em primeira pessoa de situações vividas por não-combatentes durante o conflito. De diferentes formas estão lá as evacuações das cidades ameaçadas com bombardeios, a angústia nas trocas de mensagens e notícias, as mudanças de hábitos no dia-a-dia das cidades destruídas e o espanto com a solidariedade demonstrada nesses meses dramáticos.

DAS QUADRINISTAS, YULIA VUS É A QUE COMPARECE COM O TOM MAIS ESPERANÇOSO EM SUAS NARRATIVAS, COM UM TRAÇO VERSÁTIL E AGRADÁVEL QUE É EFICAZ AO REPRESENTAR TANTO GATINHOS FOFOS COMO METRALHADORAS E TANQUES DE GUERRA.

Talvez a única decepção da mostra seja o fato de só haverem duas páginas de quadrinhos da sexta participante, Tania Pryimych. Suas páginas da HQ Ukraine's Independence Day são inquietantemente lindas, e fica-se na vontade de continuar lendo... Uma rápida passada pelo seu Behance confirma o sentimento de que ali tem mais coisa.

COMPOSIÇÃO DINÂMICA DE REQUADROS DE TANIA PRYIMYCH EM UKRAINE’S INDEPENDENCE.

De certa forma, toda a mostra deixa um gostinho de “quero mais”, o que certamente era um dos objetivos de se apresentar os trabalhos destas talentosas quadrinistas para um público além-mares. Entusiasmado, fui conferir as aventuras da jovem Grace Hoffer por uma terra devastada pela guerra em 2052 na graphic novel For Their Own Good, de Kateryna Kosheleva — que pode ser lida tanto em seu site ou (no celular talvez seja melhor) pelo Instagram — e recomendo.

CAPAS E PÁGINAS DAS GRAPHIC NOVELS CHORNOBYL OCCUPIED, DE DENYS BORYSIUK E TANIA PRYIMYCH, E FOR THEIR OWN GOOD, DE KATERYNA KOSHELEVA.

Assim como recomendo também conferir os prédios, muros e casas capturados em pinturas e desenhos a pastel seco de Inga Levi. E como fazemos para ler toda On the Edge, de Yulia Vus, que só por este trechinho em seu Instagram me deixou pra lá de ansioso?

DESENHOS A PASTEL DE INGA LEVI (TABULA RASA 2, SIGNS, UNDER THE BRIDGE) E TRECHO DE ON THE EDGE DE YULIA VUS.

A visita ao Cartoon Art Museum também virou um episódio no Eurocomics: