GESTO QUE LÊ DESVENDANDO OBJETO: METALINGUAGEM NOS QUADRINHOS EM TRÊS MOMENTOS
/por Lima Neto
A palavra “meta” nunca esteve tão popular. Posso estar enganado, lógico. Mas é fato que consumidores de cultura (ou de conteúdo, dependendo do seu nível de assepsia) estão tão familiarizados com o termo “meta” que este já se tornou praticamente uma gíria. Nenhum problema com isso. Na verdade, para este que está lhes escrevendo, a metalinguagem sempre foi um fenômeno fantástico, quase místico, e poder vê-la assim tão pedestre e disponível é um sinal positivo. Sinal de que, de uma forma ou de outra, as pessoas estão pensando sobre o que consomem. Mesmo na forma de um filme do Deadpool, um episódio de Rick e Morty ou Fleabag, a presença até mesmo da metalinguagem mais domesticada implica em uma obra que está pensando a si mesma. É essa ilusão de autonomia da obra que me assombra e seduz, e os quadrinhos são mestres no uso desse recurso desde seus primeiros passos. Mas esse texto não vai resgatar essa história. Vamos por outro caminho.
Como acontece em toda gravação de Lasercast ou artigos em que fazemos resenhas de quadrinhos, tentamos criar um recorte para encadear as leituras. Um traço em comum, uma curadoria em especial, algo que saia da aleatoriedade. Esse exercício de recorte já é um meta-pensamento, e se este texto buscasse pensar/criticar outros textos igualmente escritos em prosa, este seria um exercício metalinguínstico. Mas como falamos de Histórias em Quadrinhos, nosso texto escrito não consegue ser metalinguistico. Pelo menos não como é metalinguagem o Desvendando os Quadrinhos de McCloud ou o Desaplanar do Sousanis. Quadrinhos que falam sobre quadrinhos. Mas todo esforço de recorte é esforço de meta-pensamento, de delinear uma meta. O recorte é um método. Metá hodos, duas palavras gregas que superficialmente significam "por meio de” e “caminho”, respectivamente. Mas a palavra metá, como todas as palavras, é muito mais preenchida de significados que isso. Sem mergulharmos no academicismo profundo - apenas molhando só a pontinha dos dedos - cito o livrinho (chamo assim devido às suas dimensões) A Meta-linguagem de Samira Chalhub. No livro a autora emprega estas definições para metá: “mudança, posterioridade, além, transcendência, reflexão, crítica sobre...”. Nesta visão torna-se claro que talvez o uso corrente do meta como gíria se aproxime mais do seu significado amplo do que parece.
Enquanto escrevo estas definições, me pergunto se essa reflexão sobre o método do recorte se encaixa no recorte que inscrevo para este texto. Afinal, já estamos no terceiro parágrafo e não chegamos ainda sequer a citar os quadrinhos que vamos tratar. Mas a repetição das palavras “recorte” aqui tem a função de revelar uma outra característica mesmerizante do jogo da metalinguagem – seu caráter recursivo. De algo que se refere a si mesmo. Que se replica ao infinito. Câmara de ecos. Se, como diz Chalhub, uma obra é um “encontro da linguagem” e a metalinguagem é um esforço de atravessar o espaço entre leitor-obra-autor neste “jogo de produção e recepção”, então a recursividade da metalinguagem é o risco da redundância inexpressiva. Risco de que, neste esforço de travessia, o pensamento colapse em um mise en abyme vazio. Imagem icárica. E é buscando nos resgatar deste buraco que nós mesmos cavamos (“The hole I dig is bottomless” como já diria meu querido Bob Pollard) que retorno ao recorte.
Pois bem, ao tentar criar um recorte para o Lasercast número 34, aquele em que falamos de nossas leituras de “férias”, decidi falar sobre o quadrinho francês Imbatível de Pascal Jousselin. Sendo direto neste primeiro momento, basta saber que Imbatível é uma HQ metalinguística. No mesmo episódio falei também da edição brasileira de Green River Killer de Jeff Jansen, e da belíssima biografia do artista japonês Hokusai feita por Shotaro ISHInoMori. Curiosamente, Hokusai e Imbatível pareciam atraírem-se um ao outro de alguma forma e dessa impressão me veio a ideia do recorte metalinguístico. A ideia veio. A ideia foi. Não havia como este recorte se adequar a todos os títulos. Mas aquela impressão continuava me perturbando, e foi pensando sobre essas duas HQs, e o que elas podem ter em comum, que cheguei neste texto. E agora vamos falar de quadrinhos. Prometo.
Um jogo imbatível
Imbatível é uma delícia de BD. Publicada no jornal Spirou, o quadrinho narra as breves aventuras do super-herói título parodiando o gênero norte-americano dentro de um cenário pacato em algum lugar da França. Esse álbum, chamado “Justiça e Legumes Frescos” e publicado pela Nanabooks, acabou se tornando a obra guia desse raciocínio. Não sem motivo. A diversão está nos poderes de seu personagem título: uma liberdade metalinguística total que faz dele quase um deus que controla tudo dentro do grid da página de gibi. Não chega a ser novidade. Quem leu o brasileiríssimo Gralha, principalmente as páginas criadas pelo quadrinista Antonio Eder já sabe do que estou falando. Por sua vez, o meta-Gralha também homenageia a HQ canadense No Escape de Patrick McEown, e nem precisamos ir tão longe. Quem cresceu lendo Turma da Mônica viu muito dessa anarquia gráfica em um gibi ou outro da série. O que marca Imbatível é a inventividade com que cada história explora os poderes do personagem nas mais diferentes situações, assim como os poderes de outros coadjuvantes que também atuam sobre a página de HQ em seus diferentes aspectos. Não vale a pena aqui descrever estes poderes pois, nesse caso, a surpresa é um ingrediente importante da narrativa.
Em Imbatível, a metalinguagem é um jogo. O personagem principal é um sujeito pacato e gentil que está mais ocupado em cuidar do seu cotidiano interiorano do que pegar bandido. Essa tranquilidade esconde alguém que possui uma habilidade sem limites de tempo e espaço, pois permite ao personagem se colocar na perspectiva do leitor. Ele é onisciente do que acontece em uma página de HQ e consegue transpor a cena narrativa e se mover pelos requadros como bem quiser. Para ele, assim como para a linguagem dos quadrinhos, tempo é espaço. Ele é meta pois se coloca de fora, a mesmo tempo jogo e jogador. Mas seu poder impõe um peso nas pessoas a sua volta. É interessante ver a reação dos outros personagens diante da assombrosa habilidade do super-herói francês. Seus amigos se espantam, seu vizinho fica aterrorizado e seus vilões entram em depressão diante da impossibilidade de vitória. Essas reações são totalmente justificáveis. São como o Senhor Quadrado encontrando uma esfera pela primeira vez em Planolândia, de Edwin A. Abbot ou ainda a sensação de incapacidade experimentada por Billy Pillgrim diante da experiência de ver o mundo a partir de uma perspectiva quadridimensional no clássico de Kurt Vonnegut, Matadouro 5.
Mas Imbatível não foca nesses desdobramentos, ou mesmo em maiores aprofundamentos dos personagens. Não há a intenção de criar uma tessitura dramática ou nada nesse sentido. Embora aborde de maneira bem humorada e irônica algumas mazelas atuais, como empresas poluentes e políticos de baixo caráter, o foco da BD é o momento que acontece no espaço de uma página, e como o personagem pode agir sobre ela. O personagem Imbatível tem o mundo em suas mãos graças a seu poder metalinguístico. Seu universo, o universo do jogo, é seu objeto de manipulação. Mas ele não é um cientista, e apenas é um herói e permanece assim graças a uma necessidade de manter a vida simples, idílica. E é desta maneira que Jousselin constrói sua paródia dos supers americanos, estressados e engajados na fabricação da justiça. Seu quadrinho mantém a tradição da metalinguagem lúdica dos quadrinhos infantis, porém direcionado a um público mais informado, que vai apreciar as meta-peripécias de seu personagem.
Vertigem divina
A possibilidade de um recorte que fosse em torno da metalinguagem excluía o relato policial de Green River Killer, mas parecia fazer sentido quanto ao mangá de Hokusai. A dúvida era se essa adequação era real ou se resultava do empuxo gravitacional de Imbatível. O que é claro é que este texto resultou da aglutinação de fragmentos de pensamento em torno do quadrinho metalinguístico que só foi possível exatamente graças à força dessa HQ francesa. Deixo então o Lasercast pra trás e trago pra discussão um outro autor famoso por suas aventuras meta-melindrosas, mas que tem o pé firme em outro aspecto estilístico desse jogo: Grant Morrisson. Alguns vão dizer: “Lá vem ele com esse rufião escocês novamente”. Não sem razão, já que 70% do que escrevo provavelmente gira em torno dos quadrinhos escritos por ele, revelando uma pouco-saudável relação fãboyzistica nutrida por minha pessoa. Mas sigam comigo, vai valer a pena.
Como falei acima, há um aspecto da metalinguagem que serve de matéria prima pra autores como Grant Morrison e que se alinha à inclinação literária dos quadrinhos da chamada primeira leva da invasão inglesa nos comics norte-americanos de super herói. Esse aspecto é apenas esboçado como punchline em Imbatível. Enquanto a BD francesa nos faz rir com o assombro dos personagens coadjuvantes diante do poder absoluto do personagem título, quadrinhos como Homem-Animal, Patrulha do Destino, Invisíveis e The Filth (só pra citar alguns, pois o tema persiste em toda a produção do roteirista escocês) vão explorar exatamente esse trauma como mote para o desenvolvimento de suas tramas. A metalinguagem abandona os limites do espaço e somos apresentados para o desenrolar no tempo de uma narrativa encadeada por estes fenômenos. Deixa-se de lado as histórias de uma página da BD – em que o feixe narrativo é quebrado e entortado pelo personagem emprestando à linearidade da leitura um aspecto imagético/plástico que muitas vezes circula sem fim na página - e passa-se a uma linearidade narrativa, dramática. E uso o termo “drama” aqui em mais de um sentido, não apenas como gênero literário, mas também pelo tom sufocante e dramático (certamente vertiginoso) que caracteriza sua linha editorial. Talvez o mais conhecido exemplo disso seja a HQ Homem Animal.
Já tem muita coisa sobre esse personagem aqui na raio, especificamente aqui , aqui e aqui , mas resumindo, Animal Man foi um título publicado no início dos anos 90 nos EUA e um dos títulos precursores do selo Vertigo da DC Comics. Trata-se de um super-herói tipo D escolhido por Morrison como sua estreia no mercado americano. O fato de ser um personagem obscuro dá o tom da dinâmica das histórias que tinham a metalinguagem como elemento propulsor. Mas trata-se aqui de uma outra abordagem.
O personagem de Buddy Baker, alter ego do herói que dá título à série, pode ser descrito como um dos extras assombrados de Imbatível. Testemunhas de um momento em que seu mundo perde o sentido, mesmo que por um quadro. Mas o que era jogo na BD se torna mola propulsora da narrativa neste quadrinho americano. Buddy tem encontros com personagens de desenho animado, super-heróis esquecidos em um limbo (antes da série, Buddy fazia parte de um supergrupo chamado Forgotten Heroes) e, após a morte de sua família, decide empreender uma jornada em busca de sentido que o leva a se descobrir como personagem de gibi ao ponto de encarar os leitores e apontar pra sanha violenta que alimentava a popularidade dos comics na época. Tudo isso leva a um final que só pode ser descrito como uma tira existencialista da Turma da Mônica.
Homem Animal, assim como Monstro do Pântano de Alan Moore e Sandman de Neil Gaiman são quadrinhos marcados pela necessidade de desconstrução, e com essa desconstrução vinha também a ideia de que era imprescindível uma maturidade, tanto por parte da emissão quanto da recepção. A metalinguagem do Homem Animal é “dark”, fonte de angústia e sofrimento. E aqui vai mais um dedinho acadêmico que lança uma luz a essa angústia. O filósofo Vilém Flusser, em um artigo que argumenta sobre o jogo, diz o seguinte “Toda vez que procuramos pela origem de um jogo, esbarramos contra um meta-jogo. (...) O meta-jogo torna-se inefável para o jogo”. A palavra inefável é a chave. A fase inicial de Morrison é obcecada com “Deus”, em diversos exemplos: a busca de Buddy Baker o leva a um frustrante e intencionalmente anticlimático encontro divino; a graphic novel Mistério Divino segue um detetive que investiga o assassinato do ator que representa Deus em um auto religioso no interior da Inglaterra e inicia sua investigação pela pessoa que atua como diabo; enquanto, em Patrulha do Destino, Deus aparece como Jack o Estripador. Os personagens de Morrison nessa fase são personagens confrontados com essa inefabilidade em que a regra do jogo emudece.
Há muitas diferenças entre estes dois títulos. Mas chama a atenção o fato de Imbatível ser fruto de uma única mente criadora enquanto que Homem Animal advem do mercado americano, onde as funções são distribuídas para diferentes profissionais. Daí essa aproximação com o romance literário, algo que está longe de ser uma novidade e que já vinha sendo praticado no mainstream desde os anos 70 (principalmente na Marvel com nomes como Jim Starlin e Chris Claremont). Como roteirista, Morrison se apoia na metalinguagem como tema a ser explorado, embora raramente isso aconteça no campo visual (uma exceção notável é a imagem recursiva da pintura que engoliu Paris, capítulo da HQ Patrulha do Destino em que presta homenagem às vanguardas europeias do século XX), ou seja, é raro que o espaço da página seja o lugar do jogo metalinguístico.
Com o desenvolvimento da sua carreira, algumas aproximações com a visualidade ocorreram graças ao entrosamento do roteirista com artistas específicos. O caso mais identificável é a parceira com o desenhista conterrâneo Frank Quitely. Títulos como Flex Mentalo e Multiversity: Pax Americana são exemplos de roteiros que usam o espaço da página como lugar de jogo, mesmo que diferente da inventividade de Jousselin. Se a BD de Jousellin é a metalinguagem lúdica e inesgotável em sua simplicidade mais infantil (longe de ser infantiloide), Morrison é metalinguagem dramática, carregada e sombria, como um adolescente que acaba de entender que o mundo é maior do que ele.
“Quer que eu desenhe?”
Voltando ao Lasercast e o problema do recorte, pode ser que em algum momento desse artigo tenha surgido a pergunta “Hokusai é metalinguístico?”, e essa é exatamente a pergunta que eu me fazia quando veio a proposta do recorte na minha mente. A resposta rápida é sim. Mas de um teor completamente diferente das HQs abordadas anteriormente. O mangá Hokusai foi publicado originalmente em 1987 e é assinado por um dos nomes basilares do quadrinho e da cultura japonesa. Não é para menos. Trata-se de uma biografia de Katsushika Hokusai, um dos maiores artistas do Japão.
Hokusai foi um desenhista,pintor e gravador do século XVIII/XIX especializado no estilo ukiyo-e, um estilo que se tornou conhecido no mundo ocidental em meados do século XIX graças ao artista francês Félix Bracquemond quando este trouxe para a França um exemplar do livro Hokusai Manga, uma série de desenhos e esboços que tinham a intenção de colecionar um vocabulário visual para uso didático pelo mestre japonês. A partir daí o trabalho de Hokusai influenciou artistas impressionistas e da art nouveau, popularizando suas imagens por todo ocidente.
Hokusai viveu aproximadamente 89 anos e produziu por todo esse período. Seu trabalho era obsessivo, com diversos momentos diferentes em que chegava mesmo a mudar de nome para refletir seu comprometimento com o estilo que pretendia desenvolver. Daí a dificuldade para identificar a autoria de alguns de seus trabalhos e até mesmo a identidade real de determinados nomes da história do ukiyo-e. O mangá de Shotaro aborda essa história de forma não linear, saltando entre momentos e entremeando a narrativa com reproduções das obras do biografado. O Hokusai representado é um homem áspero, resoluto, mesmo em seus momentos de bebedeira e tolice. Um hedonista desinibido, sua relação com o prazer parece sempre ter um objetivo: para o Hokusai de Shotaro o mundo estava a seu dispor apenas para inspiração e seu apetite sexual lhe servia para gerar ideias (e muitos filhos). Nunca passou pela cabeça do Hokusai histórico que sua obra o levaria a se tornar o fenômeno transmidiático como vemos hoje.
O mangá de Shotaro não é a única biografia de Hokusai em mangá. Coincidentemente, no mesmo período em que o mangá chegou em minhas mãos, o artista japonês era o tema de uma exposição na Caixa Cultural de Brasília chamada Mangá Hokusai Mangá. Tratava-se de uma mostra patrocinada pela Fundação Japão que contava com páginas originais do livro Hokusai Mangá e painéis impressos em que se buscava abordar a história do artista pela ótica dos mangás. Fisicamente, a exposição tentava emular a leitura de um mangá com um percurso circular que se visitava da direita para a esquerda enquanto os painéis mostravam tanto a biografia de Hokusai como também um estudo comparativo dos elementos gráficos de sua obra que foram incorporados pelos desenhistas de quadrinhos japoneses.
Tratava-se de uma exposição metalinguística no sentido em que se buscava abordar uma linguagem com os elementos mesmos desta linguagem em um esforço crítico de conseguir um conhecimento. É preciso esclarecer, no entanto, que o livro Hokusai Mangá não é um “mangá” e nem foi Hokusai que criou o termo como entendemos hoje. O título do livro se refere a dois ideogramas sino-japoneses que significavam “diverso, aleatório, incoerente, inconstante (man) e “desenho de forma livre, imagem” (ga), e é desta forma que o livro foi concebido, como um catálogo de imagens livres para aprendizado e treino por iniciantes (deixo aqui um agradecimento ao livreto da exposição pelas informações).
Mas, de fato, as gravuras e pinturas de Hokusai tiveram um papel importante dentro do processo de criação de um vocabulário imagético para o mangá, e a exposição deixa isso bastante claro por meio dos painéis comparativos, de uma coleção de mangás originais e vídeos com trechos de biografias audiovisuais do artista. Destaque para o anime Miss Hokusai, um belíssimo longa-metragem de animação que adapta o mangá Sarusuberi, de Hinako Sugiura, abordando a vida da filha do artista, Katsushika Õi, também pintora e desenhista e provável coautora de algumas das obras mais emblemáticas de Hokusai.
“O gesto que lê desvendando o objeto - é uma operação de conhecimento, e sua tradução em linguagem, a tentativa de dizer dele, sobre ele, com ele: como é o que é, ou como é o seu ser”. Challub descreve aqui o gesto metalinguístico, e a partir dele podemos dizer que tanto a exposição da Fundação Japão e tudo que está inserido nela são frutos desse gesto. Enquanto operação de conhecimento, o mangá de Shotaro exercita uma certa poética em sua investigação, que deixa claro que tanto o mangá de Shotaro quanto o mangá de Hokusai (e sua obra) possuem códigos pertinentes entre si. Descreve –se um desenhista por meio de desenhos inspirados pela obra dele próprio. Não se trata da metalinguagem lúdica, que joga para conhecer e romper seus limites; nem a metalinguagem dramática onde o jogo é menos importante do que a sua relação com o mundo; mas sim de uma metalinguagem que se quer como forma de conhecimento e que engloba as categorias anteriores como parte da sua prática. Madura, não busca aparecer mais do que aquilo que narra - como um truque de mágica para desviar a atenção - mas ocorre como parte de um processo.
Aqui, novamente, temos o autor único. Mas não é possível dizer que está sozinho, já que trabalha a partir da vida de um ser na história e esta mesma história foi narrada e carregada por outros incontáveis autores. A metalinguagem do mangá Hokusai é própria do discurso do saber, saber para o mundo. Talvez o grande segredo que ela guarda, e que tanto incitou meu pensamento, seja justamente o fato de ser muito mais presente na cultura do que as outras duas vertentes.
Não é de se surpreender a popularidade do termo meta e seus usos. Trata-se, talvez, apenas da familiarização do público em geral com a ideia de que a metalinguagem é usada sempre que é preciso explicar algo sobre alguma coisa a partir dela mesma. Uma operação cada vez mais corriqueira no nosso dia a dia. Está no youtuber que edita aquele resumo de temporada de anime, está presente secretamente nos fanfics e fanarts, nos reality shows, com a cultura das redes sociais, dos produtores/consumidores de conteúdo, e inclusive neste artigo. Cada dia mais somos empurrados para uma existência real e virtual compulsória e, desta forma, mais a impressão é de que a vida está mais meta, com nossas parcelas digitais e analógicas se misturando e tentando entender uma à outra. Talvez compreender o termo “meta” para além da gíria - e com certeza para além do Zuckerberg – ajude a achar uma forma de ser mais ciente de si dentro desse salão de espelhos que é nosso presente.