Lovistori, corpo e martírio
/por Ciro Inácio Marcondes
São Sebastião, que podemos dizer ser o santo padroeiro (ainda que informal) das pessoas LGBTQIA+, está lá, pregado na parede do apartamento onde se descortina uma bela cena de café da manhã em que contracenam Paixão, um policial militar, e Sereia, sua secreta namorada, uma mulher trans que exerce o ofício da prostituição num calourento Rio de Janeiro dos anos 90. Assim começa o romance gráfico Lovistori, de S. Lobo e Alcimar Frazão, um dos dois lançamentos que deram o pontapé inicial à editora Brasa em 2021 (o outro é Brega Story, de Gidalti Jr.).
A figura de São Sebastião importa não apenas pelo aspecto queer da história. Este santo, que viveu no Império Romano durante o século III, era um soldado da guarda pretoriana que havia nascido no seio do cristianismo, e foi perseguido e sacrificado (primeiro, com as famosas flechadas, depois esquartejado e espalhado pelos esgotos de Roma) pelo imperador Maximiano. O martírio fez com que já fosse, dizem, considerado santo quando da conversão do Império ao cristianismo por Constantino, no século IV.
São Sebastião foi muito popular no primeiro Renascimento, no quattrocento. A escola de Andrea Mantegna determinou seu visual andrógino, delicado e em intenso sofrimento, retratando especialmente o momento de sua “primeira” morte, atingindo por uma saraivada de flechas. Sua tragédia acabou transfigurada para história por meio de expressão de seu corpo: o torso nu, o belo masculino que busca o transcendental e o sofrimento incutido no olhar, perpetrado pela violência de um poder institucional e opressivo. O corpo, aqui, torna-se vetor de uma ação política.
Este mártir do “poder policial”, portanto, não está ali à toa. Em Lovistori, Sereia e Paixão também transfiguram suas existências e subjetividades muito na expressão do corpo. Corpo que ama, corpo que excreta, corpo que se altera, que se vende, que sangra. São Sebastião são os dois amantes, enlaçados na paixão (para usar também um termo cristão) e no martírio, tudo encravado no estilo maciço, mais que adequado, do grande Alcimar Frazão.
Porém, há um outro corpo que emerge, também desde essa primeira cena. Lobo e Frazão têm a astúcia de nos introduzir ao universo particular destes personagens com um ponto de vista aberto na paisagem carioca, que segue refratada numa jarra d’água, e que depois adentra a cozinha. Coisa de Cidadão Kane, chamando a atenção para o corpo maior da cidade, que alberga todo o drama e sacanagem contidos na história.
A cidade como personagem – como corpo – pode parecer clichê, mas aqui é absolutamente inevitável. O corpo deste Rio de Janeiro que aparece aqui não é o corpo da Garota de Ipanema ou da Fernanda Abreu, mas sim um fenômeno sinestésico que se divide em cheiros, dores, gemidos e entorpecimentos. Tudo isso se materializa nas farpas e fagulhas constantes que gringos, meganhas, putas, “cidadãos de bem”, junkies e outros tipos fazem voar nas ruas de uma babilônica e cruel Copacabana hoje retrô, metonímia para a cidade toda. Prenúncio (ainda “romântico”) do poder estatal miliciano que estaria por vir nas décadas seguintes.
Lovistory é um quadrinho ligeiro, de consumo intenso e rápido, talvez porque se concentre tanto nesse aspecto háptico, ou seja, no quanto os corpos em si desses personagens, somados ao corpo metafórico da cidade, são capazes de nos tomar a atenção e os sentidos, mais que a razão em si. A arte em P&B, fotográfica e voluptuosa, de Frazão, ajuda na tentativa que o gibi tem em nos envolver com pele e sangue.
Se o quadrinho, no entanto, nos envolve nesse emaranhado de gostos e toques para vivificar a glória e a tragédia de um amor, ele também não deixa de ter “padroeiros” no mundo simbólico: naquela escandalosa poça do final, naquele reflexo na jarra d’água, naquele quadro na parede. No final das contas, Lovistori nos apresenta balas e flechas, umas metafóricas e outras bem reais, todas certeiras e inevitavelmente violentas, assim como as melhores paixões.